Volume 1
Capítulo 28: VISIONÁRIO
Os móveis da sala levitavam conforme a ruiva mexia os dedos, reformulando a organização do local.
— Não! Não! — gritou Gunner.
O atirador pulava para segurar o vaso de cristal que escorregava da mesa flutuante, não só isso, corria de um lado para o outro com os braços repletos dos seus preciosos objetos, na tentativa de salvá-los.
— Isso! Bem melhor agora! — disse Scarlet, satisfeita com sua redecoração, simplesmente, empilhou tudo em um canto.
— Por Ala! O que fez com meu cantinho da paz? — lamentou Gunner, as lágrimas começavam a encher seus olhos.
— Qual é?! Avisei que precisava de espaço — rebateu ela, segurando o riso.
— Vou repetir... — Gunner puxou o ar e continuou aos berros. — Vão embora!
Scarlet o ignorou.
— Dark, algum progresso aí? — informou ela, na direção do novato.
O Noob estava sentado no centro da sala, segurava o pulso com uma das mãos e, com a outra, esticava os dedos na frente dos olhos, concentrando a energia física no centro da palma.
— Não, nada ainda. — respondeu ele.
O brilho vermelho fluía por sua mão, mas as chamas não se manifestavam.
— Sério? Tá ensinando combustão pra um novato? — indagou Gunner, em tom descrente.
— Ele já conseguiu manifestar, otário! — rebateu Scarlet, com um sorriso largo. — Meu trabalho agora é fazê-lo controlar.
“Hum... Sério?! Esse cara?!”, pensou Gunner, mantendo sua expressão cética.
Entre os vários recursos do RDM, a combustão era a vantagem que apenas os Expert's possuíam. De certa forma, queimavam a própria energia para potencializar seus poderes. No entanto, seu uso era arriscado, consumia seus recursos como fogo em pólvora. Além disso, o domínio dessa técnica exigia extrema concentração e talento, nada do que enxergava no novato.
O Noob desabou no chão, colando seu rosto no tapete macio.
— Ownt! Tá cansadinho?! — perguntou Gunner, fingindo um tom carinhoso.
— Qual é? Me dá um tempo! — reclamou ele, acariciando seu local de repouso.
— Levanta logo daí! — mandou Scarlet, impaciente.
O Noob sentou-se novamente, deixando seus xingamentos presos na garganta.
— Agora, tenta a chama azul — disse autoritária.
O novato concentrou a energia mágica na palma da mão, demorou alguns segundos, mas dessa vez as chamas azuladas vieram.
— Consegui! — comemorou ele.
— Por Zeus! Né que ele consegue mesmo! — relatou Gunner, atuando um enorme espanto.
O Noob lançou um olhar de fuzilamento na direção do atirador.
As chamas se dissiparam.
— Se concentra, idiota! — ralhou a ruiva.
O novato desviou o olhar, baforando de raiva.
“Obediente como um cachorrinho”, avaliava Gunner, levando a mão à boca para tampar o riso.
— E você? O que tá fazendo aqui? — perguntou Scarlet, irritada.
— É... Bem... Não sei se você sabe... — Gunner piscou por um momento, sem entender o porquê de responder aquilo —, mas essa é minha casa!
— Já que não tem nada melhor pra fazer... senta do lado dele! — ordenou, indicando o local com a mão. — Decidi! Vou treinar você também!
Gunner deixou o queixo cair.
— Não, eu tô de boa! Eu... Eu...
A ruiva esperou de braços cruzados que completasse a frase, porém o atirador desistiu, sentou-se no local indicado.
— Bom menino — elogiou Scarlet.
O Noob se mantinha sereno ao lado, mas deu uma risadinha na direção de Gunner. Deixando claro que, por dentro, estava se divertindo por não ser o único preso nas garras da ruiva.
— Dark, vamos começar por você — disse ela. — Como percebeu, a combustão azul é mais fácil pra manifestar, isso é porque...
— Devido eu ser um Elemental meus poderes fazem maior uso da energia mágica, sendo mais fácil acioná-la — completou o Noob.
— Isso mesmo! — parabenizou ela, com palmas.
“Espera... um Elemental?!” Algumas peças não encaixavam na cabeça de Gunner. “Tinha que pertencer à classe que mais detesto nesse jogo.”
— Oh! Um Noob espertinho — resmungou o atirador, entediado, fazia riscos com o dedo no chão. — Qual é seu elemento?
— É... — O novato olhou na direção da ruiva antes de responder.
Scarlet devolveu um olhar apático, sem dar dica do que poderia falar, essa teria que resolver sozinho.
— Por Brahma! Não pode dizer nem seu elemento sem permissão? — zombou Gunner, percebendo sua hesitação.
— Sólidos! — disparou ele. — Eu... sou um Elemental dos Sólidos.
Scarlet sorriu contente, foi uma boa resposta. Porém, Gunner o encarou boquiaberto.
“O jeito que ele falou não passa muita certeza, mas... se for esse o caso.” O atirador matutava uma teoria. “Esse cara... não acredito.”
— Que Noob mentiroso! — desdenhou Gunner. — Não te vi manipular sólidos no jogo em nenhum momento, só aquelas explosões coloridas.
Enganar um jogador experiente era uma missão difícil, ainda mais alguém que sabia avaliar com detalhes seus oponentes.
— Ah! Mas isso foi porque não usei meus poderes naquela partida — relatou o Noob. — Acho que esqueci de usá-los.
— Como assim não usou?! — interviu Scarlet.
A expressão de assombro dela era acompanhada pela do atirador.
— Calma aí! Tá me falando que chegou até a última onda no círculo azul sem usar seus poderes nem uma vez sequer?! — disparou ela, em um sopro.
O Noob vasculhava na mente algum momento que deixou passar, os dois esperavam ansiosos a resposta.
— Não! Tenho certeza que esqueci de usar — respondeu ele, coçando a cabeça envergonhado.
— Uau! Você é mesmo um idiota! — constatou Scarlet, porém, sustentava uma expressão orgulhosa.
— Não! Não! Como desviou dos raios? — interrogou Gunner, não convencido.
— Os raios caiam com intervalos e distâncias irregulares, só calculei as possibilidades de queda, considerando o padrão aleatório — explicou o Noob, bancando o inteligente.
— Ah... Claro! Conseguiu prever analisando somente o padrão de queda? — retrucou Gunner, abismado.
— O padrão é só uma forma feia de falar probabilidade — rebateu ele, com o tom diferente do normal, quase arrogante.
— E aquelas explosões coloridas? — insistiu Gunner. — Vai dizer que não tinha poder ali.
— Ah! Aquilo... foi só química.
— Impossível! Mentira tem perna curta, Noob! — zombou Gunner, insatisfeito com as respostas.
O novato encarou o teto, seu olhar pareceu distante.
— No universo, enquanto a chance não for zero, o impossível não existe — proferiu ele, seus olhos negros vageavam em algum lugar do passado.
“Sim! Sim! Agora tenho certeza!” Gunner concluía mentalmente. “Esse Noob é completamente pirado! Maluco! Gostei... tem potencial para ser um Candidato!”
— Hum-Hum! — pigarreou Scarlet, chamando atenção. — Dá pra parar com a conversinha? Nosso treino não acabou.
— É, né?! Vamos continuar — disse Gunner, desanimado.
O silêncio dos rapazes emburrados foi sua deixa.
— Hoje vou ensinar como usar combustão junto do efeito inato — disse ela. — Por exemplo, vou falar sobre o meu poder, Fios Fantasma.
Gunner arregalou os olhos, o desinteresse sumiu em um segundo.
— Vocês não conseguem ver, mas da ponta dos meus dedos saem linhas invisíveis que podem mover as coisas.
Scarlet esticou a mão direita, em seguida, a mesa pequena levitou. Com a esquerda, ergueu um dos vasos de cristal.
— Se aplicar combustão vermelha — dizia enquanto a chama avermelhada fluía pela linha até a mesa, deixando o contorno do fio visível —, isso amplifica a força, tração e resistência do fio, posso usá-lo para atacar.
Com um leve movimento dos dedos, a linha coberta de chamas vermelhas circulou a mesa e espremeu a madeira, após os estalos, houve a explosão de pedaços no ar.
— Usando a combustão azul, minha linha pode ir mais longe e se movimentar mais rápido, perfeita para me defender.
O fio repleto de chamas azuis movimentou-se em alta velocidade, os jogadores conseguiam ver apenas o borrão do vaso tomando a extensão da sala, não dava para saber onde estava e, simultaneamente, parecia estar em todos os lugares.
— Mestra! Só uma perguntinha?! — chamou Gunner, levantando a mão, como se estivesse em uma sala de aula, mas não só isso, estava apoiando uma caneta e um bloco de anotações na perna.
O atirador registrava cada palavra da ruiva.
— Quando diabos pegou isso? — perguntou o Noob, tomando um susto com a sua postura intelectual, por algum motivo, o atirador também colocou óculos.
Gunner ajustou os óculos de armação dourada, pressionando com o dedo indicador a região entre os olhos.
— Se usar as duas cores na linha? O que acontece? — indagou Gunner, com a caneta preparada para anotar.
— Nesse caso, as linhas se partem — respondeu ela, prontamente.
O vaso parou no ar, ficando entre eles.
A chama azul começou a ser circulada pela vermelha, quando tocou o objeto, o fio se partiu no meio e o vaso caiu estilhaçando-se no chão.
— Ah... esse vaso era uma relíquia uma pouquinho cara — remoía Gunner, agitando a caneta no papel —, mas tudo bem! Isso aqui não tem preço!
Gunner admirava o bloco de notas, os detalhes dos poderes da Rainha Demônio estavam nele.
— Não sou uma Expert de classe única, por isso, não consigo unir as chamas — relatou Scarlet.
— Graças à Jah! — bramiu Gunner. — Não acha que já é apelona demais?!
Scarlet torceu os lábios em um bico, com toda a certeza, achava que não.
— Esses são meus Fios Fantasma! — continuou ela. — As chamas vão mudar as características dos poderes de vocês, descubram quais as diferenças e usem da melhor forma.
— Sim, mestra — expressou Gunner. — Continue a me inundar com seu conhecimento inestimável.
O atirador ajoelhou-se de modo respeitoso.
— Pode deixar, meu pequeno gafanhoto — retribuiu Scarlet, com um tom pretensioso.
O Noob revirou os olhos.
— Dark, observe — disse a ruiva, indicando a direção de Gunner. — É assim que deve agir diante dos meus ensinamentos.
O atirador deu uma piscadela na direção do novato incrédulo.
— Então... agora podemos ir para aula prática! — informou ela, empolgada.
Scarlet puxou o celular.
— Eu passo! Não quero entrar no jogo. Tô meio sem clima, sabe?! — falou Gunner, caminhando na direção da cozinha.
— Você vai — ordenou Scarlet, calmamente, passando o dedo na tela.
— Eu vou! — concordou, dando meia-volta.
O novato lhe fitava com sorriso debochado.
— Be... É... Scarlet! — chamou o Noob. — Antes de ir, podia me ensinar a usar uma espada.
A ruiva o encarou confusa, depois seu olhar seguiu na direção do atirador.
— Que espada? — perguntou séria.
O novato deu alguns cliques na tela do seu celular.
— Ela ficou no meu inventário depois do jogo — relatou ele.
“Meu Deus! Como pude esquecer?!” Gunner se repreendia. “Não! Não mostra pra ela!”
A espada no estilo medieval, lâmina escurecida e com fio azulado se materializou na mão dele.
Scarlet observou a arma, por pouco, o aparelho não caiu da sua mão.
— Dark... — Scarlet puxou o ar, buscando o autocontrole. — Como tá escrito o nome dessa coisa?
“Tá, talvez ainda consiga...” O atirador foi lentamente se distanciando.
A ruiva o segurou pelo braço, além dela saber que tipo de arma era aquela, também desconfiava quem havia lhe entregado, sua fuga de fininho, fracassou.
— Oitava relíquia da calamidade. — O Noob leu a descrição na tela.
A ruiva pegou Gunner pela gola da camisa e o puxou para baixo, seus olhos em chamas encaravam os aflitos do atirador.
— Você entregou uma das relíquias da calamidade nas mãos desse idiota?! — gritou ela, exasperada.
— N-não... eu... eu... Já-jamais entregaria o ne-negócio perigoso desse na mão de um Noob! — Entre os gaguejo, tentou se defender.
— Dark, onde achou isso? — perguntou ela, em cólera.
O Noob olhou para o atirador, seus olhos entregaram o culpado.
— Eu vou matar você! — berrou Scarlet, apertando com força a gola dele, praticamente o sufocando.
— Espera! A espada me ajudou muito — interviu o Noob.
— Seu idiota! Idiota! Idiota! Idiota! — xingou ela, na direção do novato. — Se não tivesse compatibilidade com a arma... estaria morto!
O Noob exibiu uma reação calma, na verdade, até sorriu.
— Ah! Então foi esse seu experimento! — constatou ele. — Tava curioso sobre isso.
Gunner exibiu um sorriso amarelado, repleto de nervosismo.
— Mas deu certo! Olha o Noob aí! Sã e salvo! — falou o atirador, expondo o lado positivo.
— Por um milagre! Não chegou nem ao nível vinte! A relíquia deveria ter consumido ele inteiro! Devorado até os ossos desse idiota! — bramiu ela, rosnando a cada palavra.
— Sinistro... — disse o Noob, fitando a lâmina negra.
Scarlet suspirou, tentando recuperar a compostura, mas nem percebeu quando sua mão partiu da gola e atracou na garganta do atirador.
— Vamos! Devolve logo isso pra ele — mandou ela, mais calma. — Antes que cometa uma burrice pior e acabe fazendo uma ligação astral com isso.
— Pois é... falando nisso... — O Noob baixou a cabeça, arrastando o pé de um lado para outro.
Ela largou o atirador, pasma.
Gunner caiu no chão puxando o ar, por pouco, não terminou estrangulado.
— Não, mas como?! Com seu nível a arma deveria... a não ser...
A ruiva movimentou os dedos, o sofá flutuou e caiu atrás dela.
— Sua Restrição — disse Scarlet, se jogando no móvel, deixando seu corpo afundar no estofado. — Ela impediu que a arma drenasse toda sua energia.
— Sim, teve uma notificação do tipo — concordou o Noob.
— O que não entendo... — a ruiva jogou a cabeça para trás, encarando o teto. — Por que uma relíquia da calamidade te aceitou?
— Simples... — falava Gunner, acariciando a garganta dolorida. — Seu Noob também é um psicopata.
— Ei! — protestou ele.
Hehehe! Hahaha! Hehe! Hahaha!
Scarlet começou a rir, de modo espalhafatoso e bizarro.
— Que interessante! Muito interessante! — soltou ela, após encerrar sua sessão de risos.
— Que medo — disse Gunner, observava a cena ao lado do novato.
O Noob balançou a cabeça, concordando.
— Vamos! Vamos pra uma partida! — gritou a ruiva, transbordando êxtase.
Os dois se entreolharam, sem conseguir descrever o frio na espinha que sentiram.
Scarlet passou os olhos pela tela, rapidamente, avaliando as partidas promissoras, não havia muitas. Contudo, para o que queria, um círculo amarelo cairia bem.
— Esse aqui! Marquem no mapa — informou ela, conferindo no celular deles que marcaram o lugar certo.
“Como fui me meter no meio disso?”, pensou Gunner, o arrependimento dava pontadas no seu ânimo, na visão do atirador, aqueles dois eram problemas.
O Noob o fitava contente, alegre por ter um parceiro para trilhar as vielas do inferno.
— Scarlet... — chamou Gunner, coçando a barbicha.
Ela lhe deu atenção.
— Disse que não é uma Expert de classe única... — relutou um pouco, mas continuou. — Qual sua outra classe?
A ruiva lhe lançou um sorriso cínico, movimentou o dedo, indicando para ele se abaixar. Gunner correspondeu o seu pedido e, usando as duas mãos para tapar o som, ela cochichou no seu ouvido.
O novato não sentiu inveja alguma, há muito tempo já havia deduzido qual era.
De olhos arregalados, o atirador deu alguns passos para trás, a encarando de cima a baixo.
— Ah! Vai tomar no...
Com emissão de um flash, a pedra os transportou.