Volume 1 – Arco 4
Capítulo 36: Eu sou uma pessoa ruim?
O caminho de volta foi no mínimo curioso, paravam sempre que precisavam, em hotéis chiques pela estrada, e esse era um deles.
Elengaria fazia questão de ficar perto de sua filha a todo momento, ajudando no banho, penteando os cabelos que já passavam dos ombros da garota pequena, sorria orgulhosa dos lisos cabelos de Eliassandra.
Agradeceu por ela não ter puxado sua doença que tirava o pigmento de sua pele, cabelos e olhos, a deixando com a cor linda de seu pai, sua doença pareceu ter afetado apenas os cabelos e outros pelos de sua criança, como sobrancelhas e cílios.
Por outro lado, Eliassandra tentava se acostumar de novo com pessoas fazendo coisas para si, era uma princesa, afinal, essa independência que tinha adquirido enquanto vivia com Quevel e Ahrija não seria mais tão bem vista agora, então sua mãe lhe cuidava.
Banho, vestimentas, cabelo, aos poucos as roupas mais simples e confortáveis da vila eram substituídas por vestidos mais detalhados, mais… Bonitos.
Ainda não era perto do que usava no castelo, com todos aqueles tecidos e camadas, já se preparava psicologicamente para ter que usar tudo aquilo de novo.
Sua mãe não dava uma folga sequer, onde Eliassandra pisava, sentia o olhar atento dela como um falcão, o que conseguia entender depois de tudo que passou, mas não podia deixar de se sentir sufocada com todo aquele cuidado quase que excessivo de sua mãe.
Agora tinha seus cabelos escovados pela mais velha, cantando uma música antiga enquanto se perdia nos próprios pensamentos.
Eliassandra tentava ficar o mais parada possível, sua sorte era que seu cabelo era liso, o pente deslizava pelos fios esbranquiçados da princesa:
— Mãe?
— Você não me chama mais de mamãe? — Elengaria riu. — O que foi meu bem?
— Como estão as coisas lá em casa?
A rainha parou seu trabalho, olhando para a cabeça de sua filha, não sabia como deveria falar, o que deveria falar, sua filha parecia ser bem mais velha, mas ainda sim ela era uma criança, soltou o ar com uma leve risadinha:
— Seus irmãos sentem saudades, sua madrasta Leopolda pegou muitos livros novos para você. — Ela começou a falar. — Seu pai está ansioso pela sua volta, assim como eu estava, e Ana… Mesmo sendo durona, chorou comigo de felicidade.
Contou como se fosse um segredo confidencial a sua pequena filha, que respondeu uma uma risada divertida, mas no fundo não era aquilo que queria saber, mas sua mãe não falaria sobre os assuntos políticos de sua saída.
Tinha medo que alguém tentasse colocar qualquer uma das consortes no trono, o que só não aconteceu pela lealdade que as três tinham entre si, mas Eliassandra não sabia daquilo.
Lynn, o pequeno coelho que agora acompanhava sua filha, bocejou e se levantou da cama, dando pulinhos até sua dona, pulando no seu colo, como mãe preocupada não conseguia se apegar ao animalzinho excêntrico, ele era azul! E tinha antenas! Como aquilo poderia ser normal para eles? Mas parecia que aqueles dois eram ligados de algum modo, sempre estavam juntos de alguma maneira:
— Querida? — Elengaria chamou enquanto guardava a escova.
A cabeça de Eliassandra se moveu, olhando para a mãe por cima do ombro com certa curiosidade, ainda acariciava o coelho, mas agora, a mais velha tinha sua atenção:
— Falou sério sobre o menino dracônico? — A voz exitante da mãe chamou atenção da criança.
Os olhos bicolores da criança pareciam analisar sua mãe, como se lesse suas intenções cada vez mais a fundo, se medisse suas palavras para a próxima declaração:
— Sim, ele é meu amigo e quero ele no meu aniversário. — E a voz cortante de uma criança fez Elengaria estremecer, nunca entendeu por que ela tinha aquele ar frio às vezes.
— Querida…
— Isso não está aberto para conversa, o Ahrija vai no meu aniversário. — Agora ela falou completamente séria.
Não olhava mais para sua mãe, tinha voltado a acariciar Lynn, às vezes parecia que ela não tinha seus cinco anos, e sim bem mais idade, a garotinha se levantou para voltar para a cama, ao menos isso conseguia ter: uma cama só para si, mesmo que fosse pedido seu, sua mãe não queria.
Ser abraçada durante o sono, se sentir preso pela restrição que o outro corpo lhe dava não era algo que do qual tinha apreço, era diferente de dormir com Ahrija, os corpos pequenos numa cama enorme não deixavam eles sequer se tocarem, e claro, a conversa antes de dormir com Ahrija era boa.
Diferente de com sua mãe.
Elengaria era sua mãe, e a tratava como sua filha merecia ser tratada, como uma criança pequena, coisa que mentalmente não era, apesar de parecer.
Se deitou olhando o teto, contando algumas imperfeições que tinham ali, realmente focada naquilo, era seu jeito de adormecer, logo seus olhos começaram a pesar, sono ia chegando aos poucos, sua mãe ainda olhe olhava, vendo o corpo da sua filha adormecer.
Ainda observava sua filha quando se deitou também, aproveitando aquela calmaria, ainda tinha tantas perguntas, mas não sabia como as abordar, sua filha era pequena, não importava como ela agisse, ainda era uma criança pequena.
Com aquelas perguntas, Elengaria deitou-se na cama, olhando para a pequena Eliassandra que já dormia na sua paz, queria proteger sua filha das mazelas do mundo, sabia que a paz com o outro continente poderia acabar a qualquer momento, e não queria que ela fosse uma maga formada.
Não queria que ela fosse embora para longe de si, mas lembrando de como ela era talentosa com magia, sabia que logo esse momento chegaria.
Aquelas questões pesaram em sua mente, e aquele peso a fez demorar para dormir, seus pensamentos ruins, seu medo e sua ansiedade, tudo aquilo a fazia se remexer na cama, às vezes até perturbando o sono de Eliassandra.
Demorou.
Mas finalmente Elengaria adormeceu, com aquele peso no peito.
Conseguia ouvir aquela risada, aquela risada que conhecia bem desde sua vida passada, mas ela não estava mais lá, por que ainda o escutava?
— Acho que fugiria de mim? — Aquela voz asquerosa lhe fez tremer.
Suas pernas se moveram para correr, mas não foi tão longe, sentiu seus cabelos serem puxados para trás com violência, aquele hálito, aquela força.
Aquela cena!
Se lembrava daquele dia, de como tentou fugir para não concluir uma execução de um colega próximo, aquilo não era real, mas ainda sim… Porque lembrava tão bem?
As lágrimas já desciam pelo rosto, o corpo tremia inteiro, o ar lhe faltava, sentiu seu corpo ser virado com brutalidade, aquele calor descendo pelas pernas, exatamente como naquele dia, que se urinou de medo e foi ridicularizada por isso.
O coração batendo forte, o corpo fraco, as risadas, as palavras de insultos que diziam que ela não era nada além de uma arma, que deveria ser útil se não quisesse morrer como aquele seu amigo.
Aquilo não era real, ela sabia!
Mas por que sentia tanto medo…? Por que sua mente simplesmente não lhe convencia que era uma mentira? Não lhe convencia que era só uma viagem de sua cabeça!?
Seu peito apertava, seu corpo parecia ficar cada vez mais pesado, exatamente como daquela vez, sua visão ficando cada vez mais turva, até começar a escurecer…
Eliassandra levantou seu corpo num pulo, puxando o ar com tanta força como se pudesse morrer se não o fizesse, as mãos pequeninas estavam no peito, tentando acalmar seu coração que batia tão forte que achou sua mãe acordaria por conta daquilo, mas a rainha estava tão cansada que simplesmente nem se mexeu.
Lynn a olhava assustado, com as patinhas em cima de sua perna, mesmo sem entender o que, entendia a dor de sua dona.
A princesa não conseguia se acalmar, não naquele quarto, com cuidado, desceu da cama, em silêncio, seguiu para fora do quarto, agradeceu pela porta ser coisa de gente rica, sequer fez barulho quando ela abriu, tomando os corredores do hotel, que estava completamente escuro.
Ali, no escuro e sozinha, sentia o peito começar a se acalmar.
Seus passos pequenos e meio incertos eram acompanhados pelos pulinhos de Lynn, o local transmitia uma aura pacifica, mas ao mesmo tempo estranha, não era parecida com o que tinha com Quevel e Ahrija, mas daria pro gasto.
Parou na escada, olhando a escuridão lá embaixo, medindo se fazia sentido descer, poderia acender uma luz, mas talvez acordasse mais pessoas.
Se sentou nos primeiros degraus da grande escadaria, se acalmando finalmente, sentindo seu corpo mais leve após sua quase crise de ansiedade, não queria acordar sua mãe com seu barulho, mesmo que bem, era provável que ela acordasse de qualquer modo.
Que decisão burra não é mesmo?
Os olhos bicolores estavam perdidos, com foco completamente alheio a tudo, tinha tantos pensamentos na sua cabeça que se misturavam, sentia como se a mente estivesse pesada de tanta coisa junta, a saudade que começava a bater, suas memórias passadas que voltavam vez ou outra.
Era tão estranho, se perguntava como acabou naquela situação.
Será que aquele era um dos planos astrais e estava pagando pelos seus pecados?
Não, não teria uma vida boa como aquela se fosse um tipo de purgatório, talvez algo tivesse dado errado na sua reencarnação, e se lembrava da sua vida passada não é?
— O que me faz pensar… Quantas vidas eu tive?
Aquela pergunta começou a rodear a cabeça da criança, ainda com seus olhos distraídos na escuridão do fim da escadaria, será que reencarnação era dada a pessoas que são horríveis que precisam se redimir? Então tinha que ser boa nessa vida?
Que nó tinha na cabeça da garota!
Não sabia o que fazer, então se manteve naquele primeiro plano de tentar se perdoar por tudo que fez, mesmo que não soubesse como, então… Iria viver bem, ao menos evitar ser uma pessoa cruel de novo:
— Eliassandra?
Levantou o rosto para ver sua madrasta ali, Ana Bael, seus cabelos estavam soltos, usava roupa camisa simples e calças folgadas, não tinha cara de sono, então não a acordou:
— Ah, oi tia. — A pequena princesa saudou.
— O que está fazendo fora do quarto?
— Não consegui dormir.
Não entrou em detalhes mais que aquilo, não precisava, era apenas uma criança que não conseguia dormir, não é incomum:
— Falou com a sua mãe?
— Não quis acordar ela.
— Elia…— Ana sentou-se ao lado da criança, estendendo a mão para fazer carinho nos cabelos brancos de sua enteada. — Quer falar sobre algo?
Ficou em silêncio, fechando os olhos e aproveitando o carinho que lhe era dado, a sensação de se sentir criança era gostosa, ao mesmo tempo ter suas pequenas manias respeitadas:
— Eu sou uma pessoa ruim?
A pergunta surpreendeu a mulher, que parou o carinho e ficou olhando para Eliassandra sem saber o que falar, até dar uma risadinha, de onde ela tirou isso?
— Querida, claro que não. Você é um doce.
— E a maga de guerra?
Era a primeira vez que falou abertamente sobre aquilo, Ana Bael estava lá! Será que fez algo contra ela? A consorte por outro lado ficou sem palavras, nem mesmo seu filho perguntou tão abertamente sobre aquilo.
Eliassandra começou a se perguntar se falou algo errado, que raio de pergunta foi aquela? Ana estava na guerra! Quantos traumas ela já teve? Alguns até feitos por sua vida passada!
— Era uma guerra, Eliassandra, todos fizemos coisas terríveis, eu fiz coisas que me arrependo. — Ana finalmente disse.
Aquela fala…
Quer dizer que aquela mulher tão calma e legal, amorosa até! Ela fez coisas ruins? Não conseguia imaginar aquilo, e… E ela pareceu ter se perdoado! Então por que ainda era atormentada por aquelas coisas e lembranças?
— Não acho que ela era uma pessoa ruim, apenas tínhamos lados opostos, só isso.
Eliassandra ficou olhando para frente, meio pensativa, com os olhos focados na escuridão, era só isso?
— Eliassandra?
— Você me odeia?
A pergunta saiu do nada, como um golpe certeiro, deveria ter formulado melhor, mas aquela dúvida rondava sua mente, deixava seu coração inquieto, estava assim desde a peça dos aures.
Ela era tão odiada assim?
— Não, eu não te odeio.
Não sabia por que aquelas palavras não chegavam em seu coração, ela não sabia, como podia responder aquilo tão levianamente? Mas não podia a culpar por isso, não era algo que poderia falar abertamente.
Tinha medo de ser rechaçada.
De perder sua família.
Eliassandra se levantou, com Lynn lhe acompanhando enquanto ela dava as costas para sua madrasta:
— Obrigada, senhora.
Ana ficou ali, acompanhando as costas da sua enteada sumir na escuridão, não conseguia entender aquela criança, na verdade achava que ninguém seria capaz de um dia entender Eliassandra, ela era estranha.
Mas lá no fundo, sentia um amor pela sua enteada, não era sua filha, longe disso, mas sendo uma criança órfã, talvez não quisesse aquela separação entre os filhos, queria que Eliassandra tivesse a mesma proximidade que Ian e Ferrer tinham e esperava de todo coração que isso fosse possível.
Esperou um pouco e se levantou para voltar para o próprio quarto, dentro de alguns dias estariam de volta para o palácio real, onde seu marido e pai daquelas crianças esperava sua preciosa filha.
Deu uma risada lembrando dos sorrisos de Ricardo, de fato, ele era um bom pai e um bom rei, estava ansiosa para voltar.
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