Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: Não tem o dom

Parece que os dois príncipes realmente estavam se apegando à nova irmãzinha, talvez por ela ser muito fofa? Ou talvez porque Elia era uma manipuladora de primeira, mas a verdade era que ambos pareciam os irmãos mais velhos descolados da pequena.

Tanto que até incluíam ela em alguns planos, mesmo que supostamente, Elia não entendesse nada disso, mas ela entendia.

Estava vendo Ian provar seu novo uniforme da Academia de Magia da Trindade de Malial. Na outra vida tinha poucas informações sobre essa escola, um local onde jovens conseguiam ir para aprender magia, nunca teve essa oportunidade, quando descobriu a sua magia simplesmente foi jogada no meio de um treinamento militar.

Mesmo que fosse conhecida como genia, entre outros nomes que não iria querer mencionar, sempre teve muita dificuldade com o básico, sabia fazer magias grandiosas, de grandes curas ou grandes devastações, mas se a pedissem para manipular a mana e acender uma vela ela não saberia o fazer. Mas para uma guerra, seu nível de magia era extremamente elevado e cobiçado.

Mas o foco era Ian, que experimentava um dos uniformes que tinham sido dados a ele pela escola, uma calça cinza com uma listra lateral preta, uma camisa branca com um casaco preto com o brasão da escola nas costas, esse era o dito uniforme principal, aquele que usaria no seu dia a dia:

— O que achou? — Ele se virou não só para os irmãos, mas para a sua mãe, Ana Bael, que estava entrando.

— Ficou muito bom. Por sorte nossa, Elia nasceu sem magia.

Eles sempre pareciam falar assim, mas para Elia aquilo não era algo bom, se sentia completamente impotente sem magia, algo que era tão comum a ela na outra vida, agora não tinha.

Mas para os irmãos e a família, isso queria dizer proteção, proteção era algo que Eliassandra não entendia, na sua antiga vida vivia sendo arriscada, até mesmo quando tinha o auge de seu poder era jogada em missões que talvez não voltasse com vida.

Ninguém jamais se importou com sua vida.

Não até agora.

Aquele carinho e cuidado eram tão estranhos, mas poderia gostar daquilo, se acostumar, todavia, ainda queria ter sua magia de volta.

Como uma maga experiente de sua outra vida, preservando seus conhecimentos, sabia que existiam modos de ter sua magia, mas seria complicado.

Tinha aprendido com alguns não nascidos, assim eram chamados os sem magia, que o fato de nascerem assim era porque suas veias de mana estavam obstruídas, mas tinha modos que conseguir tirar as impurezas do corpo, só tinha um porém: era extremamente doloroso, o que fazia algumas pessoas demorarem anos até se livrarem de tudo que as impedia de fazer magia.

Para Elia, essas pessoas sempre foram azaradas, e quem diria que ela estaria arcando com o mesmo azar, não é mesmo? Queria ter prestado mais atenção nas conversas daquelas pessoas, mas estava ocupada sendo uma arma de guerra:

— Quando é mesmo o primeiro baile de apresentação da Elia? — Ian questionou.

— Como pode ser tão esquecido? Os bailes acontecem no aniversário de cinco anos. Sempre assim. —Ferrer explicou. 

Teria um baile? Bem, claro que teria, afinal ela era uma princesa, mas não sabia se queria, se pudesse pular alguns… Não, precisava ser uma filha exemplar e dar orgulho para a mamãe, tinha que ser o melhor que conseguiria:

— É engraçado como a primeira palavra dela foi o nome do Ferrer. Queria saber quando vai falar meu nome. — Ian fez bico.

Era apaixonado pela irmãzinha, diferente de Ferrer que teve que ser conquistado, Ian sempre amou a ideia de ser irmão mais velho, especialmente de uma garotinha:

— Logo logo querido, ela ainda é pequena. — Sua mãe sorriu

Mas Eliassandra já falava.

Sabia falar perfeitamente em muitos idiomas diferentes, cortesia da vida passada, só estava medindo até onde poderia falar, e como falar. Não lembrava da sua primeira infância, então como imitaria um bebê falando? Suas lembranças mais antigas datam dos nove anos, quando a guerra apertou, sua mãe levou e seus poderes despertaram.

Tudo que viveu de relevante foi dentro de um quartel ou no campo de guerra, fora isso, tinha poucas lembranças boas, algumas com alguns amigos que fez, mas que logo foram tiradas de si:

— Mamãe! A Elia ‘tá chorando! — Ian exclamou.

Elia por outro lado nem percebeu que chorava, aquelas lembranças de quem já foi lhe cortavam o peito, nunca teve chance de chorar pelas mortes em sua vida passada, era fraqueza. Deveria engolir suas emoções e ser apenas a maga exemplar que iria ganhar a guerra.

Agora chora naquele corpo diminuto de bebê que estava prestes a completar seu primeiro ano de vida, chorava alto, despejando todas as suas frustrações de uma vida sofrida e amargurada:

— Chame a rainha. — A consorte Ana Bael pediu ao criado.

Tentava de forma inútil aplacar o choro da criança, mas ela não entendia sequer por que estava chorando, como poderia entender? Ninguém entenderia aquela criança, nem que ela tentasse.

Foram longos minutos de choro até que seu fôlego começou a fazer falta e seu choro começou a ficar mais distante, cada vez mais até sua mãe chegar:

— O que aconteceu? — A rainha perguntou pegando sua pequena filha.

— Eu não sei, ela só começou a chorar.

A rainha Elengaria começou a ninar a criança que ainda soluçava, mesmo sem chorar, parecia apenas um bebê pequeno em suas crises de choro comuns, a rainha até sorriu fazendo carinho no rosto de Elia:

— Calma calma, eu já estou aqui. — Elengaria sussurrou.

Os olhos atentos de Elia estavam agora focados na mãe, que a ninava de um jeito tão doce:

— Será que é fome? — Ana Bael sugeriu.

Não, não era fome! Elia não queria comer, ser amamentada era um terror, não conseguia se acostumar com aquilo de jeito nenhum e mal via a hora de seus dentes começarem a crescer e poder comer coisas sólidas de novo.

Por hora só tinha uma gengiva sem nada que pudesse a auxiliar nisso, por isso tentou empurrar a mãe e negar com a cabeça, fazendo a consorte dar uma risada baixa daquilo:

— Talvez seja hora dela começar a comer papinha. — Sugeriu.

Sim!

Mesmo que a textura pudesse ser horrível, era melhor que ser amamentada, qualquer coisa seria melhor que essa sensação horrível, às vezes odiava ter renascido com tantas memórias de quando era mais velhA:

— Tem certeza que ela já tá na idade de comer essas coisas?  — Elengaria questionou.

— Ah, o Ian começou a comer com três meses, sabe, por conta do meu problema…

Ao que parece, a consorte Ana Bael apesar de ser uma mulher adulta, não teve seu corpo totalmente desenvolvido por dentro, o que fez sua gestação ser muito complicada, talvez por isso tenha sido a única dela. Ian era seu filho amado, mas ela jamais passaria por aqui novamente.

Elia se questionava se algum dia iria ter outro irmão, ou seria sempre a mais nova da familia, não sabia se sua mãe teria outro filho, mas quem sabe a dama Leopolda teria mais uma criança, claro, se seu pai a procurasse.

Ana e sua mãe parecia conversar alegremente enquanto seus irmãos pareciam estar no próprio mundinho deles, conversando sobre como seria a nova escola, e essa conversa interessava muito mais a Elia do que a maternidade de sua mãe e sua tia.

Ferrer e Ian tinham apenas um ano de diferença, mesmo que as suas mães tenham se tornado esposas na mesma época, Ana demorou mais para engravidar do que Leopolda, e mesmo com todas as dificuldades, Ian parecia ser mais forte que seu irmão mais velho.

Ian era mais baixo, mas mais robusto que seu irmão mais velho, desde novo mostrou aptidão para luta e magia elemental, sendo essa sua aura, pelo que ouviu falar seu elemento favorito era fogo, mesmo que fosse um gênio tendo três elementos a sua disposição fora fogo: raio, água e gelo.

Um quadraelemental.

Era raro, o garoto era realmente uma peça rara, mas Ferrer não ficava atrás, apesar de não ser chamado de gênio em batalha como o irmão, ainda sim tinha uma aura celestial, deveria ser um garoto cheio de potencial, ainda que novo.

Mas quem queria enganar sobre ser novo?  Tinha entrado numa guerra quando tinha quase a mesma idade, ao menos seu irmão mais velho teria uma vida melhor que a sua, quem sabe até mais longa:

— E sobre a educação dela?  — Ana Bael questionou chamando a atenção de Elia.

— Bem, acho que ela será educada no castelo de qualquer maneira, sei que só saberemos quando ela tiver seus cinco anos, mas acho que ela não tem magia nenhuma. — Elengaria suspirou, mas no fundo ela estava feliz.

Sem magia queria dizer que sua filha estaria segura de qualquer perigo, se uma guerra estourasse por aquela paz com o outro continente se tornar fragil, ela estaria segura sem ir para o campo de batalha.

Mal sabia sua mãe que Elia não pensava em continuar uma sem magia qualquer, queria ser o melhor que poderia ser para sua mãe.

Para aquele reino em geral, afinal foi responsável por várias das dores que eles sentiram ao longo de toda aquela guerra, quantas pessoas matou em nome de seu reino?  Por um momento perguntou a si mesma se os seus antigos soberanos souberam de sua morte?  Se ao menos tivesse um funeral? 

Todas aquelas ideias foram derrubadas com a frase que sempre escutou “Soldados morrem e são jogados em valas, só generais tem enterros” mesmo com todas as suas vitorias nunca subiu de patente, talvez agora que morreu eles tenham lhe dado essas honrarias.

Era mesmo uma piada.

Acabou não prestando mais atenção no que as mais velhas falavam, estava emburrada, ao menos era isso que elas falaram quando repararam na expressão mais fechada de Elia:

— Ela é mesmo uma criança séria. — Ana Bael falou.

— Não sei a quem puxou, eu e o pai dela somos tão sorridentes. — A sua mãe sorriu fazendo carinho no seu rosto com cuidado.

— Talvez ela esteja com sono. Passou a tarde com os garotos.

E por falar neles, Ian já tinha deixado de experimentar os uniformes, colocando uma roupa diferente, com algumas partes de couro:

— Mamãe eu estou indo treinar. — Ele disse sorrindo.

Nem deu tempo de Ana Bael responder, já estava correndo para fora, Ferrer por outro lado suspirou, negando com a cabeça com a atitude do mais novo:

— Estou indo para a biblioteca, dama Ana, majestade. — Ele fez uma reverência e saiu deixando as duas sozinhas.

Ana Bael, sempre risonha, balançou a cabeça divertida, achando graça naquilo tudo:

— Ele é igualzinho a mãe, talvez Ian seja igual a mim. — Cantarolou.

— Ele tem a mesma personalidade amável, garanto. 

E então se despediram, Elengaria precisava cuidar de sua pequena filha e Ana iria ver o filho. A rainha seguiu pelos corredores que levavam ao seu quarto, aproveitando a calma que tinha.

Sua filha era calma, não chorava durante a noite, nem muito durante o dia, era calma e controlada na maior parte do tempo, às vezes a fazia questionar se era mesmo uma criança pequena, parecia uma velha no corpo de um bebê.

Enquanto andava, pode avistar a figura alta de seu marido, vindo do outro lado, o rei Ricardo abriu um enorme sorriso ao ver sua esposa junto com sua filha:

— Vim ver como estavam. — Ele falou com aquele sorriso animado que era reservado apenas à sua família.

— Ela estava com os irmãos, e Lady Leopolda, como está? 

A dama da corte e segunda esposa do rei era uma mulher conhecida por ser forte, e quando acordou indisposta acabou alertando todos ao seu redor, por isso Ricardo resolveu passar algum tempo com ela:

— Já está melhor, felizmente Leopolda é um touro. — Parecia ter orgulho na sua voz.

Empurrou a porta para abrir e sua esposa entrar primeiro, seguindo logo depois, Elia foi colocada no berço enquanto Elengaria sorria, mas dessa vez mais triste do que estava acostumada:

— Espero que ela fique melhor, não quero pensar em como Ricardo ficará se a mãe tiver uma piora. — Confessou se sentando no sofá.

— Não precisa se preocupar com isso, ela ficará bem, e você, meu doce, como está?

— Cansada. — A rainha sorriu.

Quando o rei sentou ao seu lado ela começou a falar de todos os seus temores para a criança, Elia tinha pouco mais de seis meses, mas era tão quieta que às vezes a preocupava, fora que tinha medo dela ser rejeitada pelo povo ou pela família.

Cada palavra era carregada de certa dor, aquela nuvem de ser insuficiente ainda pairava sobre ela, mesmo que Elia já tivesse nascido, ainda tinha medo, afinal tudo indicava que era uma criança sem magia.

E todos esperavam uma criança magica, forte, incrivel, e sua filha já deveria ser considerada um milagre por sobreviver, mas sabia que seria insuficiente:

— Querida, ninguém vai dizer isso. — Ricardo tentou argumentar.

Não suportava ver sua esposa daquele jeito, mesmo com o nascimento de sua filha, ela ainda tinha toda aquela tristeza, não sumiria de um dia pra noite, sabia de tal fato, mas pensou que talvez ela estivesse melhor:

— Não dirão na nossa cara, mas com toda certeza vão envenenar Leopolda e Ana contra mim, dizer que Elia não merece ser herdeira — Elengaria despejava todas as suas frustrações no marido.

Não era por querer, mas Elen só tinha Ricardo, não podia despejar isso na sorridente Ana Bael, nem na sempre fria Leopolda, as duas não iriam entender suas frustrações, afinal era a rainha, seria simples acabar com qualquer boato, então por que sofrer? 

Ricardo colocou suas mãos ao redor do corpo da esposa, puxando ela para perto, sentindo o corpo da mulher tremer em soluços violentos quando o choro se iniciou, não sabia o que falar para acalma-la, o que poderia falar?  Que mataria qualquer um que questionasse o merecimento de Elia? 

Foram longos minutos nesse choro, com o corpo sendo segurado pelo marido em soluços tão sofridos, até finalmente erguer os olhos para ele:

— Ricardo, você amaria a Elia do mesmo jeito que ama o Ferrer e o Ian?  Mesmo se ela for apenas comum? 

— Elen. — A voz ficou firme com aquela pergunta. — Elia também é minha filha, tanto quanto os meninos, ela é minha princesinha. Eu amo todos igualmente, de modos diferentes.

Elen estava se acalmando aos poucos, o corpo já tinha parado de tremer, estava ofegante enquanto Ricardo lhe entregava um lenço para que ela enxugasse o rosto:

— Como assim diferente? São seus filhos, não deveria ser igual? 

— Eles são pessoas diferentes, eles se tornarão pessoas diferentes, Ian desde pequeno sempre se pareceu comigo, cheio de energia, animado e com um gosto por lutas natural, já Ferrer é frio e centrado, ele lembra minha mãe e também a Leopolda, eles são completamente diferentes, mas eu acabo passando mais tempo com Ferrer por ele ser o herdeiro. — Ele explica com calma, ajeitando as mechas de cabelo de sua esposa. — Não sabemos ainda que tipo de criança ela será.

— Mas você vai amá-la?

— Elengaria, meu amor, eu já amo nossa filha.

Falou aquilo abraçando o corpo mais magro de sua esposa, passando uma sensação de carinho e proteção que só ele poderia passar:

— Eu te amo Ricardo. — A voz chorosa de Elengaria cortou o ambiente.

— Eu também te amo, minha pombinha.

Elia estava sentada no berço observando aquela cena, esses eram os temores de uma mãe? Ver sua mãe chorando partia-lhe o coração, decidiu que não contaria quem era de fato se não fosse necessário, não queria ser motivo do choro dela.

 

Rei Ricardo



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