Volume 1
Capítulo 9: Novos Amigos, Velhos Inimigos {1}
Quando a chuva cessou, já era dia. A noite fria não foi o pior desconforto para a jovem que dormiu sentada na varanda. A crise se arrastou do pôr do sol até tarde da noite, onde cedeu à exaustão.
Sentada na varanda, dormia feito pedra em consequência do dia anterior. Mesmo em seus sonhos, não podia escapar dos pesadelos e da culpa que pesava em seu coração. Hora ou outra se remexia, executava movimentos bruscos e até falava poucas palavras, como se chamasse alguém – e realmente estava, ou quase.
Ela grunhiu no exterior, frustrada por algo no mundo imaginário do consciente. Lá, corria sob um oceano de trevas atrás de um animal cintilante, roxo como uvas. A forma e movimentação da criatura a lembravam de uma raposa.
A perseguição a trazia um singular gosto do passado, memórias dormentes que antes tentou esquecer. A magia da infância perdida muito longe do seu alcance.
Do lado de fora, a porta da frente se abriu e, de lá, Alex saiu, equipada até os pés. Vestia uma jaqueta rudimentar de linho, tingida como um campo de trigo. A blusa por baixo entrava para dentro da calça, esta firmada por um cinto de couro, donde pendurava-se a bainha para a espada longa que guardava consigo.
Assim que viu a jovem encostada abaixo da janela, a ferreira esboçou uma careta confusa e, de certa forma, incomodada. Guardou as chaves no bolso da aketon e caminhou até a garota encolhida no canto, encarando-a por bons segundos antes de agir.
— Ei. — Não teve nenhuma resposta além do leve ronco de Emma.
Ela cerrou o olhar, impaciente.
— Aí, acorda! — Com um pouco de insistência – e gentis chutes -, a condenada levantou de supetão, colidindo com a cabeça no suporte da janela logo acima.
— Agh! Minha cabeça... — Ela levantou o olhar velozmente. — Qual é o seu problema hein?!
— Essa pergunta deveria ser minha. — Ao identifica-la pela voz, Emma logo se conteve. — O que cê tava fazendo dormindo aí? Podia ter pego uma das casas, sei lá.
— E-Eu...
— Pode estar quieto agora, mas durante a noite esse lugar fica bem frio, pode ser perigoso. — Encerrou o sermão de braços cruzados, munida de um olhar indiferente. — Na verdade, esquece. Vai ficar aí no chão ou vai levantar duma vez?
Quase que seguindo um comando, Emma saiu do chão toda desajeitada, quase tropeçando para trás e indo direto pelo parapeito. Ela bateu nas roupas para limpar o mínimo de sujeira e, então, voltou o olhar para a loira.
— Assim tá melhor. Espera aí, vou pegar algo pra você.
— Alexandra! — Ela parou com a mão na maçaneta, prestes a girá-la.
— Sim?
Emma virou os olhos para longe, incapaz de fitar a ferreira em razão das lembranças ainda frescas do dia anterior. Com uma mão apertando o outro braço, ela disse:
— Sinto muito pela sua mãe. Eu não queria...
— Não esquenta — a universitária se encontrou num misto de descrença e alívio. — A culpa não é sua, embora deva admitir que me custou um tempo pra aceitar isso.
O silêncio da invasora lhe serviu como resposta. Vista a inabilidade dela em continuar a conversa, Alex adicionou antes de abrir a porta e entrar de vez:
— Vamos cumprir a minha parte do acordo.
Uma vez no interior, Emma disparou atrás dela até o batente. Ali, observou-a eufórica, as palavras na ponta da língua, um contraste grande se comparado à calma com que ela deslizava o indicador por cada arma disposta na mesa central.
— Que tipo de espada você gosta? Bom, tem vários estilos aqui, aprendi com um cara muito bom em Sonnenland. — Alex olhou brevemente para Emma e, mesmo deparando-se com a expressão atrapalhada da garota, continuou com o pensamento: — Hmmm... acho que pra você uma mais leve seria perfeita. Cimitarra, gládio, florete... talvez mais simples?
— Alexandra... — chamou, incrédula.
— Só Alex — corrigiu. — Fica mais fácil assim.
A indiferença somente fez Emma mais estressada. A tênue calma que ainda mantinha se foi numa explosiva reação descrente.
— “Fica mais fácil assim”?! Do que isso importa no fim? — Mesmo a paciência da armeira se foi depois da fala da garota. — Sua mãe morreu, Alex! Você devia...
— Estar chorando? — Adicionou, mirando a vista na outra. — Talvez rolar no chão, gritar, me remoer, qualquer coisa inútil assim?
— É... sei lá, talvez.
— Emma, eu acho que você ainda não entendeu. É tão difícil aceitar que as pessoas tem suas diferentes formas de luto? Chorar não vai trazer ela de volta, nada vai. — O olhar de Alex foi ao chão, resoluto.
— M-Mas.
— Quer que eu repita? A culpa não foi sua, droga. Ela sempre pensou nisso, não teria feito se não pensasse. Minha mãe foi muito egoísta, porém, eu seria hipócrita se dissesse que não estava sendo também. Ela achava que era um peso pra minha vida, então se matou sem nunca conversar sobre comigo. É claro que eu percebia a atitude dela, mas nunca comentei nada por... medo, eu acho.
— Alex, isso...
— Mas eu também não estava pronta pra deixa-la ir, então acabei por ignorar toda a dor que ela sentia. No final, ela pensou mais em mim do que ela mesma. — De punhos cerrados, ela adotou um semblante resoluto. — Eu sabia que não poderia salvar minha mãe, o que aconteceu ontem foi... uma libertação pra ela de todo esse mundo ferrado.
Sem a resposta da colega, Alex escolheu a espada mais equilibrada que conseguiu encontrar. Mediu-a várias vezes com a própria força, supondo que aquela seria a melhor. Se estava correta ou não, só a experimentação diria.
— Falando nisso, eu sei que ela não me deixaria sem um propósito, nada pra seguir. — Ela trafegou entre as armas pela última vez, contemplando toda a prova de seu trabalho duro. — E eu também sei que ela não morreria sem contar a verdade pra alguém que pudesse.
O olhar que direcionou à Emma fez a viajante recuar, e ela a seguiu.
— Meu objetivo é descobrir pelo o que minha mãe morreu, saber se o que há além dessas planícies ou em qualquer lugar fora dessa vila cafona realmente vale a pena. Acima de tudo, vou encontrar a verdade por trás dele e, sei lá, entender o que ela queria que eu achasse.
A de cabelos negros permaneceu calada por mais alguns segundos antes de dizer:
— Estaria mentindo pra você se dissesse que não sei de nada. Mas ainda não posso contar... nem eu sei de tudo.
— É uma jornada de aprendizado então? Poderia ser pior. — Em uma demonstração de sua gentileza característica, Alex entregou a arma para Emma e, ao mesmo tempo, a empurrou para abrir caminho.
Deixada de lado pela ferreira, a feição de Emma denunciava a pertinente confusão que a acompanhou desde que acordou. Os pensamentos só se organizaram novamente quando Alex desceu para a rua de barro, o que a fez segui-la apressada.
— E-ei! Alex! Onde pensa que tá indo assim do nada?
— Por que você não me diz?
— Quê?
— Fala sério, eu preciso mesmo explicar tudo pra você? — Embora um tanto frustrada, manteve o sorriso de canto. — Andar com você vai me proporcionar tudo o que planejo fazer, e esses bracinhos aí não vão dar conta de uma luta sozinhos, vão?
— Ahn?! Pra sua informação, eu sei me defender sozinha!
— Mesmo? Qual sua experiência com espadas?
— Isso é... — Ela estava obviamente encurralada, então, fez o que sabia fazer de melhor: — Eu já fui faixa azul no jiu-jitsu!
— E pelo visto esqueceu todos os ensinamentos que vem com ela, né? Heh! — A risada zombeteira foi a gota d’água para Emma.
Entretanto, ao contrário da habitual reação agressiva, ela deu-se por vencida – ao menos para um de seus questionamentos.
— Tá bom, tá bom! Mas e quanto a minha opinião? Eu nunca disse que queria você do meu lado.
— Bem, não é querendo ser presunçosa nem nada...
— Você está sendo!
— ...Mas eu acho que você vai precisar duma companhia. Além do mais, é vantajoso pra nós dois, qual o motivo de toda essa resistência?
Mesmo com a resposta em posse, Emma hesitou. Por pouco não se conteve de contar a verdade e sua razão para estar ali. Não conseguiu decidir o que pesava mais entre abdicar do receio ou contar a verdade. Depois de alguns instantes em silêncio, ela se decidiu por fim:
— Ah, esquece! — Ela tomou a frente da caminhada, pegando Alex desprevenida. — O que é que você tá esperando? Não vai voltar atrás agora, vai?
Ainda surpresa, ela demorou alguns instantes para processar o que estava acontecendo. A rápida transição de pensamento da colega não fazia muito sentido, mas ela pouco se importou.
— Claro que não! — Foi até o lado da parceira, oferecendo-lhe o melhor sorriso que podia dar no momento. — Podemos?
— Achei que não ia perguntar.
Os primeiros passos da jornada das duas davam-se ali, na estrada de terra que passava Wast, estendia-se até os campos verdes e além. Alex olhou para trás pela última vez, esboçando um leve sorriso ao ter o vislumbre de todas as memórias que teve ao lado de Helena.
Duas lágrimas inevitáveis escorreram pelo rosto da ferreira antes que ela se virasse para frente para encarar o futuro que lhe aguardava. Emma, por outro lado, não distanciou o olhar do caminho adiante, focada na concepção de qualquer plano.
Mal sabiam elas, no entanto, que estavam em rota de colisão com algo. Melhor, não algo, alguém.
Já a uma distância considerável da aldeia, tudo ao redor fora substituído pela singela paleta do infinito prado. O sol punia as vagantes, sem esperança de uma única árvore nos quilômetros a seguir, só a interminável grama alta e algumas rochas.
As árvores mais próximas estavam nas áreas onde as planícies descem junto ao rio e terminam ali, substituídas por um longínquo tapete arbóreo. Todavia, tal floresta não estava nem perto da vista.
Alex, acostumada ao calor da forja, reagiu muito diferente de Emma, cobrada pelo tempo trancada no apartamento escuro em que vivia, longe da luz solar. Para agravar a situação das caminhantes, elas seguiam cegamente um rumo não existente.
Tratava-se da mútua confiança entre Alex e Emma. A ferreira confiava na companheira e esta, por sua vez, retribuía com profundo silêncio e nenhum objetivo firmado.
Este cenário durou até mais do que o esperado em uma relação do tipo, mas teve seu fim quando a armeira perguntou:
— Pra onde estamos indo mesmo?
A fatal indagação retirou Emma do estado de transe solar em grande surpresa, incapaz de formular a resposta sem hesitação. Em seguida, ela deu os sinais que denunciaram sua condição: desvio do olhar, silêncio, atitude inquieta, todas as ações que Alex vira uma vez estavam se repetindo.
Diferente das primeiras vezes, no entanto, ela já estava quase letrada no roteiro comportamental da parceira.
— Você não tem ideia, né?
— Cala a boca.
— Pelo bom Deus... maldito foi o dia em que decidi te acompanhar.
— Isso faz literalmente menos de uma hora!
— Com o tempo que estamos caminhando, parece que tem mais!
Emma cruzou os braços, concordante.
— Tá certo, eu não pensei num lugar em especial.
— Não é como se esse continente tivesse algo especial, mais fácil escolhermos o menos fodido.
A líder da diminuta excursão ponderou sobre tudo o que havia descoberto até então. De todos os nomes que tinha, só havia um que fora repetido significantemente mais: “Stawrin”, ou, como alguns chamaram, “a fronteira”.
— Que tal Stawrin?
— E ela escolheu justamente o pior lugar...
— Caralho, você é mesmo difícil de agradar, viu?
— Não tô reclamando... só pensei alto.
— Afinal, qual o lance com esse lugar que todo mundo fala?
— Bom... — Antes de conseguir explicar, porém, Alex avistou uma silhueta na distância, vindo na direção oposta a elas. — Ah, olha! Tem uma pessoa ali!
— Tem certeza que é uma pessoa mesmo?
— Nenhum daqueles fantasmas fica fora das cidades, é alguém sim! — Ela então começou a acenar para a figura próxima. — Oi! Aqui!
— Não tenho um bom pressentimento sobre isso.
— Aquieta aí, esquentadinha, não é como se fosse algum assassino, certo?
— E você acabou de foder com tudo.
À medida que a distância diminuiu, maior era a apreensão que Emma sentia quanto à tal sombra. Contava na cabeça cada passo dado, ansiosa por alguma razão que nem mesmo ela era capaz de explicar. Sentia-se como a raposa cintilante que caçou nos sonhos. A diferença gritante era o fato de que ela estava indo direto para os dentes da caçadora.
No momento em que a distância se resumiu em alguns poucos metros, Emma parou de andar. Alex continuou e, instantes depois, fez o mesmo, não pela mesma razão, mas para encarar a face tensa e trêmula da colega.
— Emma? Qual o problema?
— Ah! Então era mesmo você... — Outra voz feminina falou, próxima o bastante para que ambas ouvissem com clareza. — Essa expressão amedrontada, não tinha como eu esquecer. — A mulher abriu um grande sorriso, enquanto a condenada recuou um único passo para trás.
Percebendo o clima da situação, Alex lentamente retrocedeu com a mão no cabo da espada, pronta para puxá-la a qualquer instante.
— Vocês se conhecem? — Ela sussurrou.
— Claro que nos conhecemos. — A outra falou, surpreendendo Alex. — Viemos pra cá juntas, não é? Emma Adams.
— Garça... — disse, dando o máximo para não tropeçar nas palavras. — Então realmente vieram me procurar.
— É claro, afinal, você é muito importante para Amber e Altair, não é? — Ela disse em tom sarcástico. — Demorou um pouco pra cruzar a floresta no pé da montanha e chegar até aqui, mas finalmente te encontrei.
E, ali, criou-se um impasse.