Volume 1
Capítulo 8: Espectros
Emma ainda estava incerta quanto ao seu próximo passo, mesmo depois de ponderar por alguns minutos abaixo do altar. Queria convencer-se que não tirou um tempo para digerir toda a torrente de sensações anteriores, mas o rubor que lutava contra a pressão das suas bochechas contava outra história.
Viu-se numa situação delicada, complicada até demais. Ela tinha que fazer algo, isso era certeza, mas não sabia o que exatamente. Afinal...
“Ela nunca disse qual era o plano”, o pensamento foi o que fez as esperanças desabarem de vez.
Sendo o objetivo tão claro quanto uma poça de piche, a garota se viu inevitavelmente perdida naquela espiral cíclica de problemas, conectados e sempre voltados para a mesma situação maior: não havia nada definido.
“A menos que...”, foi então que ela entendeu ou, ao menos, pensou ter entendido.
Havia uma justificativa cabível – que ela conseguia pensar -, e essa era justamente o “plano” que tinha com a cultista. Encontrá-la não seria fácil e, se fosse fazer, tinha que ter as palavras de Amber na mente.
“Salvar essas pessoas... só pode ser brincadeira, não vou fazer isso sozinha.”, Emma levou a mão ao queixo, pensativa.
Seu rosto torceu-se em frustração diante a realização fatalista de que, se quisesse chegar à sua parceira e deter o culto, precisaria de um exército. Mas, também estava claro que ela não era nenhuma grande líder. E sua faca não seria o bastante, pra início de conversa.
— Acho que tudo tem um começo, né? — disse para si mesma, uma tentativa infrutífera de ser positiva.
Ergueu a cabeça e olhou os arredores, muitas pessoas, mas nenhuma parecia se desprender do pacato cotidiano que os amarrava àquela existência. Contudo, Emma logo notou que não se tratava de uma simples rotina. De fato, era algo muito robotizado até para o humano mais submisso.
Ela saiu de seu encosto no pilar e caminhou com incerteza até uma dessas... “pessoas”.
Uma moça perdida na moda camponesa medieval, quase um retrato vivo das imagens que Emma via nos livros de história. O cabelo caramelo queimado unido num coque, deixando o resto caindo abaixo no pé do ouvido. Trajava um longo vestido cuja saia alongava-se até os calcanhares, firmado por um colete unido a um avental por linhas de costura rudimentar.
Ela repetia o mesmo movimento de varrer o chão, um padrão infinito, simulacro de cada ação anterior. Olhando bem ao redor, todos faziam algo parecido, mas executavam uma tarefa distinta – ainda assim, infindável.
— É... moça? — Prevendo a falta de uma resposta, Emma estendeu a mão para extrair algo, qualquer coisa que provasse o contrário a suas terríveis suspeitas.
Nada foi feito. Reação imediata, desvio, nem mesmo uma troca de olhares. Todavia, dizer que nada aconteceu seria uma afirmação errônea. A condenada arregalou os olhos, incrédula quanto a estranha descoberta. A palma que estendeu nunca encontrou o ombro amigo que mirou. Ela, na verdade, atravessou direto, caindo para o vão existencial que a ilusão tentava ocupar.
— Q-Que porra?! — Ela recuou por instinto, obtendo uma visão ampla do fenômeno que se seguiu.
O fantasma digital ondulou dos pés à cabeça, despedaçando-se e reunindo-se em uma imagem deformada do que já foi um dia. Isso aconteceu dezenas de vezes em poucos segundos. O glitch não permaneceu no paciente zero, e logo se espalhou para as aparições vizinhas. O pesadelo multicolor foi acompanhado por sons deturpados pelo mesmo erro que destruía as imagens e, entre todos, um se destacava.
As batidas incessantes de um martelo.
Bam!
O sussurro sibilante do ruído branco invadia a cabeça da jovem junto do choque de ferro contra ferro. A cacofonia não durou muito, e toda a onda de defeitos também cessou segundos depois, deixando para trás apenas o aterrador silêncio.
Em questão de segundos, todos os supostos moradores desapareceram. Ficaram para trás somente as construções e ruas vazias. A vila – antes habitada por aparições digitais – havia se tornado, ironicamente, fantasma.
Mesmo assim, algo ainda perdurou. A pancada no aço que atormentou Emma continuava, vinda de um lugar não tão distante, numa construção mais baixa que as habitações comuns, compensando isso em seu comprimento avantajado. E, do telhado vermelho escuro, fumaça negra escapava para o céu azulado por uma pequena chaminé.
— Uma... forja? — chutou. — E quem é que tá naquele lugar?
Curiosa e sem muitas opções, tudo encaminhava para a direção das batidas. Andou contra o vento do início ao fim, este que carregava o cheiro das cinzas originárias de chamas recém acesas. O chão de terra terminou no pé das escadas que subiam até a varanda, por onde ela passou para alcançar a porta.
Atravessou o batente, ocasionando o badalar do pequeno sino sobre a entrada o que, consequentemente, interrompeu as marteladas. O som agudo do choque entre metais deu lugar para passos apressados vindos do outro cômodo. Pela sequência de barulhos contra o chão e periódicos “ai!” ou “ah!”, Emma supôs que a pessoa que estava prestes a encontrar era tão ansiosa quanto era desastrada.
“Pelo menos parece real”.
No caminho até o balcão principal, notou mesas, barris e outras diversas formas de armazenamento, todas cheias até a boca com armas de todos os tipos: tipos diferentes de espadas, lanças, machados, martelos, maças e até mesmo alabardas, todas partilhando do mesmo brilho, como se nunca tivessem saído da posição em que foram postas.
O quarto oculto se abriu num estrondo e, de lá, uma garota cambaleou até o balcão, onde se segurou para recuperar o fôlego. Ela era alta, consideravelmente maior que Emma – não que ela fosse muito esticada. Se fosse descrevê-la em uma palavra, Emma com certeza diria: “Viking” ou “Amazona”.
O cabelo áureo era limitado por um longo e volumoso rabo de cavalo, o penteado estava longe de arrumado, mas certamente combinava com a aparência mais “guerreira” da moça. Nos olhos, podia ver o forte – e ao mesmo tempo gentil – brilho das írises azuis, como safiras recém lapidadas. A blusa marrom manchada em alguns pontos de preto era sobreposta por um largo macacão de couro. Ainda assim, ele cabia perfeitamente a ela.
A ferreira acenou um dos braços com um toque tímido, apesar da força aparente nos músculos. Por toda a palma da mão, Emma viu calos e cortes cicatrizados, o que a trouxe um estranho sentimento.
— Eae! Tudo em cima? — disse a loira, munida de um grande sorriso.
— Ah... é, tudo sim. — Emma foi até próximo da outra jovem com uma feição receosa. — Vem cá, você é real?
— Hm? — Ao ver melhor o rosto da recém chegada, ela entendeu a razão da pergunta. — Ah, tá! Claro que sou, tá vendo não?
— Tá bom, deixa pra lá.
— Deixa eu adivinhar, todos sumiram de novo?
Emma recuou, os olhos presos na ferreira.
— Como você...?
— Ah, é bem normal. — Ela explicou. — Ninguém entende muito bem como ou porque, então só aceitamos. Faz tempo que alguém novo não aparece por aqui, um bom tempo mesmo... Bem, de qualquer forma, sou Alexandra, mas você pode me chamar de Alex se quiser!
— Sou Emma.
— Então... Emma? Como posso ajudar?
— É... na verdade eu só vim porque fiquei curiosa quando todo mundo desapareceu, daí eu vi a chaminé acesa e pensei em investigar.
— Já que está aqui, por que não compra uma dessas belezinhas? Trabalhei muito pra fazer cada uma delas, tenho certeza que vai gostar. Tenho pra todos os estilos e gostos!
— Eu acho que você não entendeu o ponto aqui.
— Posso fazer um desconto bom pra você!
—...
— E então?
Emma suspirou, desistente.
— Tá, quanto é uma espada? Não quero nenhuma especial, só algo que eu consiga levantar.
— Metade do preço pra você! 30 sóis!
— Sóis...?
— É ué, sóis! É a moeda daqui, a nova cara do dólar. Demorou um pouco pra nos acostumarmos, mas logo a ficha caiu.
— Já percebeu que você sempre fala no plural? Fala como se houvessem mais pessoas, mas fora você e a família na fazenda, encontrei ninguém o caminho todo.
— Bem... isso é complicado. Já teve muita gente por aqui... nos primeiros dias do exílio. Então todo mundo se separou, fundaram as próprias cidades, vilas, acampamentos. Hoje só restam poucos lugares, e nenhum deles é muito amigável. Hermes, Luvy, Wast e Farno, foi tudo o que sobrou.
Emma não percebeu o próprio semblante curioso e atento, como se preparada para fazer mais perguntas. Alex, no entanto, viu isso muito bem, e resolveu fazer o próprio questionamento.
— Vem cá, você veio de Stawrin? Mesmo se fosse, seria bizarro alguém da fronteira não conhecer a história desse lugar. Sonnenland então?
Vendo as suspeitas aumentado cada vez mais, Emma recorreu à métodos evasivos.
— Olha, isso não importa. Se eu sei de tal coisa ou não, de onde vim, nada disso é importante. A coisa é, eu não tenho dinheiro pra pagar.
— É... eu imaginei que fosse esse o caso. — O sorriso convidativo se desmantelou no mesmo instante. — Bom, eu vou voltar ao trabalho.
A ferreira virou-se para a sala da forja, somente para ser interrompida pela garota.
— Espera.
— O que foi? — Alex olhou por cima do ombro.
— Todas essas coisas à mostra e em perfeito estado, esse lugar tá abarrotado de arma! Pra que você trabalha tanto com esse tanto de produto pra vender?
— Isso é...
— Não vai me dizer que é pra estocar?
— Quase isso. — Alex girou o corpo por completo e voltou ao balcão, debruçando-se sobre ele. — Eu ouvi uns rumores, falavam sobre alguém reunindo um grupo para atravessar a fronteira. E bem, pra fazer isso e ainda chegar em Sonnenland, é claro que vão precisar de muitas armas.
— Não é esperto trabalhar em cima de rumores.
— Eu sei. Mas é tudo o que eu tenho pra acreditar agora. Se eu ficar parada, nada vai mudar. E se você não tem nada mais a dizer, eu tenho que continuar tendo esperança.
— Talvez eu possa ajudar.
Alex parou, intrigada. Ela riu baixo, uma risada seca e sem expectativas.
— Você? Me ajudar? Não há nada que você possa fazer que eu já não tenha tentado.
— Não vamos saber até que eu veja com o que estamos lidando, certo?
— ... A espada, né?
— Sim
— Se... e só se você conseguir alguma coisa. Temos um acordo?
Ela balançou a cabeça de acordo.
Depois de outra porta na sala da forja, as duas passaram para um estreito corredor que seguia para o resto da construção. Ele não tinha nenhuma decoração e mal era iluminado, mergulhando o lugar em uma aura sombria.
O que desfez o mórbido silêncio da caminhada até a casa de Alex foi uma fala dela própria, o começo da sua explicação:
— É minha mãe. Ela está doente desde que chegamos nesse mundo maluco, e só piora a cada dia que passa. No começo era só como uma simples gripe, agora... ela não consegue se mexer da cintura pra baixo e tem dificuldade pra respirar.
— Cacete... vocês nunca encontraram o motivo?
— Não, e ela não fazia questão de procurar a resposta quando podia. Desde que saímos de Sonnenland e atravessamos a fronteira, as coisas só pioraram e chegou nesse ponto. Não posso sair muito tempo de casa pra procurar um tratamento ou mesmo qualquer resposta pra doença dela. O trabalho tem sido a única coisa que me mantém sã ultimamente.
No final do corredor, jazia o espaço para uma porta – que não estava ali, abrindo caminho para a sala de estar. Elas passaram rapidamente, e Emma não teve tempo ver muito além de um sofá surrado ao lado da mesa de vidro que dividia o recinto no meio.
O solitário tapete ao pé da porta que Alex parou dizia “Bem-Vindo!”, mas tudo o que Emma conseguia sentir era ansiedade, ominosa e que gritava “Saia”.
— E aí, tem alguma ideia?
Emma desviou e retornou o olhar mais vezes do que gostaria de admitir.
— Esquece, vamos entrar.
A condenada pouco viu adiante graças à altura da guia, mesmo quando ela perdeu a postura e deixou os ombros caírem, somente viu a fraca luz pálida que adentrava o quarto. Emma seguiu com cuidado, permanecendo na porta enquanto Alex aprofundava-se no quarto.
Do ângulo que estava, teve perfeita visão da filha se aproximando do corpo branco coberto até o pescoço por dois lençóis. A mãe era como a sombra de sua progênita, o reflexo débil de Alex. O longo cabelo dourado perdeu todo o brilho junto da pele, ambos desbotados e sem as cores que um dia tiveram.
Os olhos verdes se abriram, perdidos e nublados no momento do despertar. Ela soltou um longo bocejo e então foi ajudada a sentar na cama pela filha.
— Mãe, tudo bem?
— Ai, filhota, o que foi? Já é hora do almoço?
— Não, na verdade eu trouxe alguém que pode ajudar.
— Docinho, eu já te falei pra não incomodar os outros por causa de...
— Fui eu que me ofereci. — Emma corrigiu. — Alex resistiu o tanto que ela pôde.
Ela suspirou, desistente
— Está bem, se foi assim, não tem muito o que fazer. — A mãe colocou a mão sobre o peito e abriu um sorriso tênue. — Meu nome é Helena Magni, eu adoraria apertar sua mão, mas... você já deve saber dos detalhes.
— Sei sim. — A jovem foi até a debilitada. — Emma Adams, só Emma serve.
— Então, senhorita Adams, vai vir com algum tratamento milagroso tipo aqueles doutores de Grey’s Anatomy?
— Mãe!
— Desculpa filha, você sabe que eu não sou a maior fã de médicos.
— Bom pra você então, nem cheguei a tirar meu diploma ainda.
— Haha! Não sei se eu deveria ficar mais ou menos receosa agora. Por sinal, o que você cursava?
— Administração.
— Santo Deus. — Helena fingiu o espanto. — Alex, filha, pode trazer um pouco de água pra gente? Sinto que vamos ter um papo bom aqui.
— Tá, já volto.
A ferreira saiu do quarto apressada, fechando a porta no caminho. Enquanto Emma tomava a cadeira do lado da cama, Helena aos poucos desfez o convidativo sorriso com que se apresentou.
— Admito que fiquei surpresa, não sabia que a Alex tinha amigos.
— Nós nos acabamos de conhecer, cheguei na aldeia faz pouco tempo.
— Ela ainda confiou em você, isso já te faz diferente das outras pessoas. Alex... nunca foi de acreditar em desconhecidos, ainda mais depois do que aconteceu em Sonnenland.
— Ou talvez tenha sido só o desespero, esperança ou sei lá, chama do que você quiser.
— Fé é algo que ela tem de sobra, mas não gasta cegamente. Se ela decidiu apostar em você...
— Onde você tá querendo chegar com esse papo, coroa?
— Hm? Ora, estou te dando o que dizer. Afinal, nós duas sabemos que você não tem ideia do que pode ser feito pra mim, certo?
Emma calou-se diante a afirmação, pois não tinha nenhum argumento que dissesse o contrário. Antes que a situação se apertasse mais, Alex chegou com duas canecas de madeira cheias d’água. A primeira foi para a mãe, depois para Emma.
— Eu adoraria ficar, só que a loja não vai ser vigiada sozinha. Vocês duas... não façam nenhuma bagunça que eu tenha de limpar depois.
— Não vou a lugar nenhum, chuchu — disse Helena, no tom sarcástico que a filha odiava.
A ferreira saiu em silêncio do quarto, o que deu retorno ao clima tenso antes instaurado pela enferma. Não bastasse toda a carga pré-existente, Helena adicionou:
— Você já deve ter percebido que ter esperanças num lugar como esse é uma condenação. Alex trabalha além dos limites da exaustão todo dia, e ainda cuida de mim. — Ela cerrou os punhos por debaixo das cobertas e o olhar mudou ante a frustração. — Esse maldito sentimento de estar presa num só lugar enquanto o mundo gira ao seu redor não é nada se comparado à dor que é ser um fardo pra própria filha...
— Se serve de consolo, ela com certeza não te vê como um peso.
— O problema tá aí. A esperança que move ela já ficou cega há muito tempo, tornou-se prejudicial pra ela. É só uma questão de tempo até o meu fim chegar, e ela sabe disso. É inevitável.
— Se eu fosse você, agradeceria pelo cuidado e tempo que ela dedica a você.
— Está errada se pensa que não agradeço por ter uma filha como ela todos os dias da minha miserável vida. Mas eu não quero que ela faça isso em troca do bem estar dela, a esperança que ela tem já é até surda. Não adianta, nada do que eu disser vai mudar essa situação. Bom, não se eu fizer isso sozinha.
A fala estranhamente familiar acendeu um alerta na mente de Emma.
— Não, não, não! Eu não vou me envolver nisso, não é comigo. — Ela se levantou da cadeira, pronta para partir, até que Helena a segurou pela mão.
O toque morno e fraco, ironicamente, segurou a garota no lugar, paralisada pelo semblante devastado da mãe.
— Você é a única esperança que eu tenho, Emma, a única saída da Alex desse inferno. Se não se importa com os desejos de uma moribunda como eu, é só puxar a mão e ir embora. Agora, se você entende o mínimo do meu desespero, vai sentar de novo na cadeira.
— O que te faz confiar tanto em mim?! Eu menti pra Alex e estaria mentindo pra você também se ficar aqui. Não posso fazer nada!
— Minha filha confiou em você como o último recurso. Só me senti inclinada a fazer a mesma coisa. — A mão da jovem tremia, o olhar dela fixado nos jades opacos, profundas. — Por favor, pelo menos me escuta.
Fisgada pela armadilha moral plantada por Helena, a condenada voltou para o assento, ainda descrente.
— A culpa é minha, a culpa é toda minha. — A mais velha se lamentou.
— Calma lá, patroa, não se importa que eu ouça tudo o que pretende dizer?
— Se meu plano correr bem, não faz diferença. E também, eu queria desabafar com alguém faz um tempo.
Ela tomou um tempo para beber a água da caneca e depois preparar o fôlego, como se preparasse para um grande discurso. O coração da garota ao lado batia rápido, ansioso e incerto pelas próximas palavras.
— Notou as pessoas desaparecendo no lado de fora?
A universitária balançou a cabeça positivamente.
— Bizarro, não? Desde que chegamos em Yharag, as pessoas trazidas pra cá fizeram muitas perguntas, a maioria delas nunca foram respondidas. E então o tempo passou, as dúvidas e a busca pela verdade cessaram depois dos inúmeros conflitos, todos só queriam sobreviver nesse mundo selvagem e cruel. A verdade é que todos se acostumaram de alguma forma, mas esse lugar não é o que parece. Tudo não passa de uma farsa, de uma...
— Simulação digital. — Emma completou para a surpresa de Helena. — Então eu não sou a única que sabe.
— O que?! — O espanto a fez engasgar, exigindo uma pausa para tossir e recuperar o ritmo da respiração. — Como é que...?
— Longa história, muito longa, pra falar a verdade. Eu cheguei aqui faz alguns dias, vim do lado de fora com um grupo de pessoas. Fui arrastada pra cá, não sem antes vazar o projeto que moldou esse lugar pra toda a internet.
— Então eu consegui?!
— Conseguiu? Conseguiu o que?
— Eu era uma cientista da Adler, trabalhava na filial da Suécia quando fui subitamente transferida pro ramo de Detroit, algo grande estava rolando então precisavam dos melhores. Tive que me mudar com a Alex, mas não deu nenhum problema no começo. Isso... até eu suspeitar de toda aquela merda. Foi quando eu descobri o projeto Re:Nascimento, a proposta por trás de todo esse lugar. Não dava pra ficar calada. Já fiz coisas questionáveis em vida, mas experimentos em humanos foi a gota d’água pra mim. Então... eu fugi, saí do prédio com pastas e arquivos confidenciais. Me perceberam, claro, então tentei vazar do estado com a Alex.
— Te pegaram?
— É... — Seu tom ansioso tornou-se melancólico de um instante para o outro. — Foi assim que nos tornamos cobaias, ou melhor, vítimas do experimento. Ela estava inconsciente então não viu acontecer, mas eu estava bem acordada, o suficiente pra ouvir eles dizerem que colocariam um “extra” no meu código quando passasse pro outro lado.
A realização fez Emma encolher-se na cadeira.
— A doença?
— É.
— Deus do céu... Malucos desgraçados! — esbravejou.
— Eu adoraria ouvir tudo o que aconteceu com o mundo na minha ausência, mas não tô afim de enrolar mais isso. Agora que você sabe, deve me entender, pelo menos um pouco.
— Não me contou isso pra ficarmos só no papo. O que quer que eu faça?
A feição de Helena repentinamente tornou-se sombria. Ela envolveu a mão de Emma com as dela própria e disse de forma direta:
— Alex não vai ser livre enquanto tiver que cuidar de mim. Eu quero que ela saia daqui, que vá viver a vida dela e... talvez, consiga sair desse lugar fodido, descobrir toda a verdade que eu não fui capaz. Emma, eu preciso que você me mate, só assim minha filha pode ser livre.
Emma empurrou as mãos de Helena para longe, pasma pelo pedido. Perdeu o ar, quis gritar, mas nada saiu. Na tentativa de se levantar, tropeçou e acabou tendo o casaco preso na cadeira, contudo, conseguiu recuar até a parede, onde ficou balançando a cabeça em constante negação.
— Nem fodendo! Não sou uma assassina, não posso fazer isso! Não dá!
— Emma, me escuta!
— Foi mal, dona, mas eu não vou fazer isso nem a pau! — Ela saiu em disparada pelo quarto até o exterior.
Helena estendeu o braço para a porta em vão, e ela o recolheu ao estrondo do fechar violento. Prestes a perder a última fagulha de esperança, o brilho fugaz de algo refletindo a luz do sol no bolso do casaco que Emma deixara na cadeira chamou sua atenção. Seus olhos se arregalaram ante a descoberta. Ela arriscou um sorriso, tremido pelo medo.
— Se quer bem feito, faça você mesmo... né?
Do lado de fora, Emma parou a alguns metros do quarto, notando a aproximação apressada de algo no corredor que levava para a forja. Do caminho, Alex saiu com um semblante nitidamente preocupado. A testa escorria de suor, se era da forja ou da corrida que fez, não dava pra dizer com exatidão.
— Emma? O que rolou? Eu ouvi você falando alto e vim correndo pra cá.
— Alex, você precisa bater um papo com a sua mãe, sério.
— Quê?
No mesmo instante, a atenção de ambas foi roubada por um baque vindo do quarto. Alex prontamente correu para a porta, e Emma foi logo atrás. Ao entrarem, encontraram Helena esparramada no chão, a cadeira caída ao seu lado e, o pior de tudo: a faca da condenada entre nas mãos.
— Mãe, não! — O berro não foi rápido o bastante. Logo ao fim da fala, a mulher enterrou a lâmina no próprio peito.
Alex cortou o próprio grito, irrompendo pelo quarto até a mãe, aninhando-a em seus braços. Todas as três respiravam com dificuldade, mas somente Helena fraquejava, já que o sangue lentamente subia pela garganta.
Ver a cena lembrou Emma de um momento sombrio do próprio passado. Se não fosse o batente onde se segurou, teria ido ao chão no mesmo instante. A respiração tornou-se errática e o coração ameaçava saltar pela boca. Incapaz de acompanhar um segundo a mais se quer, ela cambaleou para fora do quarto, fazendo seu caminho para o corredor.
— Mãe! Droga, mãe, fica comigo! — Alex soluçava sem controle, as lágrimas quentes escorriam em rios pelas bochechas vermelhas.
Helena levou a mão até o rosto da filha para limpar a cascata emocional e, em seguida, envolveu metade do rosto da filha com a mão gelada.
— Não chora... filha. E-Eu quero que, a partir de agora, você... sorria.
— Para de dizer coisas sem sentido! Poupa a respiração, por favor! — Ela olhou para trás, desesperada. — Emma?! Emma, me ajuda!
— Shhhhh... calma, vida, lembra do pedido da mamãe. Sorria... até não poder mais. Encontre a verdade por trás desse mundo e... viva! Faz isso por mim, ok? — Sem as forças para continuar, os dedos dela escorregaram pela face da filha, indo de encontro ao chão.
— Corta essa, mãe! Eu imploro... não me deixa aqui! Fica comigo... fica comigo! Ah, merda! — As lágrimas dificultaram a continuidade da fala.
Ironicamente, Helena sentia-se quente. As lágrimas de Alex caindo sobre seu rosto frio, o sangue escorrendo para fora e sufocando-a lentamente... o calor da liberdade que ela tanto desejava.
Em seu último suspiro, ela abriu um grande sorriso e, encarando a filha diretamente nos olhos, declarou:
— Eu amo você, docinho. Nunca... deixe de ter esperança.
Com as palavras finais ditas, o coração já fragilizado da mulher parou, e sua alma foi levada para a vastidão frígida do mar de dados. O brilho nos olhos esgotou-se por completo, e seu corpo ficou mole.
Alex engasgou no choro, olhando incrédula para o corpo sem vida da mãe.
— Ei... acorda.
Nenhuma resposta.
— Diz que vai ficar tudo bem... me diz que você tá bem como sempre.
O solitário silêncio continuou.
— Não... não, não, não! — Ela apertou-a contra o peito. — Mãe! Que droga, mãe! Acorda... acorda por favor!
Enquanto Alex chorava, inconsolável, Emma ouvia tudo do lado de fora da casa. O sol começava a afundar no horizonte, pintando a paisagem de laranja. O som ensurdecedor dos lamentos era intensificado pela vastidão vazia da vila fantasma, repetidos na sua mente na forma das lembranças que a assombravam há muito tempo.
Encolhida, com a cabeça entre os braços e pernas, desesperada e sem o controle da respiração, ela estava tendo outra crise. Dessa vez, não haveria ninguém para acolhê-la, nem a Alex. Ambas estavam sozinhas, vivas no mundo dos mortos. Muito distante do mundo que conheciam para que alguém ouvisse os gritos.
Muito, muito longe de casa e dos braços da mãe.