Re:Nascimento Brasileira

Autor(a): Saya


Volume 1

Capítulo 3: A Sinagoga

Emma despertou torpe, repetindo o processo de abrir e fechar dos olhos vezes em razão dos flashs periódicos de luz que atacavam sua visão a cada nível que era ultrapassado. Estava se movendo, disso tinha certeza. A questão que assombrava sua mente era outra: “Para onde?”. O frio na barriga denunciava uma descida acelerada e constante, mas ainda não a respondia.

As últimas ações que fez passaram em flashs distorcidos por sua memória, acompanhados por uma dor pulsante que a fez cambalear. Uma força até então desconhecida a segurou com firmeza um pouco abaixo do cotovelo, evitando uma queda. Seus olhos se viraram em reação, vendo uma silhueta alta e estranhamente familiar. Ao dissipar dos efeitos anestésicos, a figura antes disforme se tornou visível.

Emma arregalou os olhos ao ver que o rosto que a encarava em um sorriso convidativo era de ninguém menos que Amber.

— Bom dia, flor da primavera. — A agente foi surpreendida pela reação imediata da jovem, que se soltou com força e caiu para trás, dando com tudo no chão.

— Sai de perto de mim! — Exigiu enquanto se rastejava para trás, sendo seguida por sua captora, que botou a mão sobre o rosto para esconder parcialmente a expressão cansada.

— Qual é garota, você não tá em posição de pedir isso, não agora. — Amber se agachou de frente para a jovem que, encurralada pela parede em movimento, não tinha mais para onde fugir. — Vamos ser boas colegas de equipe e resolver isso sem briga, sim?

— Agora você não quer briga?! Depois do que rolou?! — Emma permaneceu no piso até que o elevador completou seu trajeto, encaixando-se perfeitamente em uma abertura na parte mais profunda da descida. A mais velha se levantou, sem dar satisfações para a universitária enquanto se dirigia até a porta dupla.

Ela pousou a palma da mão sobre o metal frio, indo contra as expectativas de Emma ao não a empurrar logo de primeira. Amber olhou por cima de seu ombro, pedindo para que a jovem se levantasse com breves gestos. Um pouco hesitante, ela o fez.

— Você já fez parte de alguma peça teatral antes?

— Ahn? Que tipo de pergunta é essa? — A cultista nada disse, mantendo o silêncio incômodo que estimulou a jovem a responder: — Uma vez, quando eu era criança. Desempenhei o orgulhoso papel da “princesa”, por quê?

— Heh? Você até que tem o jeito de uma princesa. Marrenta, um pouco mimada, esquentadinha...

— Vem cá, qual é a tua? — Emma cruzou os braços, estressada.

— Perdão, e só que isso me lembrou de alguém que... — Antes de completar a sentença, visualizou a imagem de um sorriso nas distâncias de sua mente, impedindo-a. Balançou a cabeça em negação, desviando o assunto. — Deixa pra lá. Sobre o que você perguntou, bom, é um pouco mais complicado do que parece.

Emma suspirou para em seguida dizer: — Como se algo fosse simples nessa história fodida. Qual é o problema da vez?

— Vamos ser francas aqui, nós duas não gostamos dessa situação — começou. Emma prontamente concordou em um balanço positivo com a cabeça. — Mas ela também exige cooperação, então vamos fazer assim: você finge estar aqui pra ajudar e eu te dou cobertura, o que acha?

A garota arqueou a sobrancelha, pendendo a cabeça levemente de lado enquanto tentava absorver mais dos muitos problemas que se desenrolavam em conjunto.

— E o que você ganha com isso? Você não parece o tipo de pessoa que ajuda os outros sem um interesse.

— Não pareço, é? — Antes que ela pudesse responder, a fiel ergueu a mão e negou com a cabeça, sugestionando para que não respondesse. — A escolha de aceitar minha proposta ou não é sua, “princesa”. Nós podemos ser parceiras ou você pode se virar e tentar achar a saída desse buraco.

 As palavras da agente soaram verdadeiras o bastante para que Emma simplesmente ignorasse. No entanto, não lhe foi oferecido o mínimo de tempo para pensar, uma vez que, logo após sua fala, Amber empurrou as portas, adiantando o passo para forçar exatamente a reação que a companhia teve ao vê-la desaparecer no corredor luminoso: desespero.

Vendo-se instigada a tomar uma decisão imediata, a refém correu atrás da cultista, sendo momentaneamente cegada pela intensa luz que inundava o local. Nem mesmo seus olhos acostumados com a intensa aurora neon da metrópole foram capazes de diluir tamanho clarão. A sensação foi efêmera, entretanto. A vista se expandiu ao ver o que a esperava do outro lado do caminho.

No final do estreito corredor em que se encontrava, abria-se um grande salão de paredes cobertas por placas de metal límpidas, que formavam um padrão de reflexão capaz de trazer ainda mais luz para o lugar. No chão, uma dúzia de fileiras com longos bancos se estendia da entrada até as escadas do altar, um palco talhado em mármore sob a vigilância de uma Estrela de Davi, pintada na parede logo atrás de um pedestal.

As doze fileiras acomodavam um grande número de pessoas que Emma só podia ver as costas. A maioria vestia roupas que ela não foi capaz de nomear. No altar, um rapaz ministrava o culto em vestes distintas dos outros homens. Ele aparentava ter a mesma idade da garota ou próximo disso, cabelos negros quase tão longos quanto o dela e olhos glaucos fervorosos.

Ela continuou a caminhar até ser parada pelo braço estendido da fiel, que a encarava com um olhar mais sério que o comum.

— Não atrapalhe — ordenou, se ajoelhando no piso marmóreo e unindo as mãos.

Emma se absteve de imitar a parceira, meramente se agachando para ficar na mesma altura que ela.

— O que tão fazendo? — Arriscou, obtendo somente o silêncio como resposta. Mesmo diante a situação, sua curiosidade falou mais alto, prosseguindo em cutucar a fiel no ombro várias vezes até que a mesma torcesse o seu semblante em incômodo.

— É nosso último culto — murmurou, permanecendo com os olhos fechados. — Estamos um pouco atrasadas, este já é o final. Por que não fica quieta e tenta absorver um pouco?

— Foi mal, mas a palavra não me traz boas memórias — respondeu, contentando-se em permanecer na postura que estava.

Amber voltou ao seu silêncio culto, enquanto a garota ficou à mercê da pregação fervorosa do fiel. Mesmo no esforço para ignorar ou mesmo desviar sua mente do momento, as palavras do jovem pregador invadiram-na de forma irreversível, a trazendo memórias que preferia manter enterradas.

“Ugh, é por isso que odeio padres”, reclamou, pondo ambas as mãos sob os ouvidos para afastar as orações que acompanhavam a fala do fiel.

— Que Deus, nosso pai e protetor, nos guie durante mais essa jornada da vida; Que ele nos dê a força necessária para desbravar as fronteiras do desconhecido e que a Estrela de Davi nos proteja em nosso caminho. Amém! — Enfim foi dito por último após minutos que, para Emma, pareceram horas.

A dupla se levantou junto aos fiéis, que deram uma salva de palmas para o rapaz que descia o altar, sendo cumprimentado por uma extensa fileira de indivíduos que se alongava até próximo das portas de saída. Amber acenou que Emma esperasse com ela, enquanto o jovem fazia seu lento caminho por entre as pessoas.

Quando enfim avistou a mulher em destaque na entrada do hall, ele apressou o passo, evidentemente animado. Em pouco tempo, alcançou as duas, dividindo a multidão atrás de si no processo.

— Irmã Amber! — falou, envolvendo a colega em um rápido abraço, interrompido pela mais velha. — Como eu fui? — Esperava pela resposta com os olhos castanhos brilhando.

— Bem, odeio admitir que não presenciei tudo — começou, oferecendo seu sorriso mais sincero ao rapaz. — Mas com o pouco que vi dá pra dizer que, com mais alguns anos de prática e estudo, você vai se tornar um ótimo rabino! Quer dizer, olha só pra você! A quipá e a talit ficaram perfeitas em você.

— Muito obrigado! Pode ter certeza que vou levar estas palavras para o coração! — Seu sorriso radiante se misturou à curiosidade ao pôr os olhos em Emma. Ele a analisou por um momento, se aproximando na medida que a jovem recuava. Parou pouco antes da parede, onde se virou para a mais velha. — E essa com você deve ser a novata, imagino.

— Uhum. — Amber confirmou, segurando-a pelo braço e a trazendo para mais perto de si. — Ela é a nossa chave pro outro lado, Emma Adams. — Emma se esforçou para manter a naturalidade em sua feição, erguendo a mão direita em um aceno fraco.

— Ah, então você é a tal “cifra” que o Altair tanto fala! — Ela não teve tempo de reagir antes que o jovem pegasse sua mão e a balançasse de um lado para o outro em um cumprimento agitado. — Meu nome é Levi Weiss, o apelido por aqui é “Leviatã”. Pegou a piada, né?

— É um prazer te conhecer também... — falou sem cerimônias.

Ela desejava escapar da situação o mais rápido possível, então pediu socorro à sua parceira por gestos sutis, logo entendidos pela mesma.

— Falando nele, cadê o curador?

— O vô? Da última vez que o vi, estava na sala dele. Provavelmente está fuçando o monte de tralha dele antes da viajem, você sabe como ele é.

— Não chame de “tralha”, são coisas importantes pro seu avô. — Suspirou, sabendo que não poderia estender mais a conversa a partir dali. — De qualquer forma, nós precisamos vê-lo, se cuida.

— Vai com Deus! — Levi disse, acenando para elas enquanto se distanciavam da sinagoga.

— Você também!

Emma manteve-se quieta, precisava estar calma para destilar a tensão acumulada em seu corpo. No entanto, assim que passou pela porta dupla de pinheiro que levava ao exterior da igreja subterrânea, seus olhos foram tomados pelo branco, um enorme labirinto de corredores cegantes que a prendia à sua maior inimiga. Naquele momento, soube que não havia mais escapatória.

“Eu devia ter ignorado aquilo”, pensou com o coração a mil, receosa com o que ainda a esperava naquela longa noite inundada pela luz pálida. A lua acima, o santuário abaixo.

Os corredores absolutamente vazios em que percorria a causava calafrios. Acostumada com o constante calor humano da superfície, Emma poderia jurar estar sendo abraçada por um frio fantasma, arauto da solidão que inundava o lugar.

Com tantos nêmesis à disposição nos largos túneis pálidos, era difícil escolher somente um para colocar a culpa de seu profundo incômodo. Solidão, o banho de luzes, o contexto ou a ameaça, todas as opções se uniram na mente da jovem, formando um único mal que podia culpar sem receio: A Menorá Áurea.

 Escapar não era mais uma opção, então tudo que lhe restava era seguir os passos de sua curiosa acompanhante, cujas intenções eram tão visíveis quanto a baía de San Francisco tomada por seu habitual nevoeiro.

— Me chamou de “chave”. — Emma começou, um fim para o silêncio que a distanciava ainda mais de Amber, que teve sua atenção roubada de imediato. — Chave pra que, exatamente?

A cultista suspirou, vendo-se encurralada a uma situação na qual quis evitar mesmo sabendo de sua inevitabilidade.

— Você me perguntou porque escolhemos você — começou, virando-se pra ela, e continuou firme na voz: — O documento sozinho é inútil, precisamos de alguém que saiba abrir os portões pro “outro lado”. Alguém que leu os arquivos e sabe manusear tecnologia de ponta. Você foi uma das pioneiras da Arca, a única que conseguiu abrir e espalhar todo esse absurdo pro mundo inteiro. Por isso tem que ser você.

Emma recuou, desviando o olhar para não encarar a verdade. Sabia desde o começo, mas mesmo assim queria negar que, no fim, a culpada por toda a sequência de eventos que decorreu naquele dia era ninguém mais que ela mesma. E esse defeito ela poderia listar no topo de suas anotações.

— E então, o que vem agora? — indagou, abrindo os braços e elevando o tom da voz. — Tudo o que fiz não passa de uma onda de “sorte” que veio no momento. Porra, eu sou uma universitária, não sou como esses caras que dedicam a vida a esse trabalho.

— E, mesmo assim, você foi a primeira na corrida pra abrir o possível banco de dados mais protegido de todo o planeta. Não pode chamar isso de sorte ou acaso, você fez isso e agora se tornou a criminosa mais procurada dos Estados Unidos. Queria o que, um doce? Se não fossemos nós, seria a CIA ou o FBI, quem sabe até mesmo o NYPD, mas alguém iria te encontrar.

— Quer que eu agradeça por ter sido achada logo pela seita de maníacos com ideais deturpados? E ainda, “portas pro outro lado”? Estão querendo fazer uma paródia de mal gosto de Jonestown? — Levada pela emoção, Emma não percebeu o crescente ódio da fiel, que a empurrou contra a parede e bloqueou sua saída com ambos os braços.

Amber logo ergueu seu olhar furioso, encarando a jovem com o par de estrelas incandescentes em suas írises como se estivesse prestes a queimá-la naquele pequeno ato.

— Escuta aqui, “princesinha”, se você prefere receber a sentença de morte, prisão perpétua ou qualquer outro destino que inclua apodrecer nas mãos do governo, o problema é seu. Mas se tem uma coisa que eu odeio... — levou o dedo indicador até a ponta do nariz da garota, prendendo ainda mais atenção em seu olhar. —, é quando falam mal da minha família.

Ela se afastou da jovem, com o dedo apontado para si mesma, munida de um semblante confiante. Sua raiva desapareceu em instantes, convertida para a determinação que carregava.

— Eu assumo totalmente a responsabilidade pelo que acontecer daqui em diante, e não falo isso só pra tirar o deles da reta. — Moveu o dedo para Emma. — Falo porque tenho um plano especial pra você, garota do oeste.

— “Plano especial”? — repetiu num misto de receio e curiosidade.

— Os detalhes sórdidos vêm depois — respondeu, dirigindo-se até o fim do corredor para espera-la. — Agora temos um trabalho a fazer. Não estamos muito longe do escritório do curador, vamos?

— Aff! Claro — bufou, desencostando-se da parede. — Esse lugar me dá calafrios. Só quero terminar essa palhaçada o mais rápido possível.

Amber a deu um olhar solidário, seguido por uma breve risada silenciosa.

— Algo me diz que vamos ficar nessa por mais algum tempo.

— Não se depender de mim. — Ela tomou as rédeas da caminhada, parando ao perceber que havia deixado sua guia para trás. — Qual foi vovó, a idade te deixou lerda?

A fiel sorriu de canto. Precisava daqueles momentos para aliviar o estresse que tinha acumulado e o que ainda estava por vir.

— Vou te mostrar quem é a “vovó”, mas não agora. — Passou tranquilamente pela jovem, que logo a seguiu. — E eu nem sou tão velha assim.

— Suas mãos contam outra história.

— Minhas... mãos?

A jovem pegou uma das mãos de Amber agilmente, sem dá-la tempo de reação. Virou a palma para cima, revelando marcas e cicatrizes de aparência antiga, quase como se tivessem nascido com a mulher. Logo que tomou consciência do que acontecia, a cultista recuou a mão, recolhendo-a.

— Nunca te ensinaram a ter boas maneiras? — reclamou, desviando o olhar. Sua feição melancólica denunciava algo que Emma não ousou perguntar. Aquele não era o momento.

— Tricô? — O comentário da jovem arrancou uma gargalhada efêmera de Amber, logo se desfazendo em um sorriso tristonho.

— Quem me dera — respondeu, reerguendo-se da postura cabisbaixa. — Estamos perdendo tempo aqui. — Emma concordou, assinando o silencioso contrato que fizeram para seguir em frente a partir dali.



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