Re:Nascimento Brasileira

Autor(a): Saya


Volume 1

Capítulo 2: Confronto

A jovem foi recebida pelo frescor do lugar, uma fragrância que misturava tabaco, orvalho e algo a mais, um odor único da metrópole, tudo isso carregado pela brisa amena que rodopiava por todo o parque

O frio em ascensão – incomum para aquela época do ano – caracterizava algo que ela demorou a notar: tudo estava estranhamente silencioso, vazio até onde conseguia ver, salvo por algumas luzes cobertas pelas árvores nas distâncias.

Atenta, Emma andou pelo caminho quadriculado composto de tijolos de pedra em direção ao lago que ocupava boa parte do nordeste das dependências do parque. A sombra da noite lhe dava uma vantagem custosa, uma vez que a escondia para, em contrapartida, tomar metros da sua visão. Os poucos postes ainda acesos ameaçaram fraquejar, cada apagão sincronizado com um batimento saltado do coração da universitária.

Em pouco tempo, ela alcançou um banco próximo da beira da água, a poucos metros de molhar os pés. Ali se sentou e logo foi em busca do telefone na bolsa, embora o aparelho já não lhe servisse muito. Emma não podia negar: o laço já se enroscava mais no seu pescoço do que era capaz de resistir.

“Se for pra acabar assim...”, pensou, a procura do número da tia que tentou contatar mais cedo.

Porém, antes de executar a decisão, uma rajada de vento rugiu súbita por trás de si, carregando não só os seus cabelos, como também sua atenção. Ela foi ágil em se recompor, mas não voltou os olhos para o aparelho de imediato. O dispersar das mechas escuras abriu a visão para uma silhueta à espreita na penumbra dos postes moribundos.

Seus olhos se fixaram na figura, incapaz de tirá-los dali. O coração dela quase parou no momento em que a sombra se moveu para a luz, tomando forma. Assim como o fôlego, Emma também teve as palavras roubadas, incapaz de proferir a mais simples pergunta.

Quanto a misteriosa cruzou seu caminho com a escuridão, teve sua aparência revelada. Os olhos da jovem se arregalaram na vista do longo e volumoso cabelo cinza prateado da mulher, também possuidora de um par de írises âmbar, brilhantes como o sol. Ela trajava-se de roupas casuais: uma larga calça moletom sobreposta por um casaco vermelho, este aberto para mostrar a blusa preta por baixo.

Por segundos que pareceram uma eternidade, Emma assistiu imóvel enquanto a suspeita se aproximava, mantendo contato visual firme até parar a alguns metros do banco. A recém chegada então sorriu de canto e apontou para o assento vago ao lado de Emma.

— Posso? — perguntou, munida de um tom suave na voz.

— É-É claro, tá livre. — Por pouco não se engasgou com as palavras. A tensão se foi sem pressa, expulsa pela calorosa presença da misteriosa mulher. Emma a deu o benefício da dúvida, o que também lhe deixou mais calma.

A jovem ligou o celular, encarando-o por longos segundos em resolução. Seus olhos se voltaram à cidade, mergulhada em seu próprio festival de clarões. Cerrou as safiras e deixou-se levar pelo abraço solitário da sua mente.

 As memórias tomaram o lugar da escuridão, vendo-se novamente firmada em suas raízes. Uma cidade num litoral de verão eterno e, ao longe, uma muralha que cortava o horizonte de vermelho e unia um estreito rochoso. Não restavam dúvidas,

“Faltar a faculdade vai ser um porre, mas é isso ou acabar nas mãos do governo ou... pior.”

Deslizou os dedos com agilidade pela tela do aparelho, indo direto ao contato que mais estava temerosa de encarar. “Como é que eu vou dizer isso pra você?”, perguntou a si mesma.

Sua frágil calma desabou quando a misteriosa quebrou o silêncio:

— Você já viu as estrelas, garota? — Emma quase pulou do banco com o susto, dirigindo o olhar para sua enigmática companhia, que encarava o céu já escurecido.

— Uh... sim, claro, por quê?

— Só curiosidade, queria saber se alguém ainda se lembrava de como elas são — Reafirmou, mirando os olhos no céu, em eterna luta com a luminescência que lhe invadia abaixo. — É difícil enxerga-las agora.

— Se você tá em busca de estrelas, esse lugar deveria estar no fim da sua lista de visitas.

— Esse é o seu jeito de dizer que quer ficar sozinha? — A surpresa que se seguiu foi correspondida pelo riso sedoso da suspeita.

— Não é bem isso, é que... — Emaranhada nas palavras, soltou um suspiro conformado e continuou: — Eu só não tô tendo o melhor dos meus dias, entende?

— O que você acha que leva alguém a procurar estrelas num lugar como esse? — A resposta levou um sorriso de canto à feição da universitária, um pouco confortável com a situação. — O nome é Amber.

— Emma.

Amber pendeu a cabeça para o lado, curiosa: — E o que te traz aqui? Se disser que fugiu de casa vou ficar decepcionada.

— Nada demais, só queria um lugar pra relaxar e pensar um pouco.

 — Se é isso, tenho o lugar perfeito em mente, vai solucionar nossos problemas ao mesmo tempo.

— Não me leve a mal, mas eu não tô afim de sair daqui.

— Calma apressadinha, só vou fazer uma sugestão, não precisa ser tímida.

— Então manda aí.

Levada pela casualidade da conversa, Emma só percebeu seu erro quando os dedos gelados da Amber se entrelaçaram aos seus num aperto firme do qual ela não conseguiu escapar. Ela tentou recolher a mão, mas foi puxada de volta com força pela misteriosa.

— Quer saber? Acho que mudei de ideia, você vem comigo.

— De jeito nenhum! — Ela se levantou do banco para sair, porém foi incapaz de vencer a disputa de forças com Amber. — Me solta, porra!

Em retaliação à resistência do alvo, a de cabelo argênteo se levantou e empurrou a jovem de volta no banco, a mantendo ali com o pé sobre sua barriga.

— Você é mesmo durona hein, chega a ser admirável. Ainda assim, não é párea pra mim.

— O que você quer de mim, droga?!

— Seria rude demais dizer que cooperação? Você deve lembrar dessa citação: “um convite para mudar o mundo”. É uma fala manjada, mas serve.

Ouvir aquilo fez a ficha cair para Emma, que enfim associou a agressora como parte daqueles que estava fugindo.

— Se você me conhecia, então por que...?

— Acredite em mim, eu não queria estar fazendo isso, mas depois do que você fez com a Garça... eu não podia me dar ao luxo de confiar na sua “gentileza”.

— Eu posso te dar um café também, se quiser. — Zombou, ação essa que Amber repreendeu com ainda mais pressão sobre o abdômen da jovem.

— Você só tá complicando as coisas pro seu lado. Podemos brincar de policial mal e policial bom o quanto quiser, mas o resultado não muda. Você vem comigo, querendo ou não.

— Se eu gritar...

— Experimenta, eu te desafio.

“Merda”

Com a falha da tentativa de ameaça, Emma se viu completamente encurralada. O celular estava fora de questão, e não queria descobrir o que Amber guardava para si caso tentasse escapar.

— Eu tenho alguma outra opção? — Arriscou.

— Você quer mesmo saber a resposta?

Com um suspiro cansado, Emma concordou com um aceno da cabeça. Amber baixou a guarda e retirou o pé de cima da universitária, prestes a admitir vitória. No entanto, assim que foi liberta do peso opressor, a garota enfiou a mão no bolso e sacou a chave da sua casa.

Num movimento rápido e desajeitado, ela atacou a agente, abrindo um corte raso na bochecha. Emma aproveitou do movimento surpresa para correr, mas foi segurada pelo ombro e tropeçou, indo ao chão poucos metros adiante.

— A porra de uma chave?! Sério?!

Emma não respondeu, somente se arrastou e tentou se levantar, mas Amber foi mais rápida. A mulher a pegou pelo casaco e a virou, cara a cara com o alvo.

— Pelo visto eu vou ter que ser a policial má. — Do bolso, ela retirou um pano visivelmente encharcado com algum líquido.

Emma se debateu com todas as forças que lhe restavam, mas a opressora dominância da cultista a manteve no lugar e, depois de muita resistência, Amber conseguiu colocar o trapo contra o nariz da jovem. Com a missão cumprida, lhe restava esperar e assistir enquanto os movimentos da garota tornavam-se cada vez mais letárgicos

— Eu até tentei ser legal com você, Adams, tentei mesmo — disse Amber, limpando o sangue que escorria no rosto com uma das mãos. — Mas você não me deixou outra escolha

— Durma com as estrelas, Emma. — Com a fala distorcida da futura sequestradora, ela desmaiou.

Amber suspirou, contemplando com decepção as ações que tomou.

“Eu ainda posso fazer uma coisa”, pensou.

Com o telefone da vítima em mãos, discou o número e esperou a ligação com receio.

— 991, qual a sua emergência?

— Eu quero relatar um possível sequestro.

— Um sequestro? Onde? Você conhece a pessoa que desapareceu?

— Era uma garota branca, devia ter 21 anos, altura lá pelos 1,70, cabelo preto, vestindo roupas casuais e carregando uma mochila. A vi entrar numa parte isolada do Central Park e então vieram gritos pedindo por socorro, agora só achei uma mochila, nem sinal da garota.

— Certo, Central Park, 21 anos e cabelos escuros. Senhora, poderia informar o seu nome? Precisamos que se mantenha na linha para mais detalhes.

— Me chamem de Strauss. — Parou para tomar fôlego e reunir determinação para concretizar seu plano. — Procurem pela estrela de Davi e, talvez, encontrem a garota e a verdade.

Antes que o atendente pudesse prosseguir com qualquer questionamento, ela desligou e jogou o telefone no chão, próximo à bolsa. Ela olhou para Emma uma última vez, decidida.

“Vamos acabar logo com isso”.

Amber atravessou os arbustos com um último empurrão, enfim alcançando a clareira solitária, velada pela luz da lua e a sombra das árvores das redondezas. Carregava a nova “recruta” nos ombros, sentindo os pés calejados por andar com o peso extra.

Suspirou de alívio ao ver que, ao menos, sua parceira a esperava com seu carro, uma SUV preta, espaçosa e estranhamente bem preservada, mesmo sendo um modelo da década passada. Garça relaxava, encostada ao veículo enquanto terminava outro grande copo de café. Ao ver as faixas cobrindo quase que metade do rosto da colega, Amber não pode evitar se compadecer.

A loira acenou para sua amiga assim que a viu, permanecendo no mesmo lugar à espera da companheira.

— Outro Starbucks, sério? — Amber reclamou, parando próximo da mais jovem.

— Me ajuda a esfriar a cabeça — disse, prosseguindo em amassar o copo e o jogá-lo longe. — Além do mais, o café que eles fazem no ponto da Madison’s é maravilhoso. E o que rolou com o teu rosto?

— A garota era brigona mesmo, do jeito que você falou — Se aproximou mais, gesticulando com a cabeça para pedir que Garça abrisse a porta do SUV. Colocou Emma deitada no banco traseiro com cuidado e logo fechou a porta, batendo palmas para limpar as mãos. — Mas isso já foi, vamos logo pro museu. Não temos tempo a perder.

Ambas entraram no veículo com certa pressa, Amber no volante e Garça no carona. A motorista manobrou suavemente a caminho da avenida logo ao lado. O destino estava próximo, resumindo a viagem pela vizinhança de Carnegie Hill em pouco mais que dois minutos.

Ao chegarem, tiveram de ser ágeis para transportar o corpo inconsciente da garota para o interior do prédio por uma entrada desconhecida ao público, conseguindo passar despercebidas com êxito. O baque violento do fechar da porta as fez pular de susto, mas somente Amber expressou sua insatisfação.

— Eu já te pedi mil vezes pra tomar cuidado com essa porta, vai matar alguém do coração.

— Dá um desconto aí vai, já vou receber uma bronca daquelas do Altair por causa do que deu mais cedo.

— Você teve queimaduras de segundo grau em metade do teu rosto, levar um sermão devia ser a menor de suas preocupações.

— Pftt! Isso não foi nada, tô curada em no máximo uma semana. Prefiro ser queimada mais mil vezes do que ouvir os discursos dele enquanto ele me fuzila com os olhos.

Amber balançou a cabeça em reprovação, aceitando a situação em prol do fim da conversa, mesmo inconformada. Não se esforçou para esconder suas preocupações, batendo o martelo para encerrar a discussão com uma única frase:

— Se importe mais consigo mesma, idiota. Seu bem estar não vale essa causa — disse, trazendo grande confusão à Garça, que pôde somente assistir enquanto sua superiora dava continuidade ao caminho até as instalações. Ela esticou a mão futilmente numa tentativa encurtar a grande distância entre si e Amber

“Ela... ela disse isso mesmo? Não, devo estar ouvindo coisas. Preciso estar”, pensou, hesitando brevemente antes de correr em busca de respostas.

Os passos apressados da loira ecoaram por todo o salão. Ela correu entre as inúmeras peças de arte dispostas em caixas de vidro translúcido até chegar perto da superior. Amber revirou os olhos, interrompendo o caminhar num piso abrupto, intimando sua seguidora a parar de imediato. Ela jogou seu olhar inquisidor por cima do ombro, a espera da fala de Esther.

Todavia, ela não foi capaz de manter o olhar intimidador por muito mais. Abandonou a postura dominante, abaixando os ombros para tentar acalmar Garça aos poucos.

— Se tem algo pra me falar, diga logo. — Garça desviou e retornou o olhar inúmeras vezes até que por fim conseguiu encará-la. — Não abuse da minha paciência.

Ela bateu o punho contra o peito e torceu a própria roupa em aflição. Sua pele puxou, lhe trazendo dores que vieram com sua expressão igualmente ardida.

— O que mais eu tenho que fazer pra ser aceita por você e pelos outros?! Eu estou na família há mais de dez anos e ainda assim... — Seu acesso de raiva a levou até um dos artefatos antigos dispostos sobre uma base cúbica. Ela chutou o apoio com força o bastante para derrubar o pequeno jarro decorativo que guardava. O objeto foi ao chão, onde estilhaçou-se sem qualquer resistência. — Mesmo assim, você sempre me olhou diferente dos outros.

— Esther, isso não é o momento pra... — Mesmo a fala calma de Amber não apagou as emoções de sua companheira, que logo transformou a indignação em ódio. Esther avançou sobre a de cabelo prata, mantendo-se a poucos metros de distância.

— Não, esse é o momento exato, vamos resolver isso de uma vez por todas. — Sua determinação pesou o coração de Amber que, mesmo tendo a resposta em mãos, ainda hesitava em dá-la para a jovem angustiada. — Se vocês nunca viram nada em mim, por que me tiraram das ruas? O que eu fiz pra merecer mais do que todos os outros? Eu não sou especial, e mesmo assim vocês me tiraram daquele buraco, por que?!

Mesmo sob as exigências fervorosas de Esther, a outra cultista era regida por um objetivo, um tempo que ela não tinha para gastar. Desviou o olhar de sua companhia, seguindo seu caminho solitário. No entanto, antes que a fiel pudesse se queixar, Amber parou e, sem olhar para trás, disse:

— Não te tiramos de Detroit por um motivo em especial. Tínhamos um trabalho a fazer, uma causa boa, mas... — Suspirou, deixando a memória amarga lhe tomar as palavras momentaneamente. —, isso já faz muito tempo, você sabe. Olha, eu gostaria de te falar algo bom, mas a verdade é que você foi escolhida por acaso. Então ao invés de reclamar, agradeça a sorte que você tem de estar aqui agora ao invés de trabalhar na imundice que virou Michigan.

Com um movimento rápido, Amber pressionou um botão oculto em uma menorá falsa ao seu lado. Um rápido estalo ecoou pelo salão, seguido pelo correr do mecanismo que realizou a descensão da plataforma onde ela estava, aos poucos desaparecendo abaixo da terra.

Deixada no piso superior, Esther viu-se sozinha, tentando digerir a resposta que recebeu. Sua confusão logo se converteu para um sentimento explosivo de frustração, que se libertou na forma de uma reação violenta direcionada aos fragmentos do vaso já quebrado. Depois de várias pisadas e chutes, tudo fora reduzido a pedaços miúdos, um retrato disforme de suas emoções e expectativas.

Caiu no chão, inicialmente de joelhos, mas logo se debruçou sob os frutos de seus sentimentos inconformados. Lágrimas escorreram por seu rosto, irritando a pele queimada, arrasada pelos soluços frustrados que saíam juntos da tristeza torrencial.

— Então é isso? Eu nunca fui nada pra eles, mesmo depois de tudo o que fiz?! — Com uma das mãos, agarrou um punhado das lascas remanescentes do jarro e, com um pouco de esforço, esmagou-as até o pó. Foi então que uma ideia se ascendeu em sua mente. — A não ser que... — Se levantou, não tirando os olhos do chão até estar completamente erguida. A cultista limpou as lágrimas num movimento veloz com a mão livre e, com a outra, soltou a poeira barrenta que sobrou.

Seus olhos brilharam ao testemunhar o caminho que se abriu a sua frente, uma revelação milagrosa digna dos textos que lhe foram lidos ao longo dos anos que esteve ali. Sua última provação estava bem diante de si, e o próximo passo era claro como o fogo que queimava na alma.

— Essa é a minha última chance de sair desse inferno. Eu vou provar pra eles... vou mostrar o meu valor! — disse, trilhando um caminho diferente de Amber em busca de seu objetivo. — Hora de chamar o Diabo pra tomar um Starbucks.



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