Volume 1
Capítulo 15: Acerto de Contas
No abrir das grandes portas de carvalho, todas as suposições feitas pelo trio caíram por terra. O brilho da sala invadiu os olhos enquanto a brisa quente abafou a cacofonia por não mais que alguns segundos. O Salão Estratégico, obviamente, não era um simples recinto. O próprio nome possibilitava tal conclusão. Mas, entre tudo o que fora imaginado por eles, nada era como aquilo.
O anfiteatro contava com três arquibancadas de quatro linhas cada, possibilitando assim a melhor disposição da plateia, dezenas de pessoas à espera do grande anúncio por parte do contratante. No caso em especial, Gileon.
O trio foi instruído por ele a procurarem os próprios assentos – missão essa um tanto complexa dada a quantia de pessoas já sentadas antes da chegada deles. Concomitante ao momento de encontro com três lugares vagos por sorte, Gileon subiu ao palco, tossiu para limpar a garganta e, por fim, começou:
— Meus queridos, bom ver vocês reunidos aqui hoje! Se estão aqui, quer dizer que consideraram minha oferta, e por isso os agradeço! Sabemos o porquê estão aqui: querem sóis! E devo lhes dizer, damas e cavalheiros, após essa missão, vocês verão seus bolsos se encherem com mais sóis do que vocês poderiam sonhar antes desta oportunidade!
Num estalo de dedos, as cordas que seguravam o papel enrolado no topo do palco soltaram-se, ocasionando a queda do mesmo. Desenrolado, o papel revelou-se um grande desenho feito à mão duma criatura bizarra.
A grande escala da obra permitia melhor visualização dos detalhes da produção: a mão pesada do artista com traços grossos e rasurado, a pressa na hora da pintura, esta por sua vez direta e sem decorações. Tudo isso dava ao ser desenhado um ar mais bestial e, também, reforçava a aparência inenarrável para olhos desacostumados.
— Como vocês devem saber, a Rota da Lama sempre foi um ponto problemático para nós, como organização dependente do comércio. Fosse o terreno difícil, as épocas de cheia ou mesmo malandros para roubar a carga, a estrada para Luvy nunca deixou de ser complicada. No entanto, agora é diferente. Não há mais bandidos ou mesmo animais menores para atrapalhar, antes fossem eles! Agora, nosso inimigo é algo muito mais perigoso, diferente de tudo o que já enfrentamos na floresta nos tempos recentes.
Emma viu-se inquieta, não por ansiedade – a boa, pelo menos -, mas sim pelo medo. Se o Dragão Sabre já fora uma tarefa difícil, talvez ela não estivesse pronta para um oponente tão formidável como...
— “O demônio da Lama”, como ficou mais conhecido, aparenta ser uma criatura da megafauna de Ebenen, os animais responsáveis pelas mortes de centenas nos primeiros dias após o êxodo.
Naquele momento, os murmúrios entre a plateia começaram. Tal resultado era inevitável, afinal, todos ali – com exceção de Emma e de alguns outros – conheciam a história. Não só conheciam, como alguns também a escreveram com o sangue das terríveis feras que habitavam a outra metade do continente.
— Alguns dos “celestes” insistem em dizer que a criatura é um guardião da floresta enviado por Rozark. Infelizmente, o bicho tem nos custado caro demais para só engolir e ficarmos calados. Por isso tomei a iniciativa dessa campanha. Sou obrigado a dizer que não será fácil, alguns de vocês podem não retornar. Mas se ninguém ir atrás dessa coisa, mais vidas serão perdidas lá fora e mais dinheiro vai ser jogado pelo ralo! Então, se você valoriza a própria vida, pode sair. Porém, se você não quer perder a chance de ouro de ter seu nome adicionado na “Tabela”, fique e continue me escutando. E então, alguém vai sair?
“Uma coisa tenho que admitir, esse velho tem boa lábia...”, pensou Emma, passando o olhar de um lado a outro a procura de algum desertor.
Todavia, nenhum indivíduo sequer fez menção de levantar. Eles permaneceram imóveis, feito soldados leais ao general. A lealdade ali, porém, oscilava entre os valores pessoais e monetários. Glória, status e sóis pesavam o mesmo na balança comercial de Hermes. Uns ficaram por puro altruísmo – a minoria -, enquanto outros ansiavam por algo mais... valioso.
Vendo todos os seus convocados ainda presentes abriu um enorme sorriso no rosto de Gileon, que continuou:
— Esse é o espírito! Sabia que podia contar com vocês, meus grandes caçadores! A história se lembrará de nós como os heróis do entreposto, vocês não perdem por esperar! — Levado pela própria excitação, o grisalho logo se controlou. — Ahem! Voltando ao tópico, o nosso inimigo, segundo relatos de sobreviventes dos ataques, parece com essa coisa que vocês veem na tela: “Onça Vorpal”, era assim que os exploradores chamavam. Um felino de proporções enormes com lâminas ósseas protuberantes nos membros de locomoção e perto da mandíbula, além de uma na ponta da cauda que funciona como lança.
“Tá bom, com certeza eu preferia o lagarto”, pensou, mas não foi a única.
Muitos olharam com fascínio e espanto para a representação visual, vívida na imaginação graças à descrição do investidor. Um calafrio coletivo rastejou pelas costas de todos, sendo ainda mais intenso naqueles que vivenciaram a desastrosa Primeira Incursão – a diminuta minoria dos sobreviventes ali presentes, pelo menos.
— Não dá pra definir com precisão o tamanho, mas essa coisa beira os 6 metros de comprimento e 3 de altura. Sendo solitário como os relatos dizem, nosso grupo deve ser capaz de encerrar esse drama duma vez por todas. Alguma objeção?
De novo, ninguém se manifestou, o que foi uma surpresa para Gileon, pessoalmente esperando algum abandono.
— Fechamos por hoje então. A missão começa em três dias contando com hoje, até lá, preparem-se! Estão dispensados. — Ao fim do discurso, o pelotão composto de duas dúzias de pessoas desceu os degraus do auditório até a porta da saída.
Na movimentação, o trio fora chamado por Gileon através de gestos agitados para ganhar a atenção dos jovens, embora eles mesmos já planejassem confrontar o homem eles mesmos.
— Três dias?! Só isso? — Emma foi a primeira a reclamar, como de esperado.
— Ei, vamos com calma! — Gileon pôs os braços na frente do corpo em defensiva. — Vocês me colocaram contra a parede, esse foi o máximo que eu pude adiar. Aquelas pessoas tem outros trabalhos também, não posso tomar todo o tempo delas.
— Ugh... justo. Mas e quanto ao equipamento e treino? Temos que começar logo se quisermos acompanhar o calendário.
— Sobre isso, já arrumei as coisas. Vocês cinco irão para meu chalé particular na floresta, lá vocês podem treinar à vontade. — Os três arquearam a sobrancelha. — Sobre o equipamento, darei a vocês no último dia.
— Tá, mas... cinco? Estamos em três — apontou Alex.
— Cinco. — Uma voz familiar a todos ali falou, surgida de repente. — Estamos em cinco.
Ali, de frente para eles, Esther encontrava-se de braços cruzados, como se estivesse ali parada esperando há algum tempo. Do lado dela, um menino ainda desconhecido por eles, mantinha um enorme sorriso no rosto, ansioso além do normal. Eles instintivamente recuaram para trás, a reação mínima esperada pelos mais velhos.
Antes de Emma berrar em indignação, Gileon agilizou a explicação: — Espera aí, papagaio! — “Papagaio?!”, pensou Emma, a feição fechando-se numa careta. — Antes de você começar a gritaria, a senhorita Esther aqui não tem nenhuma intenção ruim, isso eu posso garantir. Afinal, ela é minha contratada especial para treinar vocês lá no chalé.
— Como é que é?! — Os três disseram em uníssono.
— Espero me dar bem com vocês.
— Gileon, você não pode estar falando sério!
— A carroça já tá lá fora, vocês devem chegar em uma hora ou menos. — Ele ignorou-os completamente, indo em direção da porta dupla. Antes de sumir da vista deles por completo, colocou a para dentro da sala e adicionou: — Tem uma adega lá com alguns vinhos, mas nem ousem tocar neles!
— Vinho?!
Athert subitamente parecia mais animado com a situação depois do dito pelo homem. As outras duas – principalmente Emma -, porém não compraram a ideia. Uma intensa troca de olhares foi travada entre a fugitiva e a antiga caçadora. Mesmo com a garantia do Gileon, ela sabia que algo estava para acontecer, de uma forma ou de outra.
A luz banhava a enorme clareira aberta por mãos humanas para abrigar a residência. Sob a sombra duma árvore solitária no gigantesco quintal gramado, Alex jazia sentada, pensativa. A tranquilidade do local era completamente diferente de Hermes. A natureza corria por todos os cantos, presente no cheiro do orvalho, no toque suave da relva fresca e na refrescante brisa úmida que ultrapassava os muros brancos.
Ela fechou os olhos, apreciando o momento quase ao ponto de cochilar ali mesmo. Tal paz, porém, durou muito menos do que ela esperava.
— Iah!
Com toda a força armazenada em seus braços magros, Athert desceu o machado que tinha em mãos, por pouco não dividindo o toco de madeira apoiado numa laje de pedra polida. Ele bufou ao perceber a falha, largando a ferramenta e a encarando-a fixamente, descrente com a própria capacidade.
— Aí, por que você tá fazendo isso mesmo? — Ela perguntou, a voz meio grogue.
— Precisamos de lenha pra noite ou vamos passar frio.
— E gente da Fronteira sente frio?
O semblante do clérigo se fechou numa carranca emburrada. Ele desviou o foco da garota e pôs as mãos novamente no cabo do machado.
— Tô fazendo isso pra gente, idiota.
Vendo o que tinha acabado de fazer, Alex suspirou profundamente e se levantou, chamando a atenção do rapaz. Enquanto se espreguiçava, ele a olhou de cima abaixo, como se a analisasse.
— O que é?
— Deixa eu te ajudar com isso.
— Hein? Não, deixa que eu...! — Antes que pudesse sequer completar a sentença, teve o machado tomado das mãos.
A ferreira usou um dos pés para chutar o tronco mal cortado para longe e, apoiando o machado no ombro, usou da mão livre para colocar outro tronco no lugar.
— Não é só força, tem que ter jeito também.
— Ahn?!
— Ugh... — Ela adotou uma postura relaxada e mais virada para o lado. — Assim, uma perna na frente da outra, ainda de frente pro negócio.
— Tá... e depois?
— Depois você segura o machado assim, ergue os braços desse jeito e, se apoiando com as pernas... — Ela então desferiu um golpe certeiro contra a madeira, que se partiu em duas sem oferecer resistência. — Você desce com tudo! Viu, não é tão difícil.
A expressão de Athert contrariava toda a normalidade que Alex passava. Se fossem traduzir sua expressão, ela certamente diria “Nem a pau”. Os olhos dele estavam fixos nos braços musculosos da colega, tentando processar a informação.
— Claro que não é difícil, olha pra você!
— Eu? O que tem eu? — Ela pendeu a cabeça para o lado, sinceramente em dúvida.
— O teu físico, o que mais poderia ser?
— Ah! Então era isso. Bom, se você treinar bastante, talvez um dia consiga me alcançar.
E foi aí que Athert se sentiu obrigado a provar a própria força. Mesmo sabendo que não tinha chances, ele tinha de tentar.
— Queda de braço. — Ele se sentou na grama e apoiou o cotovelo no suporte rochoso. — Agora!
— Sério?
— Sério!
— Tá bom, só não vem chorar porque perdeu depois!
Do outro lado da propriedade, Emma estava sentada num banco abaixo de uma das janelas do chalé, ponderando o próximo passo. A estrutura da casa a lembrava das propagandas dos condomínios rurais que passavam na televisão vez ou outra: madeira escura, poucas janelas, uma grande sala com lareira e três quartos e, por fim, uma espécie de cozinha ainda na sala.
O lado de fora não era tão vasto, apenas um campo vazio com algumas árvores espaçadas. O mais notável em si era o retângulo barrento que servia de arena para os mais variados propósitos. Com eles ali, o propósito só poderia ser um.
Interrompendo seus pensamentos de supetão, a porta que levava ao interior do casebre se abriu e, de lá, correu Luca, de braços abertos.
— É incrível! Esse lugar é tão grande!
— Ô pestinha! Cuidado pra não escorregar enquanto corre! — Esther veio logo atrás, coçando a cabeça de leve enquanto sorria timidamente.
Emma desviou o olhar de imediato, já Esther fez o oposto e olhou-a por alguns instantes até retornar as vistas para Luca.
— Você tem algum irmão? — disse a loira.
— Como se você não soubesse da resposta.
— É...
A cultista encostou-se contra a porta então fechada. Luca continuou a correr pelo campo, completamente alheio ao redor, levado pela mágica simplista do lugar. Só de ter aquela liberdade, sentia como se tivesse o mundo inteiro em sua posse, as preocupações deixadas de lado pela primeira vez em muito tempo.
— Eu já tive muitos, não eram meus irmãos de verdade, mas eu acreditava que eram. — Ela continuou, apesar da atitude anterior da rival. — O Luca é um desses, eu acho. Estar com ele me traz uma nostalgia que eu nem sabia ser possível.
— Qual é a sua, hein? Acha mesmo que eu vou...! — A frase não pôde ser completada, uma vez que o grito de Athert cortou através da tênue paz do campo.
— O QUEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE? — Indignado, apesar do resultado da luta ter sido mais que óbvio.
Alex caiu na gargalhada, incapaz de se conter diante da situação.
— E eles dois, como foi que os conheceu?
— Como eu ia dizendo, não espere que eu simplesmente ignore tudo. Eu sei que falei sobre nos resolvermos por outro meio, mas isso é... sei lá, falso demais. Não consigo acreditar ainda.
— Você não tem a obrigação de crer nas minhas palavras, sabe?
— Psicologia reversa não vai funcionar, corta essa.
— Tsc... — Ela então foi para a frente da garota, determinada a dar um basta na situação. — Vamos resolver isso de uma vez por todas.
— Essa não é a segunda vez que você diz isso?
— É, mas dessa vez é pra valer.
— Deus, você não pode estar falando sério.
— Só pensar que isso é parte do treino. — Como se já soubesse do decorrer dos eventos, ela caminhou para a arena. — Vamos, pega uma espada de madeira ali!
“Não... de jeito nenhum!”, ainda que em negação, Emma tinha o simulacro da arma em mãos antes mesmo de perceber. Vendo-se já tão longe dos próprios ideias, decidiu seguir com o jogo até o final.
De alguma forma, a conclusão enfim formava-se na cabeça da garota. Se a verdade não poderia ser dita ou aceita por meio do diálogo, então, ironicamente, o combate seria a chave para resolver o problema.
Por definitivo, elas enfim estavam ali, sozinhas e de frente uma para a outra. Luca, ainda por perto, viu a cena e não pôde evitar a curiosidade.
— Esther! O que tá rolando?
— Eu e Emma vamos treinar. Torça por mim, ok?
— Pode deixar! — ele sentou-se na grama à uma distância razoável. — Vai, Esther!
Emma sacou a espada e reforçou a própria guarda, julgando-se preparada para o confronto.
— Vai usar magia? — perguntou a espadachim.
— E qual o ponto da espada de madeira se eu usasse? — retrucou ela, enfaixando as mãos com tiras de seda. — Além do mais, não vai usar a sua?
— Minha?! Não tô sabendo disso aí não.
— Eu não vi na hora, mas na nossa primeira batalha, ainda na estrada, eu conseguia sentir algo vindo de você. Uma energia diferente de tudo que já senti.
— Isso não é hora de papo motivacional não!
É, tem razão! — Totalmente sem aviso, Esther arrancou em direção da oponente.
Esta mal teve tempo para reagir, sendo capaz somente de aparar o golpe com a madeira.
— Gah! Pelo menos avisa, droga!
— Fica quieta e presta atenção! — Ela parou por um momento, abrindo totalmente a guarda para a menina. — Seu defeito é falar demais, já percebeu isso?
Na tentativa de se aproveitar da oportunidade, Emma tentou golpear a inimiga, mas sem sucesso. Esther desviou sem muito esforço, tendo espaço para contra-atacar e acertar um soco direto na barriga da jovem. A atingida tossiu em reação, agora afastada da loira por menos de três metros.
— Me copiando? Qual é, você pode mais que isso!
— C-Cala a boca!
Emma insistiu em avanços precipitados e não muito pensados. Golpes sequências, balanços desengonçados e ataques desajeitados, não seria surpresa imaginar que todos errariam o alvo. Toda essa carga, porém, teve um grande custo de energia para a aprendiz, ofegante e com os pensamentos torpes.
— Ah... — Esther caminhou até ela sem preocupação alguma. A oponente, por sua vez, não teve forças o suficiente pra reagir. — Temos que trabalhar nessa sua energia, você esgota muito rápido.
— V-Você não está levando isso a sério! — Ela reclamou.
— Isso é um treino. Não vai adiantar de nada se eu simplesmente te descer a porrada. — Emma grunhiu de raiva e cansaço. — Vamos lá, você quer derrotar a Menorá Áurea, não quer?
A jovem ergueu a cabeça para encarar Esther nos olhos.
— O que?!
— Só me responde!
— S-Sim! — A resposta saiu sem hesitação.
— Ótimo. Agora, por que você deseja fazer isso?
— Onde v-você tá querendo chegar?
— Qual a parte de “me responde” você não entendeu? Desembucha, mulher!
Apesar de incisiva, a pergunta cada vez mais dava força para Emma continuar. O retorno foi quase imediato.
— A culpa disso é minha, se não fosse por minha causa nem eu nem vocês estariam aqui pra começo de conversa. E saber disso me deixa muito... muito puta!
— Perfeito. — Esther se afastou de novo, dessa vez adotando uma postura provocativa. — Eu ainda não entendi direito como funciona, mas por experiência própria, fortes emoções e desejos podem servir de gatilhos emocionais para surtos de energia mágica.
— E o que isso tem a ver?
— Canalize essa tua raiva em algo maior, mais profundo e interior. E, depois disso, pense como se você fosse liberar toda essa energia duma vez só. É desgastante, mas pode funcionar.
— E-Eu não tenho certeza.
— Eu vou te adiantar uma coisa, Emma. Você não vai derrotar a Menorá Áurea, não nesse estado. Se não conseguir nem me acertar um golpe, não vai vencer jamais. Então faça isso, prova do que tu é capaz!
Emma não conseguiu conter o sorriso de canto. A empolgação da revanche havia lhe tomado de vez: — E desde quando você se tornou treinadora?
— Eu ensinava os moleques de rua a jogar basquete, isso não é nada! Agora vem!
Como instruído, a guerreira fechou os olhos e respirou fundo, buscando os sentimentos mais evidentes e os condensando num único aglomerado. As lembranças vieram como uma cascata, muito além dos dias anteriores quanto sua vida virou do avesso. Retomaram momentos muito, mas muito antigos, de anos antes. Lembrou-se de uma noite chuvosa de verão, o infame dia em que a culpa foi a mais amarga.
E, naquele momento, as portas foram abertas por definitivo. Uma torrente de energia explosiva percorreu todo o corpo da jovem, começando do meio e indo dos pés à cabeça. A liberação fora tão violenta que uma pequena onda de choque desceu ao chão, levantando poeira.
Tão indescritível quanto incontrolável, toda aquela força desesperadamente buscava um meio de escapar do receptáculo frágil, pressionando os músculos de Emma a agirem. Ela precisava descarregar aquela energia, e sabia exatamente como fazê-lo.
De longe, Esther teve o vislumbre dos olhos azuis da garota adquirirem um intenso brilho violeta. Após isso, Emma entrou em posição de combate, completamente revigorada e com muita energia de sobra.
— É isso aí, porra! Haha! — No mesmo momento da sentença, a fiel foi surpreendida pela investida feroz da garota.
Quase num piscar de olhos, Emma diminuiu a distância entre elas de 6 metros para míseros centímetros. Diferente dos golpes anteriores, ela segurou a espada numa única mão e concentrou toda a energia num golpe horizontal.
“Que rápida!”
Esther não teve outra escolha senão ativar a própria magia nos milésimos de segundos que teve para reagir. O braço usado na defesa foi então engolido pelas chamas, mas nem essas foram capazes de segurar o poderoso impacto. A lâmina cortou através do fogo e atingiu em cheio o membro.
O golpe em si, no entanto, não era o verdadeiro segredo por trás do corte. Toda a energia acumulada foi liberada uma fração de segundo depois, impulsionando ainda mais a força do ataque. A potência embutida fora tanta que a espada de madeira simplesmente se partiu em dezenas de fragmentos, para a sorte de Esther.
A energia ainda foi capaz de empurrar a cultista alguns metros para trás. O resultado do treino não poderia ser discutido, uma vez que a condição de vitória fora atingida. Mas nenhuma delas pensou nisso na hora.
— Ai, cacete! Essa doeu! — Esther segurou o braço para tentar destilar a dor. — Eu sei que te disse pra me mostrar sua força, mas porra, vai com calma!
Emma, no entanto, não respondeu. Estava paralisada na mesma posição do avanço, o braço ainda esticado para frente e os dedos ainda entrelaçados no cabo da arma.
— Ei, tá me ouvindo?
— Ah! — Emma caiu de joelhos e, mesmo assim, o remanescente da espada não saiu de suas mãos. — Como eu...?
— Nooooooooooossa! — Luca gritou de longe. — A Emma mandou brasa!
— Ei! Mais torcidas pra mim também! — Esther prontamente se aproximou da rival. — Aí, cê tá legal? Foi um baita dum baque.
— Acho que tô sim... só meio tonta.
— Heh... faz sentido. E agora, acredita em mim? — indagou, oferecendo a mão para ela.
A garota, por outro lado, desviou o olhar e aceitou a ajuda para se levantar.
— Não vai se achando só porque estamos quites. Essa foi só a primeira partida!
— Depois dessa só amanhã, e não aceito nenhuma objeção!
— Pela primeira vez eu vou ter que concordar contigo.
De pé, elas encararam-se em silêncio. Nenhuma outra palavra era necessária, não mais. E, sem precisarem de motivo, riram juntas, a brisa fresca da tarde finalmente calma e refrescante.