Re:Nascimento Brasileira

Autor(a): Saya


Volume 1

Capítulo 13: Confronto no Entreposto

Ao fim da longa marcha pela floresta tropical, o trotar dos cavalos freou depois do portão alabastrino numa das entradas da cidade. Um por um, os animais pararam e deles descerem seus respectivos cavaleiros.

O líder, Gileon, foi o primeiro a pôr os pés no chão para terminar a organização da chegada do grupo. E enquanto ele era auxiliado por seus comparsas, Emma, Athert e Alex encontraram-se unidos em meio ao inesperado movimento onde se viram.

Em forma de círculo, Hermes era como o bastião da humanidade nas selvagens terras do mundo digital. Não era muito grande, na verdade, contava apenas com três setores distintos.

O primeiro e mais movimentado se assemelhava à uma grande feira, onde dezenas de indivíduos aglomeravam-se em volta de pequenas barracas e estandes cheios dos mais variados artigos, principalmente mantimentos, ferramentas e armas.

Na segunda e menor divisória, ficavam concatenadas construções cujas funções escondiam-se por trás das paredes de rocha. Placas nas entradas davam pistas, como padarias rudimentares, hotéis e outras funções. Este distrito escapava dos próprios limites imaginários impostos a ele, criando becos e vielas propensos a todo tipo de atividade longe das vistas.

Já a terceira seção tratava-se da maior e mais evidente construção de todo o entreposto. Erguendo-se mais alto até mesmo que as árvores do matagal – que, por comparação, as vezes eram maiores que os próprios muros -, o grande monumento pálido tomava a vista do trio. A presença de colunas, frontão triangular, cúpula e muitos outros fatores evidenciavam a clara inspiração neoclássica imposta na concepção do colosso alvo.

— Só foi inesperado pra mim? — Athert comentou, em consonância com os pensamentos das garotas.

— Nem nas minhas ideias mais malucas já imaginei que o Capitólio estaria no meio da selva.

— Isso não importa agora. — Emma cortou o assunto para mirar no tornozelo de Alex, ainda apoiada no ombro do sacerdote. — E o seu pé? Como ele tá?

— Já viu dias melhores, com certeza. Mas vou ficar bem.

Emma então direcionou as vistas para o curandeiro.

— Consegue fazer sua mágica?

— Claro! O que você acha que eu sou? Não são uns meros bandidos que vão drenar toda minha força.

— Deveria investir o seu tempo em trabalhar, não falar, rapaz. — Gileon intrometeu-se de repente, calando Athert no momento. — Vem cá, te dou uma mão.

Alex foi passada para o ombro largo do líder fora da léi, dando espaço para que Athert fizesse o encantamento.

— Se vocês não tivessem me interrompido na ponte, eu teria terminado antes mesmos de chegar nesse lugar. — Ele rebateu, mas Gileon não ligou e somente continuou a encará-lo. — E falando nisso, que diacho de buraco é esse? Nunca vi nada nos mapas.

— Mesmo quem vê o mundo de cima tem dificuldade para enxergar as joias escondidas abaixo. — Athert pendeu a cabeça para o lado, e o ladrão revirou os olhos. — A fronteira te deixou cego, amigo cavaleiro. Falando nisso, se não estiver a fim de tomar uma surra totalmente gratuita, ou nem tanto, é melhor tirar essa roupa de imperial.

— É o que? É a única roupa que eu tenho, como eu vou...?!

 Já impaciente com as reclamações do clérigo, Gileon deixou Alex de lado e, com as próprias mãos, arrancou o manto imperial do rapaz, deixando-o somente com uma fina blusa preta e calças de pano branco. Ele então, para concluir, tirou um item do bolso e o anexou à vestimenta de Athert.

— Pronto, agora você é um de nós.

O soldado não entendeu bem até olhar o que lhe foi imposto: era uma insígnia de ferro feita à forma do mesmo brasão que estampava o casaco do fora da lei.

— Eu-

— Diz mais um “A” e eu mesmo te desço a porrada. — Com o veredito final, Athert engoliu as palavras e assim ficou.

Dessa forma, ele retornou o olhar para Emma e Alex, mas especialmente na jovem de cabelos negros.

— O nome de vocês, qual era mesmo?

— Emma. – Ela apontou o indicador para si mesma e depois para a colega. — E Alex.

— Sejam bem-vindas! — Ele olhou por cima do ombro para o clérigo. — E bem-vindo, claro, ao Entreposto de Hermes! Meu pessoal já arrumou tudo pra mim enquanto vocês faziam cara de paisagem, então podem ficar tranquilos, temos nosso tempo pra resolver nossas questões.

— Esse lugar não foi o que eu imaginei.

— Ninguém pensa da primeira vez. Diferente das coisas ditas pelo seu amigo, nós não somos um bando de criminosos desorganizados. Estes são termos que não gostamos de usar por aqui.

— Deixa eu adivinhar, “homens de negócios”. — Emma chutou.

— Não é isso também. Aqui no entreposto, pessoas como eu somos chamadores de acionistas. As pessoas abaixo de nós são os executores responsáveis por girar as rodas da máquina econômica que criamos nesse fim de mundo. Simplesmente funciona!

— Ainda não me convenceu.

— Aí o problema não é meu, certo? — Ela gostaria de rebater, mas preferiu o silêncio. — Hermes é só a base de operações de todo esse grande motor de investimentos. Fora daqui temos alguns acampamentos e pequenas vilas para habitação dos nossos trabalhadores, além dos hotéis e moradias disponíveis entre as muralhas.

— E pensar que o conceito de dinheiro vale até aqui nesse lugar.

— Dinheiro é confiança, e confiança move o mundo, Emma. Foi essa confiança que construiu tudo isso à sua volta, e faria mais se não fossem... alguns problemas. Mas isso não vem ao caso, o que interessa aqui é...

Gileon de súbito interrompeu a própria fala quando viu alguém em disparada pela multidão na direção deles. Mesmo na cotidiana correria do entreposto, a expressão que ela carregava no rosto deixava claro que havia algo mais do que simplesmente uma comum passagem.

Os olhos azuis brilhavam com a intensidade de alguém determinado a fazer alguma coisa. E, para Gileon, isso só poderia significar uma coisa:

“Ah, pronto, isso tá me fedendo a problema.”

— Aí, por acaso vocês tão devendo a alguém?

Emma arqueou a sobrancelha.

— Se tô, nem ideia. Por quê?

— Tem uma moça vindo pra cá e ela não parece nada feliz. Falando nisso, eu nunca perguntei o motivo de vocês estarem naquela caravana imperial. Poderia ser...

Antes de concluir o pensamento, Gileon parou ao ver a feição de Emma tornar-se pálida e atônita por um intervalo curto de tempo, antes dela própria se despertar do transe com repetidos balanços da cabeça. Apesar de ter se livrado, a preocupação ainda lhe pesava no peito, mergulhado no misto sentimento entre o alívio e a dominante tensão.

Athert e Alex olharam ao mesmo tempo na direção indicada pelo líder, avistando primeiro que Emma, visto que ela estava de costas. No passo que ela se virou para encarar a inevitável rival, os outros dois realizavam quem era a mulher.

— Emma, aquela não é...? — Alex supôs, e a colega confirmou com a cabeça.

— É sim. Se isso é teimosia ou perseverança eu não sei, mas tô começando a achar que não somos tão diferentes assim.

As dezenas de metros logo foram reduzidas a um único digito. O mundo parou somente ali, com a guerra de olhares entre os quatro e a exausta cultista que correra todo o caminho até ali se estendendo por longos segundos até que a primeira palavra saiu para dar início ao confronto.

— É bom ver você viva, Garça. Por um momento achei que o rio tinha levado você.

— Quase levou. — Ela concordou, estendendo os braços para o lado como para se mostrar. — Mas eu tô de volta, podemos finalmente acertar as contas.

 — Você não precisa fazer isso.

— Preciso. —Esther retrucou, embora hesitante. — Se eu não fizer isso, não vou ter mais nada. E é tudo lculpa sua.

— Acha que se me levar de volta, tudo vai se resolver como mágica? Pra eles, você só está cumprindo sua função.

A fala da jovem tornou a fiel ainda mais incerta. Havia uma verdade ali, uma na qual ela negava até o fim. Ela cerrou o punho na tentativa de destilar a frustração vindoura. Entretanto, o gesto provou a própria falha quando faíscas estalaram pelo braço da mulher.

— Chega disso. — No mesmo momento da sentença, o brilho voraz das chamas renascidas engoliu os punhos de Esther, tomando a atenção não só do grupo e dos capangas de Gileon, como também dos transeuntes mais próximos. — Eles são minha única família, gostando de mim ou não. Não me importo se pra eles sou só um objeto ou uma ferramenta descartável.

Ela assumiu a escolha, tomando uma postura hostil.

— Isso acaba aqui e agora.

— Espera aí! — A suplica da jovem impediu o avanço da guerreira flamejante, decidida a escutar as palavras da rival. — Estamos em maior número, não é inteligente fazer isso.

— Ei, não me mete na sua rixa não! — Gileon, em retaliação, recebeu a careta raivosa de Emma por cima do ombro. — Digo, você não pode simplesmente fazer isso sem um acordo!

— Será que dá pra ajudar só um pouquinho?! Olha bem pra situação, cacete! Se quiser alguma coisa em troca, podemos conversar depois.

— Ah, saco! Vocês jovens não me dão sossego mesmo, viu? Aí, tocha-humana! Eu e meu pessoal tamo no time dela, ok? Sem ressentimentos!

“Deus tenha misericórdia”, pensou o trio de jovens ao redor do mais velho.

— Guh... fala sério. Já enfrentei caras maiores que você e seus homens. — Ela só esqueceu de dizer que isso foi quando tinha 9 anos.

— Ei! Isso magoou!

Sem mais tempo para gastar na conversa, Esther colocou um dos pés para frente, preparada para investir sobre o grupo. Não vendo outra opção, Emma buscou pelo cabo de sua espada, mas acabou por tatear o vazio repetidas vezes, os dedos procurando cada vez mais desesperados.

E então ela se lembrou de ter a espada tomada das mãos antes de embarcar na excursão.

“Ah, inferno!”

E a situação se repetiu para os outros dois companheiros. Alex, sem escolhes, rapidamente tomou a espada de Gileon para si, tirando-a da bainha ela mesma antes do velho.

— Minha espada!

— Aquieta o facho, coroa!

Contudo, o ataque de Esther nunca foi executado, uma vez que, na iminência do avanço, outra voz se misturou à cacofonia gerada por toda a confusão. A infantil e inocente voz cujo dono a fiel deixou para trás.

— Esther! — No mesmo instante, as labaredas extinguiram-se e ela tropeçou, quase indo ao chão se não fosse o autocontrole.

— L-Luca?! O que você tá fazendo aqui, menino? Eu não te pedi pra esperar do lado de fora?

— Não deu pra esperar! Ficou mais escuro e... eu não consigo ficar perto da floresta de noite, eu tenho medo.

— Então vai pra outro lugar, isso aqui é assunto de adulto, não é lugar pra criança! — Ela reativou o fogo nas mãos para reforçar o próprio ponto. — Te manda daqui moleque! Eu vejo você mais tarde.

Ao contrário do esperado por ela, Luca fez totalmente o oposto. Ele correu para cima dela, o que a obrigou a desaparecer com as flamas o mais rápido possível. O menino então agarrou-se à perna da loira, pega de surpresa pelo gesto.

— É perigoso de noite e... você prometeu que ia me acompanhar!

Enquanto a discussão acalorava-se, o grupo ligeiramente despreparado para o combate olhava atônito a cena. A dúbia decisão de guardar as espadas ainda restava nos cochichos dos homens de Gileon, e eram ainda mais acirrados entre o quarteto:

— Qual é a do pirralho? Tu conhece ele também? — Gileon indagou.

— É a primeira vez que vejo ele também. — Alex complementou.

— Eu não sei, tá legal?! Tá acontecendo um monte de coisa ao mesmo tempo aqui, me dá um tempo! E você, ladrão de meia tigela, me devolve minha espada, rápido!

— Só se sua amiga me devolver a minha primeiro.

— Então me devolve a minha!

— É sério que vocês vão discutir sobre isso agora?! — Athert interrompeu.

— Sim! — E os três responderam em uníssono.

— Eu mereço...

Alheios à discussão atrapalhada do grupo, os dois que causaram toda a comoção estavam no próprio mundo. Luca esperava pela resposta que Esther não tinha, mas precisava dar. A situação não era simplesmente ignorável, não para ela. E apesar de não ter nenhuma conexão significativa com o garoto, algo nele sufocava os impulsos explosivos jazentes no fundo do coração dela.

— Droga, pivete... — Ela deitou a mão sobre os cabelos de Luca, que ergueu o olhar para encará-la. Para a surpresa dele, o semblante da guerreira estava enfeitado com o sorriso dado mais cedo na floresta. — Você não tem jeito mesmo.

Ela tornou a olhar para o grupo armado, munida de uma expressão determinada.

— Emma! — O chamado tirou a garota da ainda vigente discussão sobre a posse das armas. — Nós ainda vamos resolver isso, dum jeito ou de outro.

— Esther, né? Espero que de outra maneira, não pela espada.

— Veremos. Tá certo, Luca, vamos procurar um lugar legal pra descansar, tivemos um dia cheio hoje.

Ele simplesmente balançou a cabeça, positivo. Assim, com a partida dos dois, a confusão teve um final... estranho, para dizer o mínimo. O quarteto precisou de alguns segundos para processar todo a série de acontecimentos, e Emma finalmente pôde suspirar aliviada. Bom, não por muito tempo.

— Tá bom galera, a baderna acabou, xô, xô! — Assim, Gileon espantou a multidão formada ao redor deles. No baixar da poeira, ele continuou: — Só pra você saber, tá me devendo o dobro agora.

— Hein? O dobro?

— Uma vez por salvar vocês na ponte e outra agora por tomar o seu partido. As dívidas estão acumulando, garota.

— Se você nos salvou na ponte então eu sou filha de padre. — Emma cruzou os braços. — A gente quase morreu, seu maluco!

— Nenhuma operação de resgate vem sem consequências. Aprenda logo que toda promessa é dívida, todo favor é um pagamento, e de dívidas e pagamentos eu entendo muito bem.

“Banqueiro safado...”.

— Tá legal, agiota, onde-

— Agiota não! Acionista!

— Tô pouco me fodendo, sinceramente. Temos coisas pra discutir e nenhum lugar decente pra fazer.

— Não por isso! Podemos ir agora ao Grande Mercado, o que me diz?

— Tá falando das barraquinhas ali no canto? O meu papo não é de feira não. Tenho informações muito valiosas comigo.

— Gosto da sua ousadia, mas não desmereça o mercadinho! Todo investidor e investidora dá seus primeiros passos ali!

— Tá, tá, tanto faz. Onde fica esse “Grande Mercado”, afinal?

— Meu palpite com certeza vai para o prédio enorme ali atrás, é o único lugar realmente grande nessa cidade.

— O Athert tá certo, mas não se engane, rapaz. O entreposto pode parecer pequeno, mas sua verdadeira natureza é muito maior do que você pode imaginar.

— Vamos ou não? Esse papo todo já tá me enchendo a paciência.

— Ok, ok, apressadinha. Deus do céu, já disse que vocês jovens me dão nos nervos?

— Já. — Os três responderam.

— Ótimo então, fica o aviso! — Gileon então virou-se para os capangas restantes. — Vamos, rapazes, temos clientes!

Dessa forma, agora escoltados pelos bandidos, o trio partiu rumo à joia dourada da floresta para o próximo passo da jornada. E, enquanto isso, esgueirando-se pelas sombrias vielas entre as casas, a improvável dupla ia noite adentro e, na medida em que o sol mergulhou no horizonte, assim diminuiu o movimento no entreposto.

Mas, nem por isso, as coisas estavam perto de se acalmar.



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