Volume 1
Capítulo 12: Levadas pela Correnteza
Muito além da corredeira voraz, o mundo inteiro aparentava ter se acalmado. O cântico dos pássaros era carregado pela brisa úmida que corria junto ao riacho letárgico, raso o bastante para cobrir, no máximo, os pés da maioria dos adultos.
Naquelas águas, pensamentos flutuavam na mesma velocidade da corrente, levados para o coração sinistro da floresta nebulosa. Ali, corriam arrependimentos, dores, sonhos, objetivos e, principalmente, sangue e lágrimas. O apelido “Lar do Caronte” não era apenas uma piada de alguns bandidos bêbados, afinal.
Entretanto, boiando no leito em freio constante, chegava às margens sedimentares uma alma tão teimosa que nem mesmo o barqueiro do submundo poderia fazer algo para alcança-la. Indômita pela próprio bem, Esther rastejou para fora da água, encontrando apoio entre as pedras para puxar o pesado corpo.
Não deteve os gemidos de dor e esforço que escaparam na tortuosa caminhada para a extremidade sem árvores da mata. A água tomou muito do fôlego da guerreira, e a barriga raspada contra a brita acumulada na beirada terminava o cruel serviço de moer as forças da fiel, então abandonada a própria sorte entre as árvores.
Para o movimento final, reservou o máximo de energia que ainda lhe restava nos braços. Ela impulsionou o corpo para frente, arrastando-se nos sedimentos de lado e, em seguida, caindo de peito para cima. Foi, sem sombra de dúvidas, a linha de chegada mais brutal que já alcançou até ali.
O olhar vazio encarava o céu alaranjado, cujas cores ficavam mais nítidas e compreensíveis na mesma medida que as batidas do coração freavam junto da respiração.
— Por quê? — A mão tentou se fechar em aflição, mas os dedos pouco se moveram. — Por que isso foi acontecer?
Nem mesmo o azul dos olhos manteve o brilho, lavado com a esperança pelo turbilhão que quase lhe custou a vida. A sombra estilhaçada escondia-se do sol em descensão, mesmo que o par de safiras procurasse a luz. Ela tentou levantar, somente para ceder à fadiga.
— Eu preciso... voltar.
Logo depois da afirmação, se engasgou com o pensamento seguinte. “Mas... eu posso voltar?”, questionou a si mesma. A dúbia indagação custou mais tempo do que tinha para gastar, ao menos pareceu, vista a deturpada percepção de tempo que a mente conferia.
E, apesar dos minutos gastos para encontrar a resposta, não encontrou a solução para os problemas do momento – que, se fossem contados, mal caberiam nos dedos.
No fim, julgou a si mesma incapaz de responder tamanha pergunta, então resolveu focar a atenção em coisas mais imediatas. As vistas procuraram apoio em algum lugar, e não demoraram muito para se depararem com uma rocha protuberante que se projetava para fora da terra, inclinada o bastante para deitar.
— Vai servir.
Esther atendeu ao chamado do cansaço, usando o pouco vigor recuperado para chegar ao pedregulho e encostar-se nele. A sensação não era muito melhor que o tapete de lama e pedra, mas a entregava melhor visão da localização onde naufragou.
Imaginava ter sido pega por um afluente mais fraco do rio – em boa parte, o maior motivo para ainda viver -, suposição apoiada pelas lembranças da súbita mudança de direção e força da água. A grossa camada vegetal a frente indicava também a transição de paisagens.
A flora expandiu a paleta de cores em muitos tons além do verde, incluindo variações mais vívidas do mesmo. Se isso não era prova o suficiente, bastava sentir a cabal mudança de temperatura da região. Enquanto as planícies e a floresta ao redor da ponte mantinham-se mais fresca e meio seco, o lugar em que jazia era quente e úmido, tentando simular as florestas tropicais do mundo real.
“Isso não ajuda muito... droga”, o inevitável pensamento invadiu a mente da cultista.
De repente, uma dor pulsante afligiu-a na lateral direita da cabeça. Em reflexo, levou a mão até o local e, quando a recolheu, viu os dedos manchados de sangue. Esther engoliu em seco, querendo crer que a confusão não era sintoma do ferimento na testa. Isso, porém, não era tão simples assim.
Arriscou movimentar as pernas e, quando elas responderam bem, conquistou novamente as esperanças para seguir em frente, mesmo que sem qualquer caminho definido. Esse era um objetivo a parte, o primeiro e mais lógico, é claro...
— Tenho que sair daqui.
No momento que as mãos buscaram apoio no solo para erguer-se, um farfalhar nos arbustos adiante a desequilibrou e, consequentemente, deu com as costas na pedra. A fiel sentiu o ar escapar com violência dos pulmões, e então tossiu algumas vezes até a mente clarear outra vez.
— Quem tá aí?! — disse ela.
As folhagens mexeram de forma sequencial até uma das árvores mais próximas. Sem nem mesmo cogitar outra possibilidade, os instintos entraram em ignição prontamente, ao contrário das chamas da invocadora, cuja situação obrigou uma aproximação dependente mais do carisma por parte dela. E nessa habilidade... ela não era tão bem versada.
— E-Eu tô avisando! Se mostra logo ou eu mesma vou atrás de você!
Inesperado mais para ela do que para qualquer outra pessoa com os olhos na cena, a ameaça infundada teve resposta não muito depois de ser proclamada. Detrás do tronco fino, a silhueta esguia de uma criança revelou-se para a lutadora. Ela deixou-se cair em um longo suspiro de volta para a pedra de encosto.
— Ha! — Ela sorriu de canto. — É um garoto... só um garoto.
O menino não se aproximou muito, ao invés disso, manteve-se a bons metros de Esther, o máximo que o receio o deixava chegar. Eles trocaram olhares pouco significativos, embora a adulta tentasse passar um bom sentimento para o menor – o olhar penetrante dela, porém, tornou isso impossível.
— Aí, guri, tá fazendo o que aqui? Veio pescar no riacho? — Independente da falta da resposta, ela continuou: — Não há peixes aqui, posso te garantir isso... ah!
Outra pontada na cabeça veio, forte o bastante para fazer as pernas reagirem junto ao corpo todo. Encarou-o de novo ao normalizar os sentidos. Tentou esconder a dor por trás do sorriso mais tremido que deu na vida.
— É... acho que não foi uma piada muito boa. Qual é o teu nome, afinal das contas? — De novo, sem respostas. — É do tipo calado, saquei.
O menino entrelaçou as mãos e desviou o olhar, preocupado com algo que ela não se importava de imaginar. Então, ele perguntou de repente:
— Você é um monstro?
De todos as indagações que se imaginou respondendo, a dita pelo menino não foi uma delas. Vista a situação, Esther viu-se intimada a improvisar.
— Monstro? Eu? Não, poxa! Sou gente, igual você. — Ela enfatizou a afirmação apontando o indicador para a feição descontraída. — Viu só? Normal.
— O pessoal da cidade me disse para não vir aqui. Disseram que mais pra dentro da floresta viviam monstros, fantasmas, até zumbis!
— Fantasmas, é? Você deve ser bem corajoso então pra estar andando por aqui, rapazinho. Onde estão seus pais?
O garoto balançou a cabeça, o semblante desmanchando em sentimentos conflitantes. Vendo os olhos escuros do menino tornarem-se confusos, a cultista não pôde enxergar a situação somente como oportunidade. As cicatrizes da cinzenta Detroit ainda pulsavam, infeccionadas e cheias do pó cristalino da cidade. O coração, endurecido por necessidade, voltou a pulsar tênue.
— É, deixa pra lá. — Levantou-se com sucesso na primeira tentativa, surpreendendo o garoto com a súbita aproximação. — A cidade que você falou, onde fica? Tô precisando dum lugar pra parar.
— Não é muito longe, eu acho, mas não tenho certeza... — Os olhos do menino estavam mirados na cabeça da loira, que notou e apontou para si mesma com o indicador
— Hm? Tem algo na minha testa?
— Tem... sangue.
— Ah, isso? Não foi nada não, fica tranquilo.
— Como você se machucou?
Tal pergunta em específico a situou ainda mais na recordação anterior. Apesar da semelhança entre situações, o ambiente exigia uma abordagem mais improvisada e, no mínimo, díspar a ocorrida na viela escura.
— Isso foi... numa briga contra monstros. É, isso! Tava no meio da treta contra um e, quando menos esperei, o desgraçado me jogou no rio e acabei parando aqui.
— M-Mo-Monstro?! — O garoto tremeu em consequência da resposta, um resultado esperado por ela.
— Relaxa, pirralho. — Na tentativa de se aproximar, ela mergulhou os dedos no volumoso cabelo castanho do menino. Ele não reagiu, somente mirou as vistas similarmente pardas para cima, onde encontraram o caloroso sorriso de Esther. — Já passou, não tem mais monstro...
Não completou a sentença, impedida pelo coincidente farfalhar na mata do outro lado do riacho. O entardecer em união à densidade da vegetação impediu qualquer avistamento por parte da fiel, a única a perceber a aparente movimentação. Ela tentou esquecer, mas as afirmações ansiosas do garoto sobre a reputação sombria do local embaralharam seus já confusos pensamentos.
— Nenhum...?
Levados pela correnteza, passado e presente se encontravam em crescentes paralelos. Fosse no beco imundo e cinzento ou naquela floresta verdejante e cheia de vida, as sensações eram assustadoramente similares. Isso, é claro, não ajudava a retardar a ansiedade progressiva.
No fim das contas, ela preferiu garantir-se do que esperar servir de jantar para algum predador em potencial. Sem nem mesmo perguntar, Esther tomou a mão do garoto que, de novo, não resistiu. Ele, na verdade, esperou inquieto pela próxima fala da misteriosa mulher.
— Não é legal ficar por aqui, você pode se machucar. — Com o pretexto em mãos, bastava continuar. — E eu não tô afim de ver fantasmas ou qualquer coisa do tipo. Sabe de algum canto legal?
Uma ideia prontamente ascendeu na mente dele.
— Tem um lugar legal aqui perto. Posso te levar lá... se quiser.
Ela sorriu, crendo-se vitoriosa.
— Você me guia e eu te protejo, combinado?
Ele acenou silenciosamente com a cabeça, e então concluiu:
— Luca. — Ela pendeu a cabeça para a esquerda, pensativa. — Você perguntou o meu nome mais cedo... eu me chamo Luca.
Esther riu baixo, a feição permeada pela nostálgica emoção que a situação trazia. Aquilo estava longe do controle da loira, não que houvesse muito a ser feito. Já era tarde demais para recuar, e ela entendia isso.
As coisas vivenciadas por ela em Detroit retornavam sem disfarce. Aquilo, porém era diferente. Pela primeira vez, sentiu-se do outro lado da história, no lado protetor. E essa responsabilidade era maior do que qualquer ligação anterior com o culto.
Sem nem mesmo perceber, a floresta a abraçou, levando as preocupações na corrente do rio.
O tempo se perdeu junto aos olhos de Esther entre as muitas folhagens no caminho indicado por Luca. Cada passo ameaçava engolir os pés da loira, quase sempre submersos no oceano de folhas e raízes abaixo.
Dos já monótonos arbustos, vez ou outra desabrochavam flores dos mais diversos tons e formas, compondo a aquarela do bioma junto dos animais que viram no caminho. Pássaros ocultos nas árvores, diminutos mamíferos assustados demais para encará-los fora dos esconderijos e, raras vezes, algo mais mediano, como semelhantes de capivaras, macacos e outros.
A apreciação de tudo isso, porém, seria mais frutífera se não fossem os incontáveis tropeços e esbarrões que Esther deu pelo trajeto. “Olhos no chão, Esther” repetiu para si mesma tantas vezes que, em certo ponto, desistiu de contar, uma vez que o próprio garoto a alertava sobre as armadilhas naturais e, mesmo assim, continuava caindo nas arapucas da mãe natureza.
— Qual é a desse lugar afinal? Por que tudo parece querer me derrubar?
— Cuidado...! — Tarde demais até para os sentidos rápidos de Luca. — Com o galho...
Dessa vez, a fiel somente trepidou com o andar um pouco, nada preocupante. Em sua cabeça, contava a 4° raiz em todo o percurso – de 3 troncos, 5 pedras e 2 buracos. Ela não direcionou muito esforço na contenção da raiva em iminente erupção, pois bastou um suspiro para que recobrasse a razão momentaneamente perdida.
— Respira, Esther, você já passou por coisa pior. — Murmurou para si mesma antes de passar a atenção para o menino. — Onde é que estamos indo afinal? E aliás... como cê não tropeça em nada?!
— E-Eu não sei. Já vim aqui muitas vezes, também tropeçava muito no começo, mas depois me acostumei. O chão da floresta não fica o mesmo por muito tempo, então as vezes eu quase caio também.
— O que tu vem fazer aqui? Cê mesmo não disse que é perigoso andar sozinho na floresta?
— É sim, mas...
— Mas?
— Papai e mamãe ainda podem estar por aí.
Esther calou-se, inapta até mesmo para a “infalível” técnica do improviso. Teve receio de perguntar, mas a curiosidade gerada pela afirmação de Luca era demais para a ansiosa espectadora que cada vez mais encontrava supostas semelhanças entre ela e o garoto.
— Está procurando por eles, então?
Ele fez que sim com a cabeça. O coração de Esther apertou, compassivo.
— Quantos anos você tem? — A cultista abriu as vistas quando Luca mostrou – com a mão livre – duas vezes o número 10 em sucessão. — Só 10? Tu é mesmo um moleque porreta, viu? Procurar pessoas todo dia no mato não é pra qualquer um. Bem, não que eu fizesse muito diferente de você quanto tinha a sua idade.
— Seus pais também sumiram?
A pergunta escavou fundo no interior de Esther, preparada para uma pergunta do tipo visto o encaminhamento da conversa que ela mesmo estava dando.
— É um pouco mais complicado que isso, na verdade. — Ela levou a mão para trás da cabeça, munida de um sorriso apreensivo. — Vamos só dizer que eu estava numa situação parecida com você agora. Parecida até demais na verdade.
— Tanto assim?
— Hm... — Novamente, a dúvida corroía a alma, levando consigo a certeira tomada de decisões - não que ela fosse a melhor em pensar rápido. Por fim, decidiu continuar medindo a fala, embora quisesse contar tudo — Eu tinha quase a sua idade na época, no auge dos meus 8 ou 9 anos, por aí. Vivia como arruaceira nas ruas da minha cidade natal, então eu conhecia cada bueiro daquele lugar e, normalmente, muitas pessoas me conheciam também.
— Bueiro? Você vivia no esgoto?
— Não, bobo, quis dizer que eu tava ligada no corre. Eu podia ser nova, mas tinha a malandragem duma líder de gangue. — As memórias passaram como fantasmas por suas vistas, retornando vívidas para assombrá-la. — Heh... saudades do pessoal. Enfim, foi numa noite em especial. Meu grupinho tinha acabado de levar uma surra duns caras maiores que nós. Não era a primeira vez, claro, nós éramos conhecidos por sermos pestinhas ousados.
— Parece legal! — Os olhos de Luca brilhavam, uma resposta que Esther não esperava de forma alguma.
“Qual é a dessa criançada moderna? Ok que eu me divertia fazendo isso..., mas não era pra ser legal. Ugh... esquece.”
— Bem... não é tão legal não. Na verdade, era bem dolorido quando a gente perdia... haha! Acontece que, nesse dia, não acabou bem pra mim e ficou ainda pior quando os policiais chegaram. Conseguiram pegar todos eles, até os maiorais, mas eu consegui me esconder. Fiquei sozinha, igual você, vagando sem rumo em busca de algo ou alguém para me guiar. Uns dias depois, encontrei... ele.
— Ele?
— Um motoqueiro, daquele tipo estereotipado que você vê em filmes e coisa do tipo. Jaqueta preta, tudo de couro, um penteado rebelde e, claro, a fiel moto encostada com ele. Acontece que ele não era de nenhuma gangue, estava tão sozinho quanto eu. Era um dia chuvoso, então acabei encontrando-o por acaso enquanto tentava me abrigar pela chuva. Até hoje não sei o porquê de ele ter falado comigo, só sei que as palavras dele pareceram ter razão pra mim na época.
— E o que ele disse?
Esther abriu um grande sorriso no rosto.
— “Aí pirralha, não desanima. A vida já é chuvosa demais pra você se deixar enferrujar.”
— Ahn? Só isso? — Luca parecia decepcionado, e Esther não podia esperar muito mais. Afinal, aquela não era toda a história.
— Heh? Não acha que ele foi super maneiro também?
— Eu...
— Nah, tô zoando com a sua cara, pirralho. — Ela sorria, despreocupada. — Chegamos, né?
Os olhos de Luca encontraram os muros alvos da cidade lar dos ladrões, brotando da floresta numa enorme clareira. Os ruídos e vozes escapavam para muito além do interior, ouvidos pelos andarilhos que ali chegavam constantes.
A única conexão entre o exterior e a colônia densamente povoada eram poucos portões montados em arcos de rocha branca, dos quais sentinelas rudimentarmente vestidos regulavam a entrada dos forasteiros e rostos já conhecidos por eles.
— Sim! Aqui é Hermes!
— Hermes, huh? O nome é legal.
De súbito, uma forte ventania anunciou a chegada da cavalaria no portão mais à direita dos dois. A caravana, a princípio, não aparentava nada de especial além da significativa quantia de cavalos que a compunha, cerca de uma dúzia corriam para dentro das muralhas. Algo, porém, chamou a atenção de Esther.
Mesmo da distância onde estava, a inconfundível aparência de seu nêmesis apareceu montada num dos cavalos, passando veloz junto da tropa de cavaleiros maltrapilhos. Cabelo negro correndo contra o vento, olhos azuis vibrantes feito o céu sem estrelas, o semblante sempre sério – quase impassivo –, meio emburrado. Não restavam dúvidas.
— Emma... — Ela sussurrou.
— Hm? O que foi?
— Espera aí, Lucas. — Levada pela situação, soltou-se do elo que manteve com o menino durante toda a viajem.
O coração da cultista batia sem controle, e tudo no mundo voltou a girar mais rápido. A calma se foi, carregada pelo rio de adrenalina que corria pelas veias da loira. Nada mais importava além da rixa que insistia em permanecer no vigor. A sina entre as duas estava longe de acabar. Na verdade, acabava de tomar novos ares.
Como uma artimanha cruel e fatal do destino, as duas rivais estavam prestes a colidir-se nas águas daquele rio caótico para mais um confronto.