Volume 1

Capítulo 3: Uma breve história do princípio

– Capítulo III –

 

Ao se aproximar da caverna onde Lilith residia, Samael ficou chocado ao testemunhar centenas de espíritos que perderam seu brilho e anjos caídos. Tal cena era um insulto ao arcanjo, sentia nojo a cada passo que dava em direção à entrada escura.

Os caídos o reconheceram e chamaram por ele, mas Samael passava direto, ignorando-os. Ele não estava ali por causa deles.

Lilith era uma mulher de beleza deslumbrante.

Sentada em uma pedra na entrada da caverna, avistou o arcanjo guerreiro. Cruzou o seu olhar com ele permanecendo em silêncio por um instante.

O arcanjo podia enxergar a alma dela através dos olhos. Ele quis comentar, mas preferiu resolver a questão logo.

— Samael, um dos demiurgos. Impressionante você vir em forma física me ver. Caiu como os demais? — provocou Lilith.

Samael abriu as majestosas asas, demonstrando sua fidelidade ao Criador.

— Bem, então você veio para cair comigo? — perguntou ela com sarcasmo.

— Chega das equívocas deduções. Tais atos fazem meus olhos arderem. Vim aqui em busca de esclarecimentos — respondeu o arcanjo com firmeza.

— Interessante. O filho de DEUS me procurando para encontrar respostas. Pensei que você veio aqui para me matar. — disse ela.

— Ele não joga com seus planos, Lilith. Mas você está dentro dos planos dele. — falou ele.

Ela olhou fixamente para o arcanjo com um olhar de pena, pois sabia do engano em suas palavras.

— Seu pai cometeu um erro, arcanjo. — disse ela.

— Como ousa?! — falou ele.

— Eu admiro essa fidelidade a ele. Mas é uma fidelidade exagerada. Você voltará daqui algum tempo, triste por ter acreditado demais nas próprias convicções. — disse ela.

A ira do Samael crescia a cada palavra proferida.

Ela calmamente se levantou da pedra em que permaneceu sentada. Fez um gesto com as mãos para que ele se acalmasse. O arcanjo olhou novamente para alma dela e viu sinceridade, e isso o deixou confuso.

— Mas enfim — prosseguiu Lilith — me fale sobre a dúvida que permeia em sua mente, talvez eu tenha a resposta. — disse ela

O arcanjo manteve a postura altiva e questionou:

— Quero saber o que aconteceu entre você e Adão. — disse ele

Ao mencionar o nome do Adão, o semblante dela mudou completamente, revelando ódio.

— O que você quer saber? — disse ela em tom de raiva.

— Por que decidiu abandonar Adão? Por qual motivo foi banida? — perguntou ele

— O teu Pai é um tirano! Ele me criou junto do Adão e ainda assim queria que eu obedecesse a essa hierarquia sem sentido, mesmo tendo me criado quase ao mesmo tempo que ele. Eu não tive escolha! — disse ela

— Mas você escolheu, Lilith… — falou ele

— Fui predestinada a ficar abaixo do homem, e você acha que isso é escolha? —  disse ela indignada

— E então escolheu se afastar do Jardim. — Afirmou ele

— Escolhi me afastar? O que um anjo como você sabe do que estou passando? E aquele Adão nem sequer ficou ao meu lado, nem sequer o questionou! Adão não tem mente, eu tentei abrir os olhos dele, mas ele não tem capacidade de decidir por conta própria! O que um filho mimado como você sabe sobre isso? — disse ela.

Samael ouviu as palavras dela, compreendendo a intensidade das suas emoções e dores. Mas ele continuou, firme em seu propósito:

— Já consegui informações o suficiente. E mais, você acusa o Ser supremo de tirania, mas seus argumentos são baseados no seu amor por Adão. Você se autodenomina livre, mas nunca se libertou do seu amor. — falou ele.

— Basta! SAIA DAQUI! — disse ela explodindo em fúria

O arcanjo saiu dali, com o coração acelerado pela estranha mistura de sentimentos que aquela conversa havia despertado nele.

Ao deixar a caverna, uma sensação de inquietude o acompanhava, fazendo-o refletir sobre os acontecimentos.

Enquanto isso, Lilith caiu aos prantos no interior da escura gruta. Trazendo à tona lembranças enterradas na alma.

Certamente, ela ainda amava Adão. Nunca esqueceu dos momentos que compartilharam juntos, e a dor da separação ainda a corroía. Sentia uma espécie de inveja da Eva, pois ela havia compreendido tanto o Criador quanto Adão, enquanto ela própria foi empurrada para a escuridão.

Revoltada com o destino, Lilith planejava, de alguma forma, acabar com a felicidade daquelas duas figuras, e assim, confrontar os próprios planos do Ser supremo. Ela sabia que o Eterno não se submetia à arbitrariedade dos humanos, mas ao mesmo tempo, permitia que o destino da Terra dependesse exclusivamente da humanidade.

Esses pensamentos turbulentos preenchiam a mente dela enquanto se debatia entre o desejo de vingança e a necessidade de libertar-se do sofrimento que carregava consigo. Ninguém poderia negar que Lilith era uma força a ser reconhecida, mesmo que em rebeldia ela estivesse disposta a confrontar os próprios pilares do universo.

Enquanto isso, Samael buscou respostas nos recantos mais profundos da alma, tentando entender o que aquela interação com Lilith significava para o destino da humanidade e para sua própria jornada como arcanjo.


Samael dirigiu-se ao Jardim, buscando agora compreender o ponto de vista do casal de humanos. Adão estava com Eva e avistou um Arcanjo aproximando-se. Quando chegou perto, o arcanjo fez um gesto de reverência aos dois. Estava nervoso na presença deles e não sabia o motivo.

— Adão, Eva., meu nome é Samael. É um prazer conhecê-los — anunciou ele, recebendo cumprimentos calorosos dos dois.

— Estou aqui apenas para esclarecimentos — continuou Samael, fazendo uma pausa significativa.

— Presumo que seja sobre Lilith — concluiu Adão.

Eva, ao perceber que Samael desejava uma conversa a sós com Adão, decidiu dar-lhes privacidade. Ela compreendia a complexidade da situação e a importância de se aprofundar nessa questão crucial.

— Serei direto. O que pensas da Lilith? — disse o arcanjo.

Samael encarou o homem, buscando encontrar nos olhos dele as respostas que tanto ansiou. A pergunta sobre Lilith pairou no ar, carregada de mistério e expectativa.

Adão reuniu coragem e, sem desviar o olhar, compartilhou a verdade. Era uma confissão que abrangia dimensões emocionais complexas e desafiava as concepções convencionais sobre o amor que nem mesmo o Criador falaria.

— Estrela da manhã, tu não compreenderás como me sinto. mas contarei. Eu ainda amo Lilith, mas também amo Eva. — disse ele

Samael ficou atônito. Como era possível amar duas pessoas ao mesmo tempo? A pergunta reverberava em sua mente, enquanto tentou assimilar a profundidade das palavras de Adão.

— Compreendo tua dúvida, Estrela da manhã. Lilith foi criada comigo. As tardes que passamos juntos, conversando sobre a existência, foram valiosas para mim. Porém, ela não conseguiu compreender o Criador e se rebelou. Talvez eu devesse tê-la acompanhado. Mas escolhi permanecer ao lado Dele — explicou ele, revelando lealdade

— Tua lealdade a Ele é grande. Mas em troca, perdeste teu amor.

— Não foi apenas por minha lealdade, Samael. Foi também minha fé de que tudo é para o bem. E eu não queria abandoná-lo. Com a partida da Eternidade, o Ser supremo parece triste — acrescentou Adão, trazendo à tona a tristeza que pairava sobre o Criador, mesmo diante da divindade que possuía.

— Ele te revelou isso? Revelar isso a um ser vivo… — questionou ele.

Adão pausou por um momento, refletindo sobre suas palavras.

— Ele não precisou me revelar. Senti isso em meu coração. Ele é o pai de todos nós, e o amor por Lilith é imensurável. Contudo, Ele também é justo e segue seus planos divinos. Ele confia em mim para cumprir minha missão aqui na Terra ao lado da Eva. Ainda amo Lilith, mas compreendo que nossos caminhos se separaram devido a uma escolha que ela fez. E agora estou comprometido em construir um futuro, seguindo os propósitos do Ser supremo.


Distante dali, as serpentes que se compadeciam da Lilith transmitiam todas as informações, inclusive a de que Adão seria o escolhido para governar o Universo no trono de Deus, caso passasse na provação.

Ela teve uma ideia: sabendo que todos os animais amavam os humanos, incluindo as serpentes, ela forjou uma mentira para alcançar seus objetivos.

— Serpentes! Ouçam-me bem, se desejam a aprovação de Adão, devem contribuir para que isso ocorra. Na verdade, para que Adão seja aprovado, ele precisa oferecer o fruto primeiro a Eva, para que ela abra seus olhos e o guie ao trono. — disse ela.

— Lilith, como você sabe de tudo isso? — perguntaram as serpentes.

— Eu possuo a mesma inteligência da Eva. E, outrora, eu seria a primeira a comer do fruto. Portanto, façam o que eu digo. — disse ela

Lilith deu todas as instruções às serpentes.

Samael havia acabado de terminar sua longa conversa com Adão. Ele começou a olhar Adão como um irmão, mesmo pertencendo a uma raça diferente. Aos poucos, o arcanjo começou a entender por que Raziel admirava tanto os humanos.

Enquanto isso, Eva estava longe dali, interagindo com os outros animais. Ela passou pelo bosque das fontes d'água e deparou-se com a árvore do conhecimento. Nesse momento, nem Samael nem Adão conseguiram encontrar Eva. A percepção do Samael não conseguia alcançá-la.

As serpentes possuíam o poder de ocultar a própria presença por um breve momento, e juntas eram capazes de esconder uma floresta inteira de seres vivos. E foi exatamente isso que fizeram com ela.

Eva observava a árvore com desprezo. Ela podia enxergar a aura daquele fruto e sentia repulsa em comê-lo. "Será mesmo necessário que Adão passe por essa provação?", perguntou-se.

Uma das serpentes deslizou sorrateiramente entre os galhos da árvore para conversar com ela.

— Eva, é preciso que você coma o fruto primeiro, para que Adão supere essa prova! — falou a serpente.

— O quê?! Do que você está falando? — disse ela.

— Adão morrerá se você não comer primeiro. Essa é a prova de Deus. — falou a serpente

Eva sabia da ordem do Criador, mas ao ouvir que a vida de Adão estava em perigo, sentiu-se hesitante em fugir dali.

— Eva, nós também queremos o bem do Adão. Coma do fruto! — falou a serpente.

Eva, sem pensar duas vezes sobre a veracidade das informações, comeu do fruto pelo bem do seu amado.


— Raziel... Está anoitecendo... — interrompeu Noah de forma abrupta.

Tão animada em contar a história, ela não tinha percebido o tempo passar.

— Quero ouvir o restante da história depois, é realmente interessante! Mas minha mente não é como a sua, é muito para assimilar. Preciso de um tempo para organizar meus pensamentos. — disse ele

— Desculpe, Noah. Sempre me sinto tão à vontade quando estou com você. — falou ele

— Bem, eu sinto o mesmo... — disse ele com o coração acelerado — quando eu era criança, muito antes de você me encontrar, os humanos me contaram uma versão diferente.

— Sim, essa versão que te contaram ainda perdura entre as diferentes raças do universo, até mesmo entre os seres celestiais. — falou ela

Os dois deitaram-se na grama da planície, observando as estrelas no céu.

— Quando você embarcar em uma Jornada, escolha o caminho entre Sirius e Canopus. Talvez sua alma me encontre lá — falou ela com uma voz triste

— Já está pensando em minha morte? — disse ele em tom de brincadeira.

— Noah, estar com você me faz bem. Por alguma razão quero estar ao seu lado todos os dias. — declarou ela

O jovem sentiu seu coração apertar ao ouvir essas lindas palavras, sem entender exatamente o que significava.

— Raziel, sinto o mesmo. Na verdade, sinto isso desde a primeira vez em que você me salvou há tanto tempo. — disse ele.

— Eu entendo como você se sente, seus olhos são sinceros. Mas eu preciso partir para que você siga seu próprio caminho e tenha uma vida normal. — falou ela

— O quê?! Pensei que ficaria por mais tempo... Não imaginei que pretendia partir tão cedo. E como vai terminar de contar a história? — disse ele

— Já fiquei tempo suficiente. Preciso resolver algumas questões fora do plano material e atualizar minha biblioteca com as experiências que adquiri aqui. Quanto à história, não ficarei fora para sempre. Por favor, não fique triste com minha partida. Amanhã conversaremos melhor sobre isso. — falou ela

O jovem sentia um afeto que não conseguia compreender, um desejo de abraçá-la, de estar com ela para sempre. E Raziel compartilhava do mesmo sentimento…

Após a conversa, foram dormir.


Ao nascer do sol, Noah acordou e não encontrou Raziel.

 Em seu lugar, havia uma carta escrita:

"Peço perdão por partir sem me despedir. Sabia que você me pediria para ficar, e eu cederia aos seus pedidos. Deveria ser assim. Não sei por que decidi partir dessa maneira, não é meu costume. Doeu escrever esta carta para você. Não sei se você estará vivo quando eu retornar ao plano material. No entanto, saiba que, entre todas as ciências do universo que eu conheci, conhecer você foi a melhor delas. Viva e faça suas escolhas, não se arrependa de nenhuma delas, pois isso é o que te faz humano. Eu me arrependo de uma coisa, ter que te deixar. Adeus, Noah. Seja feliz!"

O jovem nunca havia sentido esse tipo de sentimento antes. Perdeu a força nas pernas. Ele sabia que a partida da Raziel seria dolorosa, mas não se preparou para essa súbita despedida.

A tristeza tomou de si. Ficou sem reação por um longo tempo, enquanto lágrimas escorriam por seu rosto.

Havia oito anos desde a última vez que chorou dessa forma. Ao lamentar a partida dela, as memórias dos seus pais voltaram à mente. Relembrou dos momentos que quase haviam sido esquecidos. Doía relembrar, mas Noah continuou. Seus pais sempre lhe deram amor.

Ele ergueu o rosto para o céu e decidiu manter-se forte para honrar seus pais e os ensinamentos da sua mestra.

Caminhou em direção à caverna, com memórias do passado vindo na sua mente. Encontrou a capa que o anjo deixou. Noah chorou novamente, sentindo um sentimento de paixão surgir dentro dele, mas sem saber como controlá-lo, pois nunca havia experimentado algo assim.

Ele pegou a capa da Raziel para si e decidiu seguir o conselho dela: Reintegrar-se na sociedade humana.

E assim, partiu em direção ao Reino dos humanos.



Comentários