Volume 1

Capítulo 4: Consequências

– Capítulo IV –

 

Raziel estava com o coração perturbado por ter saído rapidamente da Terra. Sentia uma tristeza profunda, pois não queria deixar Noah à mercê do destino incerto. Ela ansiava por levá-lo consigo, protegê-lo sob suas asas, mas sabia que infringiria a lei do ciclo da vida no plano terreno se o fizesse.

Ao deixar o plano físico da Terra, Raziel dirigiu-se ao mundo da formação chamado Yetzirah. Nesse mundo, o tempo não seguia a linearidade que conhecemos, criando ramificações temporais do presente em múltiplas direções. Todas essas ramificações, no entanto, estavam interligadas por uma raiz central, uma linha do tempo de origem quase imutável.

No mundo material, os seres físicos estão presos à peculiaridade do tempo linear. Em razão disso, o tempo não é retrógrado, impossibilitando o acesso ao passado e ao futuro.

A anja, movendo-se entre os mundos, estava prestes a atualizar a biblioteca que mantém oculta.

Enquanto seguia para a biblioteca, indo para o espaço em direção as estrelas, algo surpreendente aconteceu. Tudo ao seu redor parou, como se o próprio tempo tivesse sido suspenso. Apavorada, ela tentou conjurar com seus pensamentos, mas nem isso adiantou. "Impossível!", pensou ela, questionando se os seres celestiais teriam descoberto a interação dela com um humano. Preocupada, Raziel reviu mentalmente todos os passos que tomara, assegurando-se de que nenhum rastro poderia comprometer a vida do Noah.

Porém, o motivo desse estranho acontecimento não era um mero flagrante das suas ações, mas sim a aparição de um ser misterioso, uma criatura incumbida de um propósito singular. Esse ser tinha a capacidade de alterar o passado e o futuro, se necessário, mas jamais interferiria no presente. Era o guardião do tempo, uma entidade cósmica temida até pelos seres celestiais mais poderosos. Era o ser na qual foi designado pelo Criador para cuidar do tempo: Metatron.

— Há quanto tempo minha irmã — cumprimentou o guardião, com uma voz que ecoava no espaço silencioso.

Prestes a sacrificar uma das suas asas para liberar todo o potencial do seu poder, sentiu-se aliviada por saber que era Metatron.

— Meu irmão, há quanto tempo. Não era necessário parar o espaço ao nosso redor para falar comigo.

— Perdoe-me, Raziel. Minha visita não era para repreendê-la, mas sim para oferecer orientação em seu caminho — disse ele, com uma expressão compassiva.

Curiosa, a sábia anja inquiriu:

— Orientação? O que deseja me dizer, meu irmão?

O guardião do tempo flutuou suavemente em direção a ela.

— Você tem pendências no Tribunal das Plêiades. A corte deseja explicações do seu sumiço durante a guerra contra os humanos — disse Metatron

— Irmão, no momento eu não estou bem para o julgamento. Estou emotiva demais e não sei o porquê. Não é melhor discutir sobre isso na Assembleia da Inquietude?

Nesse palco cósmico, a balança do destino oscilava em busca de harmonia. Metatron sabia que o marco zero do desdobramento temporal começou exatamente após Raziel ter deixado o plano terrestre.

—  Há um desequilíbrio nos reinos celestiais. Samael traiu as hostes e decidiu lutar ao lado dos humanos. Alguns dos Ofanins foram destruídos ao travarem uma luta contra ele... Até a Cidade Prateada dos anjos foi afetada — disse o guardião, sua voz ecoando com um tom de seriedade.

— É uma guerra sem sentido e covarde, Metatron! Nunca participei das decisões das Plêiades e não será agora que vou participar — disse ela.

— A audiência é obrigatória você sabe disso. Não prolongue o inevitável, Raziel. — disse o guardião

Raziel o venceria facilmente se argumentasse mais um pouco, pois sabia o quão sem noção as criaturas ancestrais do Tribunal têm agido. Mas dessa vez, optou por ficar em silêncio.

O guardião do tempo deu mais detalhes acerca da Grande Guerra. Explicou que por conta de um emaranhado de ações a guerra está acontecendo em dois estados do tempo: Passado e futuro.

Confusa, ela disse que há oito anos que ficara na Terra e que os humanos prevaleceram contra o Exército dos Céus, ou seja, é impossível um mesmo evento ocorrer em linhas do tempo diferentes ainda que haja algumas nuances.

Raziel sentiu um arrepio percorrer sua essência celestial. A gravidade da situação era maior do que ela imaginava. Sabia que as interações com Noah poderiam estar relacionadas a essa ameaça.

A essa altura da conversa, Raziel sabia que não seria capaz de esconder seus pensamentos e sentimentos. Explicou sobre as preocupações e anseios em relação a Noah e como o tornou seu discípulo.

— Os desígnios do tempo são complexos e muitas vezes imprevisíveis. Se teu coração está tão ligado a esse humano, talvez haja uma razão maior para vossos destinos se entrelaçarem. Porém, jamais esqueça da importância do equilíbrio universal. As escolhas que fazemos podem reverberar além do que podemos imaginar — disse Metatron.

O guardião do tempo, possuía a importante tarefa de corrigir anomalias e proteger o fluxo do tempo. Ciente de que a culpa pelo emaranhamento temporal era da Raziel, Metatron tinha o poder de voltar ao momento em que ela se encontrou com o humano e impedir esse acontecimento, mas algo o segurava.

Em sua mente, ecoava a constatação de que o Criador já não estava presente naquele plano. Essa ausência o fazia questionar o sentido de continuar seguindo as diretrizes que havia recebido para zelar pela ordem universal. O guardião se viu em meio a uma encruzilhada, onde o dever que conhecia há tempos confrontava uma nova possibilidade de escolha. Ele estava diante da oportunidade de definir seu próprio caminho, sem a sombra das antigas diretrizes a lhe guiar. Essa sensação de autodeterminação o envolveu como uma onda poderosa, trazendo-lhe um misto de incerteza e empoderamento.

A hesitação se misturava com a curiosidade de explorar essa nova sensação de liberdade. Afinal, o que significava ser o guardião do tempo sem o Criador como guia?

Junto com essa liberdade, veio uma inquietude. O que ele faria agora? Sem a orientação divina, qual seria o seu propósito? O guardião do tempo se viu diante de um dilema sem precedentes.

Enquanto flutuava em um mar de pensamentos, sua atenção voltou-se novamente para Raziel.

— Irmão, devo partir agora para minha biblioteca. Foi muito bom encontrá-lo aqui. Talvez eu vá até o tribunal daqui a milhares de anos — disse ela, com um leve sorriso no rosto.

O guardião do tempo correspondeu ao sorriso, aliviado em saber que suas interações não haviam mudado as convicções que Raziel carregava consigo. Ela era uma anja com um propósito firme, e isso lhe trazia um certo conforto.

— Antes de partir, Raziel, há algo que preciso compartilhar contigo. O futuro reserva desafios que se estendem além do que já testemunhamos. Uma guerra de proporções ainda maiores ocorrerá entre humanos e seres divinos. E, em meio a essa luta, você se encontrará diante de um dilema profundo entre seu coração e a razão.

Raziel ouvia atentamente as palavras do Metatron, com o olhar sério e concentrado.

— Descobrirá um certo tipo de amor, um laço intenso que transcende as fronteiras do céu e da terra. Entretanto, seu amado não estará disposto a lutar ao seu lado, e vocês serão colocados em lados opostos no conflito iminente. Um destino trágico espreita a vida de um de vocês dois — revelou ele, com a seriedade de quem conhecia os meandros do tempo.

As palavras do Metatron ecoaram no ar, deixando um rastro de inquietação em Raziel. O misto de incerteza e pesar se fazia presente em seu semblante angelical. Ela sabia que o caminho à sua frente estava repleto de desafios e que suas convicções seriam postas à prova.

Raziel guardou essas palavras para refletir posteriormente. Estava com pressa, pois queria um tempo sozinha para pensar na sua biblioteca celestial.

Metatron fez com que o tempo voltasse ao normal para que Raziel pudesse voar livremente.

Quando ela estava para transpor as realidades, perguntou sobre o paradeiro do Criador.

O guardião explicou que, muito provavelmente, Deus deixou o plano da existência e foi além dela. Um lugar onde até o destruidor da vida, Abaddon, nem ousaria se aventurar: O plano da inexistência, que também é chamado de “o Lar dos Abstratos”.

“Voltar no tempo não seria uma solução?”, indagou ela.

Metatron informou que Deus é a incógnita da equação chamada criação. Foram várias tentativas de voltar ao passado, mas não havia a presença do Criador lá. “Eu voltei até o momento em que Adão e Eva conversavam com ele. Mas o que eu vi foi apenas os dois conversando com o vazio. Fui até quando o Criador nos formou, porém, não o vi lá. Observei a maneira como fomos criados, mas a presença não estava lá.”, acrescentou ele.

Raziel agradeceu a Metatron pela informação e partiu em direção à sua biblioteca celestial. Enquanto voava em meio às estrelas, sua mente estava repleta de pensamentos sobre o futuro que o guardião do tempo havia previsto. Ela sabia que as palavras do Metatron eram sérias e que não deveria subestimar o que estava por vir.

Ainda atordoada com a revelação do Metatron sobre o paradeiro do Criador no Lar dos Abstratos e a profecia da guerra, Raziel continuou a voar em direção à sua biblioteca celestial. O que ela acabara de descobrir sobre o Criador a intrigava profundamente. O que teria levado Deus a deixar a existência e partir para um plano tão misterioso?

O Lar dos Abstratos é um lugar onde nada que foi criado consegue existir.

Dizia-se que, antes de criar os mundos conhecidos, o Criador existia em harmonia com a Eternidade além da criação e das leis do tempo e espaço. Lugar aonde nem os seres que residem no mundo da Emanação conseguem chegar.

Através das letras, ele formou o que conhecemos por existência; a Consciência da Existência.

Ao chegar à biblioteca, Raziel se permitiu um momento de solidão para refletir sobre tudo o que havia acontecido. Ela caminhou entre as estantes de livros, tocando suavemente as antigas capas que continham os segredos do universo. Naquele local, onde o tempo não tinha a mesma pressa que nos outros planos, ela procurou por respostas em meio aos conhecimentos guardados. Encontrou conforto nas antigas páginas do livro que relata sobre os Pilares da Criação. Ali, sentou-se em uma mesa preta para procurar por qualquer menção ao Lar dos Abstratos, mas descobriu que esse lugar era pouco conhecido, mesmo entre os seres que compõem o Conselho da Plenitude, que foram criados antes dos anjos, desconhecem de tal lugar.

Enquanto mergulhava no livro, a profecia do guardião do tempo ecoava em sua mente. Ela estava destinada a enfrentar uma guerra de proporções ainda maiores. Raziel sabia que a única forma de enfrentar esses desafios era fortalecer seu espírito e poderes.

Disposta a lutar contra a profecia, começou a desenvolver um plano ousado de utilizar o Anel de Mazal, um artefato cujo poder dava ao portador a capacidade de reescrever um evento destinado a acontecer. Como o Anel é arcaico, era necessária uma grande quantidade de poder imbuído para funcionar. Ou seja, sacrificar um par de asas. O Anel de Mazal só pode ser utilizado uma vez

Como não achou nada relevante no livro sobre desaparecimento do Criador. Decidiu descansar um pouco. Ainda há muitas outras questões para resolver no Tribunal das Plêiades.

Fechou o livro, levantou-se da mesa e guardou o livro na estante.

No corredor da estante, reparou em livros diferentes. Mas não se importou. O cansaço de sua viagem e as questões que deveria resolver não davam espaço para raciocínio.

Ela possuía um quarto em sua biblioteca e caminhou em direção do quarto para repousar. O quarto era aconchegante, com uma cama macia com mobílias parecida com a dos humanos, pois gostava da cultura deles.

Ao se deitar, fechou os olhos e deixou sua mente vagar pelos acontecimentos recentes. Em seus pensamentos, ela revisitou as pistas e fragmentos de informações que tinha sobre o Criador.

Apesar de suas habilidades, o desaparecimento do Criador estava se revelando um enigma complexo e sem precedentes. As perguntas sem respostas começaram a se acumular em sua mente, mas o cansaço a estava dominando.

Enquanto descansava na cama macia, ela sabia que precisava energizar suas forças para continuar sua busca pelo Criador e enfrentar os desafios do Tribunal. A incerteza e o desconhecido faziam parte do trabalho, mas também a motivação para prosseguir.

Com esse pensamento, deixou-se levar pelo sono reconfortante.

A partir de amanhã, apenas tristezas esperam por ela. Infelizmente.


Noah refez o caminho que o levou até Raziel no passado em busca de vestígios dos seus pais no vilarejo que nasceu. A estrada que levaria ao vilarejo, agora pavimentada, encontrava-se com novas rotas. "Parece eles conseguiram construir novos lugares", pensou.

No caminho, as árvores balançavam com um ar que trazia consigo inquietação. Algo não parecia certo. O jovem não criou expectativas de encontrar algum conhecido vivo do vilarejo. A crueldade que viu com seus próprios olhos não dava espaço para isso. Tudo foi feito em cinzas. O Exército dos Paladinos de Alvartein não puderam chegar a tempo para evitar aquele genocídio que ocorreu há oitos anos. O tempo estava nublado, com nuvens carregadas de chuva. Após alguns minutos, ele conseguiu enxergar algumas tendas de longe. "Teria alguém sobrevivido do meu vilarejo?", questionou.

Noah aproximou-se cautelosamente das tendas, mantendo-se alerta e com a mão sobre a empunhadura de sua espada.

Ao chegar mais perto, ele percebeu que as tendas eram de um acampamento do exército que havia estabelecido temporariamente um acampamento naquela área. Estandartes com o símbolo da realeza estavam fincados na entrada.

Mesmo assim, ele não podia deixar de perguntar se alguém do vilarejo que nasceu poderia ter sobrevivido e se, de alguma forma, estivesse ligado a esse acampamento.

Com um misto de esperança e apreensão, ele se aproximou de um dos membros do acampamento, um homem de meia-idade.

— Meu nome é Noah. Estou em busca de informações sobre um vilarejo que existia por aqui há alguns anos. Foi destruído por um ataque brutal... - disse Noah.

Fazia tempo que não conversava com um humano e por conta disso a comunicação era direta.

— Sinto muito, jovem. Este local era apenas uma estrada de terra na época do ataque que você menciona. O vilarejo que existia aqui foi completamente devastado, e parece que ninguém sobreviveu.

O coração de Noah apertou com a confirmação daquilo que já pensava. Ele agradeceu ao homem pela informação.

Após o momento em que Noah refletia sobre o passado, um barulho chamou sua atenção, interrompendo seus pensamentos. Ele virou-se e viu um escravo ser empurrado violentamente pelos cavaleiros do acampamento. O jovem magro caiu no meio do acampamento, com a comida dos cavaleiros espalhada no chão.

Os cavaleiros não mostravam piedade e começaram a chutar cada parte do corpo do escravo, zombando e cuspindo nele. A sessão de agressão parecia interminável, e o jovem não tinha forças para se proteger.

Noah ficou horrorizado e indignado com a cena. Com a voz carregada de fúria, ele confrontou os agressores:

Vocês estão escravizando um homem? Isso é inaceitável! — disse Noah, lutando para controlar a raiva que sentia.

— Jovem, infelizmente, essa prática é comum por aqui. Ele não vale nada e não possui nada. Então, por que não escravizá-lo? — disse o homem com cinismo, tentando justificar a crueldade deles.

— Não importa o que ele possua ou não. Escravizar sua própria espécie e privar um ser vivo de sua liberdade é um ato abominável e inaceitável! Como podem fazer isso?! — exclamou Noah.

Enquanto a chuva começava a cair, Noah tomou sua decisão. Não deixaria ninguém daquele acampamento vivo.


 

 

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