Volume 1

Capítulo 2: Uma amizade incomum

– Capítulo II –

 

Oito anos se passaram desde o fim da Grande Guerra, e nessa caverna sombria, Raziel e Noah persistiam. Seus dias eram moldados por uma rotina implacável de treinamentos árduos na floresta e estudos incansáveis. Essa vida isolada cobrava seu preço, fazendo com que o jovem se desconectasse completamente dos eventos do mundo exterior, mergulhando em um estado de completa isolação.

Os dois se aventuraram pela floresta em busca de presas, enquanto o sol do verão brilhava intensamente no auge do dia. Quando a caçada terminou, a atmosfera da floresta se transformou em um campo de treinamento. O jovem, em um frenesi de movimento, corria entre as árvores, desafiando-se a se tornar uma força da natureza. Cada passo era uma aposta audaciosa, a meta era atingir uma velocidade tão avassaladora que nem mesmo as folhas ousariam sussurrar, e nenhum galho frágil se quebraria sob sua passagem. Enquanto ele deslizava graciosamente pela densa vegetação. Seu corpo parecia se fundir com o ambiente, movendo-se com agilidade e destreza.

O anjo observava os passos do jovem. Cada salto, cada impulso, era um desafio para superar seus limites e se tornar um guerreiro da floresta.

O suor escorria pelo seu rosto, misturando-se à poeira e à terra. O calor do sol era implacável. Cada gota da energia era canalizada para impulsionar seu corpo e ultrapassar os próprios limites físicos.

Ele agora está no nível de um Cavaleiro Santo do Reino.

De repente, Raziel interrompeu o fluxo frenético.

— Noah, tenho uma surpresa para você! — disse ela.

A surpresa fez com que o jovem perdesse a concentração, fazendo-o errar o movimento. Ele conseguiu se desviar da árvore seguinte, mas acabou caindo no chão

Caído no solo, ele não conseguiu esconder a frustração.

— Mestra Raziel, você não poderia ter esperado um momento mais adequado? — questionou ele

— Bem... digamos que isso é mais um teste do que uma surpresa, mas de qualquer forma, você ficará surpreso. — respondeu ela

— Você poderia ter me dito antes — retrucou ele, ainda se recuperando da queda.

— Digamos que será um teste improvisado. Além disso, já te disse para não me chamar de "mestra"!

— É apenas uma forma de demonstrar meu respeito por você!

A expressão do anjo suavizou-se um pouco, e olhou para ele com um olhar afetuoso.

— Será que é mais respeitoso do que chamar alguém que está ao seu lado há oito anos apenas pelo nome?

O jovem assentiu, compreendendo o ponto dela.

Em seguida, foram para uma planície que ficava além da floresta, um lugar com um pequeno gramado. No céu, era possível ver os pássaros voando. A luz do sol dava mais brilho à grama e às flores. Noah ficou pasmo com a mudança da natureza.

— Sabe, Noah — começou a moça, hesitante, — tenho que admitir algo. A busca pelo conhecimento de todas as coisas também faz parte do meu entretenimento. Por ter me concentrado apenas em te instruir, acabei esquecendo do seu bem-estar. Você é o meu primeiro discípulo, o primeiro humano a ser ensinado por mim, e nunca imaginei que ensinar seria tão bom, uma descoberta fascinante para o meu livro — explicou ela, refletindo sobre suas ações. — Por causa disso, acabei, digamos, me empolgando um pouquinho...

— Essa empolgação durou oito anos... — observou o jovem, sorrindo levemente.

— Então... — disse ela, dando uma leve risada.

Sentaram-se sobre o gramado, observando toda a planície. Ventava bastante nesse dia.

Noah olhou para Raziel e disse:

— De fato, passamos mais tempo estudando do que fazendo qualquer outra coisa. Mas para mim, esses foram tempos divertidos também. Cada descoberta era fascinante para mim. E não me arrependo do tempo que passei ao seu lado. —  corou o jovem, era explícito em seu rosto.

— Ah, seu rosto está ficando vermelho. Está tudo bem?!

— Sério?! Deve ser o sol.

Uma reação natural para alguém que nunca tinha ouvido falar sobre o amor. Os instintos biológicos do jovem estavam amadurecendo. Porém, ele nunca foi ensinado sobre isso. E até mesmo a mais sábia entre os anjos não tinha conhecimento sobre o amor conjugal, até então.

— Noah, daqui a uma semana você completará 15 anos. Está se tornando um rapaz, e vejo que também está amadurecendo.

Certamente. Para alguém da sua idade, as capacidades físicas e habilidades mágicas excediam o patamar de um Cavaleiro Divino.

— Sobre a surpresa... — começou Raziel, pausando por um momento para criar suspense.

— Sim, estou ansioso! — interrompeu ele, mal conseguindo conter a empolgação.

— Preciso testar os seus limites. Colocar à prova tudo o que você aprendeu comigo. Será uma batalha entre nós. Quero ter absoluta certeza de que suas habilidades são suficientes para prosseguir pela jornada sozinho. A Terra agora vive em tempos de paz, desde o momento em que te encontrei, tenho investigado sobre isso. Os humanos prevaleceram naquela terrível guerra — explicou Raziel, transmitindo a importância do desafio.

— Faz tanto tempo que certas lembranças ficaram turvas em minha mente. Meus pais, meu povo... Não tive tempo para lamentar por eles — confessou Noah, deixando transparecer um pouco da tristeza em suas palavras.

— Tenho uma parcela de culpa nisso, me desculpe. Preocupei-me tanto com a sua sobrevivência neste mundo que acabei negligenciando sua parte emocional... — admitiu ela, refletindo sobre suas próprias falhas.

Ele reprimiu alguns sentimentos durante sua jornada. Foi necessário para que pudesse aprender de forma eficiente. No entanto, ele sabia que guardar esses sentimentos por tanto tempo poderia acabar desgastando sua alma aos poucos. Mesmo assim, ele se sentia feliz. Ao perceber que até mesmo os anjos, como Raziel, possuíam suas falhas, ele se sentia mais próximo dela. Saber que até seres poderosos são capazes de reconhecer seus erros criavam um vínculo especial entre eles.

Um silêncio harmonioso permeava o ambiente, enquanto ambos contemplavam a deslumbrante paisagem ao seu redor.

— Noah, por que você não volta para o reino de onde veio? Poderia passar um tempo lá antes de embarcar na jornada. — disse ela.

— Não sei se me encaixaria com a evolução deles. Fico contente que os humanos tenham vencido a guerra, mas de certa forma, prefiro ficar ao seu lado. — falou ele.

— É bom ouvir isso, mas provavelmente o destino vai nos separar. Vamos começar o teste. Não voarei para que você não fique em desvantagem. — disse ela confiante.

Ele tinha plena consciência de que não conseguiria vencê-la, mas sua determinação o impelia a dar o seu melhor. Juntos, correram pelas planícies tão velozes que o vento parecia incapaz de alcançá-los. O desafio quase se assemelhava a uma brincadeira de criança, pois se divertiam imensamente. Os risos preenchiam o ar enquanto corriam lado a lado.

Os preciosos minutos se esgotavam implacavelmente. O jovem concentrou-se em sua última investida. Com um gesto da sua mão, lançou a magia de gelo no chão ao redor do anjo, criando uma trilha escorregadia. O objetivo era atrasar Raziel na corrida, apesar de saber que era uma tarefa quase impossível.

Para sua surpresa, Raziel não desacelerou nem por um momento. Ao contrário, ela sorriu com uma confiança tranquila. Os movimentos transformaram-se em graciosos passos de patinação. Deslizou sobre o gelo com maestria, encurtando a distância entre eles com uma agilidade impressionante.

Quando o último instante finalmente acabou, Noah, ainda no ar, preparava-se para o pouso após um salto corajoso. E antes que os pés tocassem o chão, o anjo se adiantou. o pegou em seus braços.

— Oho! Uma bela donzela acabou de cair do céu! — exclamou ela

— Por favor, Raziel! — respondeu ele, enquanto começou a rir.

Ao terminarem o desafio, sentaram-se novamente na grama.

O dia se despedia, e eles se deleitavam com o espetáculo dourado do pôr do sol. As cores cálidas pintavam o céu enquanto o sol lentamente saia de cena, lançando os últimos raios de luz. Lado a lado, ambos estavam imersos na beleza da cena, apreciando o momento de tranquilidade que a despedida diária trazia. O vento sussurrava suavemente, carregando consigo a sensação de paz e renovação que só o entardecer podia proporcionar.

— Noah, esse era o momento em que o Criador costumava visitar aquele casal, todos os dias — disse o anjo.

— O Criador... Aprendi muito pouco sobre ele. Na verdade, você raramente falou sobre ele — disse ele.

— Entendo que você tenha dúvidas sobre o Criador, Noah. E não é errado ter dúvidas. A dúvida, quando bem utilizada, pode se tornar uma grande aliada. Nesta Terra, você poderá encontrar essas respostas. Não precisará de livros ou magias, apenas de tempo — explicou Raziel.

— Pelo que você me disse, parece que ele se afastou do plano material — ponderou ele.

— Sim... As hostes e os seres celestiais não entenderam quando viram o trono vazio em nossa dimensão, nem mesmo eu entendo. Presumo que ele tenha saído do plano de toda a criação, de todas as dimensões — revelou Raziel.

— É difícil compreender esses assuntos. Por que o Criador se ocultou de tudo? — questionou Noah.

— Não é necessário que você se afogue em questionamentos, pelo menos não agora — disse ela.

— Tudo bem. Devo focar nesta vida. Afinal, são minhas únicas lembranças. Por mais que o passado tenha sido doloroso, sou grato por continuar vivendo, por existir! — afirmou ele, com um sentimento de gratidão.

— Isso! E, falando em lembranças, vou contar uma história sobre o princípio da humanidade, quando o Criador costumava visitar o casal... — disse Raziel, preparando-se para compartilhar uma fascinante narrativa:

"O Criador amava todas as criaturas, sem exceção. E todas as criaturas o amavam de volta. Ele raramente visitava os seres para conversar, mas tudo mudou quando ele criou os humanos. Após a primeira mulher de Adão, Lilith, revogar o direito do Jardim, o Criador deu a Adão uma segunda mulher: Eva. Ela mostrou a Adão o que realmente era o amor.

A partir desse momento, o Ser passou a visitá-los todos os dias, sempre ao pôr do sol, para conversarem sobre a vida e o universo. Durante uma conversa sobre a eternidade, um assunto que deixava o Criador angustiado, Adão disse a ele: ‘Mesmo que você não saiba sobre sua própria eternidade, continuará sendo o nosso Criador, e nada mudará em nossa amizade.’

Essas palavras tocaram o coração do Ser supremo. De todas as criaturas que ele havia criado, Adão e Eva o compreenderam melhor. Eles não o viam apenas como uma criatura, mas como um pai e um amigo. O Criador passou a amar os humanos mais do que qualquer outra criatura. A partir daquele momento, ele começou a visitá-los na forma original. Ninguém jamais viu a verdadeira forma dele, exceto eles. Nem mesmo os anjos Samael e os Ofanins viram o Criador em sua forma verdadeira. Adão e Eva foram os únicos. O relacionamento deles era como o de um pai com seus filhos.

O Ser supremo necessitava de um herdeiro para assumir o trono, pois precisava se ausentar do plano da criação para compreender por que havia esquecido a eternidade. E Adão foi escolhido para essa função.

Adão recebeu a tarefa de unir todas as dimensões no mundo material. Ele teria a ideia de fazer da Terra o ponto central para as diversas realidades existentes.

A visão onisciente sabia o que iria acontecer e decidiu deixar a realidade da Terra nas mãos dos humanos, movido pelo amor a Adão.

Ao observar o horizonte e as várias possibilidades futuras, o Ser Supremo entristeceu-se ao perceber o rumo que a humanidade tomaria. No entanto, decidiu permitir que as coisas seguissem como deveriam.


Após ser banida do Jardim, Lilith recorria às serpentes para saber o que acontecia lá dentro. As serpentes eram criaturas astutas entre os animais, porém, compadeceram-se dela fornecendo-lhe informações, pois as serpentes amavam os humanos. Apesar do seu banimento, Lilith não deixou de ser humana.

Então, o Ser disse:

— Adão, desejo colocá-lo como herdeiro do meu trono. Preciso encontrar a Eternidade para questioná-la sobre o sentido do meu princípio, e somente você tem a capacidade de governar o trono. Mas antes, você precisa passar por uma provação.

— Meu criador, não me sinto digno de sua herança, mas se assim deseja, que assim seja.

O Criador prosseguiu revelando seus planos:

— Adão, você sabe que as Trevas e a Luz residem em mim. Eu sou o equilíbrio de tudo. Criarei um fruto no qual colocarei os genes do mal e do bem. Pois você não conhece o mal, e é necessário que o conheça. Através do mal, compreenderá tanto o mal quanto o bem. Esse mal não tirará de você a sua pureza, mas abrirá os olhos.

Adão aceitou a proposta.

Samael ouvia tudo o que o Criador pretendia e me contava. Eu permanecia indiferente, ocupada organizando minha biblioteca oculta.

Samael, apreensivo, foi ter uma audiência com o Ser supremo:

— Meu senhor, bendito sejas! — disse ele

— Samael, meu filho! Como vai em sua missão? — perguntou o criador com afeto

— Alguns dos caídos desejam conhecer este plano material que Tu criaste. Por não terem permissão para isso, acham que Tu, Senhor, és um tirano. Fora que estão sendo enganados por Lilith, que consideram a personificação da liberdade. Não entendo por que ainda não lhes tiraste a vida diante de tamanha libertinagem.

— Por que me importaria com algo que não sou, Samael? Aliás, não seria tirânico da minha parte eliminar aqueles que não concordam comigo simplesmente por não estarem de acordo com as minhas diretrizes? Não te preocupes. — respondeu o Divino com uma serenidade imutável

— Isso inclui colocar os humanos como herdeiros, Senhor?!! — exclamou Samael, permitindo que as emoções o dominassem.

— Até você, Samael?

— Permita-me conhecer as Trevas, e verás que tenho capacidade!

— Você vai se arrepender. Até mesmo seu irmão Abaddon me pediu para lhe conceder um pouco da Luz, mesmo sem conhecê-la.

— Mas ele foi criado para isso!

— E mesmo ele, ciente do propósito que foi criado, cumpre diligentemente sua missão. E com humildade, pede-me um pouco de Luz.

Samael saiu da presença do Criador, descontente. Ele não compreendia o verdadeiro desejo dele.

Coincidentemente, ele me encontrou no caminho para o plano material e aproveitou para me pedir conselhos:

— Raziel, diga-me, qual é o plano dele? Por que Ele ama tanto esses humanos?!

— Todos os seres possuem o poder de escolha. Por que seria diferente com ele, Samael? Você é muito mais próximo dele do que eu e ainda não o compreende? Reserve um tempo e converse com aqueles dois. Talvez assim o compreenda.

— E você, Raziel? O que pensa dessa decisão?

— Também tive meus questionamentos, mas busquei minhas próprias respostas. Você deve fazer o mesmo, para que não caia em caminhos próprios.

— Raziel, a guardiã do livro de Sophia. Fico surpreso ao pensar que até mesmo você, a mais sábia entre os anjos, também teve suas dúvidas. Não acha que há algo errado?

— É curioso como usa os outros para realizar o seu trabalho. Tal persuasão não vai funcionar comigo, e não buscarei as respostas para as SUAS dúvidas. O único conselho que posso dar é: converse com os humanos. Além disso, não tenho mais nada a lhe contar, irmão.

Em seguida, eu atravessei as dimensões em direção à minha biblioteca.

O arcanjo, agora calmo, sentia a necessidade de receber a repreensão de sua irmã. Continuou no trajeto para o plano material a fim de conversar com os humanos. Ele começaria por Lilith e não pelo casal, pois queria entender o outro lado.



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