Volume 3
Capítulo 139: Visitante Indesejado
Algo macio acomodava a sua cabeça, passando-lhe uma paz incomum. Nem precisou pensar muito para saber o que era aquilo.
A última coisa que lembrava era de como apagou após a luta contra Kumiho, a enorme Besta Divina. Apesar de ser curado por Lou Xhien, estava em seu limite.
Lentamente, abriu os olhos para vislumbrar a pessoa que já esperava. Os olhos ametistas preocupados o encaravam com repreensão e alivio, era a Annie de sempre com seu sorriso gentil.
— Puxa, não me assusta dessa jeito — ela murmurou inflando as bochechas.
— Foi mal, mas eu mereço pontos, não quebrei a promessa que fiz a você.
Um sorriso discreto formou-se nos lábios finos e em tom rosado até demais da deusa.
Ficou preocupado quando obteve o Fogo Infernal e a voz de Annie desapareceu, dando lugar aos diversos gritos macabros que há tempos não escutava. Queria realmente verificar a segurança dela, mas não tinha como fazer isso do exterior.
Annie passou os dedos finos e gelados pelo rosto do garoto, e ele notou que eles estavam feridos. Ali, o corpo de Kurone não carregava as feridos do “lado de fora”, mas era diferente para a deusa.
— O que aconteceu com você? — questionou pondo a sua mão sobre a da deusa, ela era mais bronzeada, delineada por músculos adquiridos nos últimos dois meses e firme, o extremo oposto daquela da garota.
— Ora, você pensou que eu ficaria de braços cruzados vendo a loucura te consumir? Eu… tentei conter aquelas coisas que ficavam sussurrando para você, mas elas eram mais fortes do que eu pensei.
As coisas as quais Annie se referiam eram as vozes aprisionadas no interior da sua mente. Kurone sabia que a deusa só conseguiria ajudá-lo enquanto mantivesse sua insanidade distante, pois ela poderia destruir a garota, coisa que quase aconteceu há alguns minutos.
— Parece que eu ainda tô bem fraco, não é? Se não fosse pelo Azrael… — Ele parou a lamentação quando Annie pôs o dedo indicador em seus lábios, pedindo para que ficasse em silêncio.
— Não vou permitir que se menospreze assim, você evoluiu muito rápido para alguém que treina somente há dois meses, acontece que…
— Sua adversária era a Besta Divina de uma deusa, coisinha — completou uma voz. Deitado dali, Kurone não podia avistar quem era o dono, por isso foi abrigado a se levantar do colo aconchegante de Annie.
A deusa de olhos ametistas e longos cabelos brancos fez uma expressão de tristeza, como se quisesse que aquele momento durasse pela eternidade.
Após ficar de pé, o jovem pôde avistar o corpo esbelto e avantajado de uma mulher com longos cabelos laranjas que quase tocavam o chão e cobriam o seu olho esquerdo. Duas orelhas pontudas de raposa lhe adornavam a cabeça.
Ah, sim, era a deusa Inari. Naturalmente, aquilo não devia ser uma surpresa se estivesse no campo de batalha, mas…
— Como diabos foi que você entrou na minha mente? — perguntou de forma hostil.
— Eita, você é bem irritadinho, não é? Eu que sou a vítima de sequestro aqui, então sou quem devia perguntar: como foi que você me trouxe para dentro da sua mente?
— Ehh?! — Annie e Kurone deixaram um grito inconsciente escapar.
— Sim, sim, eu fui te segurar para você não quebrar o nariz quando caísse e acabei sendo trazida para cá. Deve ter sido uma cena hilária você caindo sobre o meu corpo — ela explicou tremendo e abraçando o corpo exageradamente.
— Parece que eu sou um ímã de coisa ruim…
Inari varreu todo o local como se procurasse por algo específico, ela parou e ficou encarando a Boito .20 e o Orbe Vermelho flutuando pelo ar.
— Seria isso aqui um Link?
— Link? Tipo aqueles de internet?
— Não faço ideia do que está falando, mas um Link é a conexão da alma com outra dimensão, assim como as deusas são “linkadas” com o seu Domínio.
— Mas isso é estranho, isso aqui é a sua mente e, ao mesmo tempo, uma dimensão paralela à nossa. — Ela voltou o olhar para o garoto. — Não me impressiona que consiga dominar o Fogo Infernal e o Tipo Elemental Sombra, você é bizarro. Como foi mesmo que o outro homem te chamou? Quimera?
— Vai ofender na cara mesmo?! Mas pelo menos você não disse aberração.
— Não, não, não é isso, — Inari murmurava mais para si que para a dupla no seu lado oposto — provavelmente ele se trata de um caso incomum.
— Mas aí, qual é desse negócio de Domínio? Acho que a Cecily tinha falando alguma coisa desse tipo pra mim, mas esqueci.
— Cecily? — a mulher-raposa arregalou os olhos — A deusa Cecily?
— Sim, ela mesma, por quê?
— Como você conseguiu entrar em contato com ela?
Deveria realmente confiar naquela deusa? Há poucos minutos ele tentou matá-lo em um jogo doentio, e o que ela faria exatamente com esta informação? Pensou em muitas coisas, mas decidiu contar a verdade a ela:
— Hmmm, tipo, eu fui atpé uma igreja e encontrei ela lá…
— Ah, claro! — Inari bateu a mão fechada sobre a aberta, produzindo um estalo que reverberou pelo local. — Como não percebi isto antes, você não tem um Link, na verdade nem sei se existe um nome específico para isso.
— Poderia explicar? Estou meio perdida — disse Annie passando a mão pela testa. Kurone, ao lado dela, balançou a cabeça de forma afirmativa, ele não entendia nada também, para variar.
— Imagine esse humano como uma chave que pode abrir portas para outras dimensões, basta cumprir com os requisitos para entrar na dimensão. Isso aqui, por exemplo, é uma dimensão paralela conectada diretamente à alma dele, ou seja, o requisito para entrar nela é a própria existência dele.
Kurone tentava entender as palavras ditas pela mulher-raposa, mas era uma dificuldade para um leigo em magia. Aquilo era algo que ele não viu em nenhum dos livros da biblioteca de Lou Xhien que leu.
— Você disse que encontro a Cecily, certo? — Inari continuou. — O requisito para você entrar no Domínio da Cecily, ou seja, a dimensão individual onde ela está escondida, é ser convidado pela própria. Se você possui o título de Vassalo da Morte, é porque encontrou o Azrael, certo?
— S-sim…
— Consegue me dizer qual foi o requisito para entrar no Hangar dos Mortos?
— Não faço ideia.
Como poderia dizer “Eu morri e apareci lá”? Inari não lhe inspirava confiança.
— Tudo bem se não quiser me dizer por ora, mas saiba que seu poder de… “Navegador Interdimensional” pode atrair olhares indesejados, ainda mais se souberem que você teve contato com as pessoas do Hangar dos Mortos. — Ela fez um sinal para Annie antes de concluir.
— Quem poderia ter interesse em mim?
— Eles.
Apenas aquela palavra foi o suficiente para provocar arrepios por todo o corpo do garoto. “... Queria pelo menos matar um ‘daqueles’ desgraçados”, foi uma das últimas coisas que o supervisor disse antes de confiar a máscara e a Boito .20 a Kurone.
“Você não quer um motivo para matar ‘eles’?”, o supervisor disse em seu último suspiro, antes de ser morto pela hemorragia causada pelas flechas de Belphegor dé Halls. Poderia ser que Inaria estava falando do mesmo “eles” que o supervisor tinha tanto ódio?
— Você sabe de quem ela está falando, Kurone?
Acabou deixando seu medo transparecer ao escutar as palavras da mulher-raposa, mas logo se recompôs e balançou a cabeça negativamente para Annie.
— Mas, enfim, — Inari suspirou finalmente e relaxou os músculos tensos, provavelmente ao perceber que Kurone não tinha conhecimento do próprio poder — o que uma deusa como você faz com um humano estranho desses? Não me diga que é outra daquelas histórias de amor clichê?... Espera aí, por que sinto que conheço você?
— Provavelmente conhece. Eu também tenho a mesma sensação — respondeu Annie.
— Que droga, hein, deve ser coisa da Astarte, certo? Eu já até me acostumei com isso.
A duas deusas suspiraram, deixando o jovem ainda mais confuso. Sabia que Astarte, a deusa que tinha uma enorme lua prateada em sua homenagem, era a responsável por fazer Annie perder as suas memórias, mas não imaginava que outra deusa também sofria do mesmo problema.
— Qual é a dessa Astarte? — perguntou o jovem com pouca esperança de Inari ter uma resposta, ela provavelmente não devia ter mais informações que as outras pessoas que questionou.
Mas ela tinha.
— Ora? Quer escutar a história do maior triângulo amoroso desse mundo? Parece que não vou sair daqui tão cedo, então não me incomodo em contar.
— T-tem certeza?! — ele gritou surpreso. Finalmente alguém lhe explicaria alguma coisa, embora tivesse ficado receoso quando ela falou em “triângulo amoroso”.
— Sim, sim, eu não estou nem aí para as regras antigas, afinal não estamos mais na Era dos Deuses — falou a deusa-raposa.
Annie e Kurone sentaram-se um ao lado do outro, como duas crianças ansiosas para escutar a história contada pelo avô. Apesar de ser uma deusa, todas as memórias de Annie foram apagadas quando ela foi mandada para o Hangar dos Mortos.
Segundo ela, deuses sem o seu Seol, ou seja, seu corpo físico, eram vulneráveis ao poder dos mais fortes, por isso suspeitava que a deusa Astarte, a qual ela alegava ser sua mãe, tivesse apagado suas memórias.
Tinham a esperança que fosse algo feito apenas com ela, mas aparentemente todos os deuses foram afetados. Ao que tudo indicava, a dita Astarte tinha algo a esconder, e esse algo também envolvia Rory.
Inari sentou-se em frente à dupla, deixando o jovem incomodado devido ao seu quimono preto e curto posto sobre a pele de aspecto alaranjado de maneira relaxada. Ela começou em um tom dramático de quem recitava um poema épico:
— A história começa quando o Niflheim ainda nem tinha este nome e os seus únicos habitantes eram as almas que vagavam pela sombria e espessa escuridão…