Volume 3
Capítulo 137: Virando O Jogo
Cecily era brincalhona e misteriosa, mas seu pacto com ela foi tranquilo. Annie era meiga e serena, e isso se refletia na maneria como ela conseguia acalmar Kurone em momentos de tensão ou em seus acessos de fúria.
Mas pelo pouco que viu de Lucy, a falsa Annie de Eragon, podia dizer que ela era uma homicida insana, por isso seu pacto com ela não foi das melhores combinações, talvez fosse esse o motivo pelo qual a verdadeira Annie decidiu não lhe contar que ainda possuía o poder daquela monstruosidade na sua alma.
As chamas irromperam por todo o ar, criando uma onda de calor insuportável. O próprio corpo do jovem sofria com a potência daquelas chamas infernais crescendo exponencialmente.
Escutava no fundo da mente as palavras “Bæwylm Eftwyrd” repetindo-se.
Kumiho, a Besta Divina, estremeceu e afastou-se, tentando conter o fogo que saíam do interior do garoto. A grande raposa teria que levar a sério aquela batalha se ainda quisesse vencer, pois, como dissera sua mestra, venceria o mago de fogo mais forte, e agora esse título havia passado para o jovem.
— Fogo Infernal!? — gritou Inari de olhos arregalados, porém não mais que os de Lao Shi. Não era aquilo que ele estava esperando? Na verdade, sua expressão não era algo de se espantar, afinal nem o garoto sabia que ainda possuía aquele poder.
Lao Shi sabia sobre o Fogo Infernal, Alley, o seu familiar, viu tudo em Eragon, mas Kurone explicara-lhe que o perdeu, talvez fosse esse o motivo da sua surpresa.
A enorme raposa branca tentou contra-atacar com uma salva de esferas de fogo, porém elas foram engolidos pela muralha chamas erguida nas costas do jovem. A estratégia de sempre, encurralar e atacar, não funcionaria e, ao que tudo indicava, o jovem tinha grandes chances de ser o vencedor do jogo.
Mas a que preço ganharia? Annie ficou em silêncio quando as chamas emergiram e, no lugar dela, as vozes macabras que deviam estar seladas retornaram, sempre gritando “Bæwylm Eftwyr”, como se ordenassem que ele usasse a habilidade que convocava o grande tornado de flamas.
— Kumiho, faça! — gritou a deusa-raposa e, no mesmo instante, a sua Besta Divina voltou à sua forma original: uma criatura com mais de dez metros.
— Lembro-me perfeitamente da senhorita falar que o seu bichinho só lutaria com quatro metros, minha cara deusa — apontou Lao Shi, mas com uma voz indiferente. Nem o sempre calmo Arquifeiticeiro não ficava incomodado com as chamas do seu discípulo.
A barreira erguida pelo homem para evitar que as chamas atingissem o grande templo estava rachando conforme tinha contato com o calor, aquilo era preocupante.
— Não ouvi nada sobre o Fogo Infernal também — retrucou Inari ainda estarrecida. O calor conseguia atingi-los mesmo daquela distância, atravessando as fissuras da Barreira d’Água. — Fiz isso para equilibrar a batalha.
A enorme raposa branca de dez metros abriu a bocarra e, como um dragão furioso, cuspiu uma torrente de chamas mortais, ao que o jovem rebateu com a aura infernal saindo do seu ser em combustão.
— [Bæwylm Eftwyr]!
Ele finalmente exteriorizou o que as vozes tanto berravam em sua mente.
Chamas bateram contra chamas no ar, fazendo o cenário tremeluzir conforme as labaredas ondulavam e roubavam o oxigênio da masmorra.
Mesmo o Fogo Infernal de Lucy não era suficiente para matar aquela Besta Divina facilmente, obrigando o jovem a queimar mana como nunca. A ardência do fluxo movimentando-se rapidamente e a energia vital sendo expelida assemelhava-se à de ter a pele arrancada lentamente.
Ambos cessaram e tomaram mais distância.
O jovem desconfiou de algo na última investida, por isso ativou o seu Olho Sagrado, a dor ao ativá-lo era quase nula por conta do calor tocando todo o seu corpo. Mas ele confirmou a sua dúvida.
Viu uma grande linha branca em meio ao cenário, linha esta que conectava Kumiho à sua deusa, provavelmente era um pacto onde Inari, uma deusa de mana quase ilimitada, fornecia poder para a sua mascote. Ganhar por cansaço da sua inimiga estava fora de cogitação.
Praguejando, eles repetiram os ataques mais uma, duas, três e quatro vezes, no entanto nunca havia um vencedor, apenas queimaduras surgiam no pelo branco e na pele bronzeada por conta do calor infernal.
— Creio que é hora de acabar com as brincadeiras, humano — falou Kuminho em sua voz grave, os olhos amarelados se mantinham fixos no jovem trêmulo.
Kurone apertava os dentes o máximo que conseguia, sentia uma insanidade incontrolável vazando do seu ser, porém prometeu a Annie que jamais deixaria ser dominado pela loucura. Poderia morrer por não usar seu poder total, mas jamais trairia sua deusa companheira.
— Meu caro, não se contenha — ordenou Lao Shi, era a primeira vez que o via com uma expressão quase séria. — Lembre-se do que está em jogo aqui, seus amigos podem acabar mortos.
— Haha! Faz tempo que não me divirto tanto assim em um jogo! — Inari murmurou passando a língua pelos lábios. — Mas Kumiho tem razão, é hora do golpe final.
A deusa-raposa posicionou as mãos em direção à arena, como se fosse interferir com o seu poder, mas ela fez um sinal com a cabeça para que Lao Shi ficasse calmo. De fato, não parecia que ela pretendia atacar o jovem diretamente.
A raposa branca tomou mais distância do jovem e abriu a bocarra, inspirando profundamente o ar do local, junto às chamas que nele se espalhavam.
Kurone sentiu como se estivessem tirando algo de dentro do seu ser, aquilo era uma brecha, mas não conseguia aproveitá-la, pois as chamas emanando do seu interior eram sugadas pela boca enorme da criatura branca.
Forçou o Olho Sagrado e, ao perceber que ela absorvia toda a mana do ambiente, tentou fugir, mas seu corpo quase não conseguia mais se mover.
Por fim, Kumiho fechou a boca, inflando as bochechas e golpeando o jovem com a sua cauda em seguida. Ele foi arremessado contra a parede, criando um buraco nela, mas não teve descanso, o monstro o pegou com uma mordida e o arremessou no ar, lançando as chamas contidas na sua boca na sequência.
Quando foi arremessado, Kurone viu em sua frente o seu braço repleto de sangue flutuando. Era algo que não deveria assustá-lo, considerando que possuía um braço artificial… sim, não deveria ficar assustado, mas, mesmo assim, ficou ao notar que aquilo que flutuava era o seu membro direito, o que não conseguia regenerar.
Mal teve tempo para gritar, pois foi recebido por mais fogo cuspido da boca da criatura. Voou alto, quase chegando ao limite daquela masmorra, antes de cair com o som de diversos ossos quebrando. Metade do corpo ficou preta devido à exposição ao próprio Fogo Infernal regurgitado pela Besta Divina.
Conseguiu erguer uma pequena barreira a tempo, mas não foi suficiente para conter o ataque, já não tinha mais forças para ficar de pé.
— Esse é duro na queda, mas um dos membros já foi, basta só cortar o outro braço e vencemos — falou Inari com um sorriso.
Apesar de ter 70% do corpo destruído, Kurone ainda forçava os músculos para levantar, sabia que era apenas uma tentativa tola de querer mostrar que a sua força de vontade era suficiente para sobreviver, mas não importava.
Quando pensou em queimar uma quantidade insana de mana para levantar, ignorando a promessa que fez com Annie e deixando a loucura lhe consumir, uma sombra aparece em seu campo de visão.
Olhou com dificuldade para cima e viu a chorosa Lou Xhien, apesar de ter lágrimas escorrendo pelo rosto e o corpo tremer, ela mantinha uma mão erguida na direção do jovem, enviando magia de cura para ele.
— Lo… — Kurone tentou chamar o seu nome, mas a boca mal conseguia pronunciar uma vogal.
— É uma menina bastante corajosa, — começou Kumiho aproximando-se lentamente — não quero ter que arrancar um braço seu, então saía da frente e permita que eu acabe com isso.
— N-não! Não vou permitir!
Ele virou o corpo para o monstro, mas continuou a usar magia de cura no garoto. Apesar de tremer por todo o tempo, Lou Xhien juntou coragem para conseguir dizer não ao monstro que matou os seus pais, aquilo, sim, era uma determinação genuína.
A raposa branca fez apenas um pequeno gesto com a pata e atingiu a menina com uma bola de fogo no ombro, empurrando-a para trás, no entanto ela não cessou a cura e, segurando a queimadura no ombro com a mão livre, capengou ao local que estava antes.
— Estou lhe dando a chance de sobreviver, — Kuminho disparou outra vez, atingindo a perna direita da menina e obrigando-a a ficar de joelhos — apenas saía do meu caminho.
— Não! — ela bravejou lançando uma onda de repulsão, porém aquilo mal fez o monstro mover-se. — V-vai ter que me matar se quiser fazer isso!
Se Lou Xhien morresse, não havia motivos para arrancar outro membro de Kurone, afinal o jogo acabaria e Inari sairia como vencedora.
A cura da menina começava a fazer efeito, mas o jovem mal conseguia manter o corpo de pé. Teria mesmo que presenciar outra pessoa preciosa morrendo na sua frente? Já não bastou o que houve com Teruhashi, sua irmã?
Buscou ajuda na voz de Annie, mas sua cabeça estava barulhenta com as vozes macabras, jamais escutaria a deusa se ela dissesse algo. Não conseguia ver também a cara de Lao Shi, mas tinha certeza que ele ainda estava com sua expressão calma.
A máscara também não apareceu, se ao menos conseguisse usar o Ápice…
“Este é o problema de confiares no poder dos outros, tu sempre ficarás dependente.”
A voz reverberou no interior da sua mente e fez todas as outras ficarem em silêncio. Conhecia aquele tom de voz, era a segunda vez que ele se manifestava, mais coincidente ainda, era que estava em outra masmorra, isto teria alguma relação com a aparição de Azrael, o Suserano da Morte?
“Mas por que tu queres depender dos outros, se tens o poder que teu arbítrio te permite usar? Lembra-te que és um Vassalo e toma para ti o poder cedido por teu Suserano.”
E o poder tomou seu corpo, fazendo-o ter espasmos, a origem daquela energia nova era o seu peito, onde o Sigilo de Azrael cintilava em roxo.
Ignorando toda a dor — na verdade, toda a agonia parecia ter desaparecido — Kurone levantou reunindo chamas nas mãos, mas não eram mais as chamas dolorosas e insanas de Lucy, aquilo estava longe de ser o Fogo Infernal que ele conhecia.
— I-impossível, Chamas Negras! O que diabos é esse seu aluno?! — gritou Inari, ao que Lao Shi formou um enorme sorriso e anunciou:
— Creio que seja minha vez de dizer isso: é hora de acabarmos com esta brincadeira, minha cara — disse o homem com os olhos voltados para o seu aluno. Era aquela reviravolta que ele aguardava.