Raifurori Brasileira

Autor(a): NekoYasha


Volume 3

Capítulo 102: Recomeço Turbulento

Um quarto ao estilo oriental, eram as únicas palavras que podiam descrever aquele cenário. As paredes forradas com papéis amarelos e as máscaras de ogros penduradas passavam o ar de um verdadeiro quarto chinês do século XVIII.

Kurone fez um rolamento pelo tatame e bateu as costas com violência na parede. Estendeu a mão para preparar um ataque com suas ínfimas chamas e materializar a espingarda de canos cerrados.

[Não faça isso! Nosso corpo não está pronto para usar mana!]

— A-Annie!? — Ele olhou confuso ao redor, procurando a dona da voz ecoando na cabeça, mas logo reconheceu aquele tom doce e zeloso.

[É-é! Acho que sou eu… E-espera, isso quer dizer que nosso pacto funcionou! Consigo ver tudo pelos seus olhos.]

— Sei que tá animada, mas não precisa gritar. 

[Desculpe…]

— De qualquer forma, a gente um probleminha aqui — disse direcionando o olhar para a figura à sua frente.

Era uma mulher com cabelos negros presos em um rabo de cavalo. O estilo oriental estava espalhado por todo o seu corpo, desde o kosode branco ocultando os seios voluptuosos ao hakama vermelho com abertura lateral, mostrando as laterais das coxas macias. 

A mulher manteve-se inexpressiva, fitando o jovem com os olhos rubros afiados. Não importava como a encarasse, só conseguia pensar em uma sacerdotisa xintoísta do seu mundo, uma miko.

[Miko? É um tipo de raça ou algo assim?]

“São sacerdotisas que vivem em santuários, Nie. Parando para pensar, esse quarto parece um templo pequeno. Existe alguma chance de estarmos no Japão?”

[Se refere ao seu mundo original? É impossível… E-ei, o que foi isso?! Você me chamou de “Nie”?]

“Droga, então…”

[Não me ignore! Só estamos juntos há algumas horas e você já me deu um apelido sem minha permissão…]

“E você achou ruim?”

— Você não devia se esforçar assim, ainda está se recuperando, — a mulher interrompeu o diálogo por pensamento do jovem — seus pontos podem se abrir. — Apontou para o braço costurado.

Quando acompanhou o dedo e averiguou seu braço, percebeu tardiamente a mudança de roupas, agora usava apenas um quimono branco de mangas curtas. Rapidamente, colocou a mão no peito e verificou a pulsação do coração.

As memórias de ser morto por Azazel van Elsie, o seu coração na mão da demônia, o choro de Rory e, em seguida, o rosto dos Lolicon Slayers e a presença de Azrael, tudo ainda estava bem fresco em sua mente.

[Vamos escutar o que ela tem a dizer.]

A troca de cenários o deixou atordoado, mas a voz de Annie foi o suficiente para lhe acalmar.

— Por favor, sente-se ali, o chá está pronto. — A mulher apontou para uma mesa no centro do quarto, sua voz mecânica era seca e o olhar de pouco brilho mantinha-se fixo no jovem.

Ela falava como um ator que decorou suas falas, mas esqueceu da emoção a ser transmitida ao público, tornando a peça entediante.

Em cima da mesa, a fumaça esvaía-se lentamente de dois copos com um líquido esverdeado. Não tinha boas memórias do último chá com uma mulher bonita, mas dessa vez teria mais cuidado.

Começou a salivar ao sentir o aroma do líquido verde. Quando estava no Hangar dos Mortos, não sentia fome por estar em uma forma espiritual, mas agora seu corpo cobrava os nutrientes necessários para se manter.

[Camélia, chá-verde medicinal. Não parece ser veneno.]

“Como você sabe?”

[Mais tarde te explico, melhor você tomar logo esse chá antes de desmaiar de fome.]

Diferente do que esperava, o gosto do chá era bom. Não era nem muito doce e nem muito amargo, a temperatura também estava ideal. Kurone engoliu todo o conteúdo de uma vez sem medo, tinha o aval de Annie para isso.

— A bebida é de agrado do meu noivo? — perguntou a mulher com sua voz indiferente, não podia dizer que tipo de sentimento ela tinha ao pronunciar aquelas palavras de maneira indiferente.

— Ok… vamos lá, sei que é muita coisa para minha mente processar, mas me responde uma coisa, que negócio é esse de “noivo”?

[Isso foi indelicado, como tem coragem de perguntar isso diretamente a uma mulher?]

“Você tá do lado de quem mesmo?”

— Gostaria de entender como palavras conseguem ter tanto peso. “Namorado”, “noivo”, “esposo”, por que os humanos precisam de tantos títulos para demarcar uma única coisa? Não compreendo — explicou a miko terminando o seu chá.

“Falando assim, nem parece que ela é humana, né, Nie?”

[Lou Souen Eiai, idade desconhecida, raça desconhecida… não é humana. Não consigo detectar nenhuma aura ruim vindo dela. E para de falar “Nie”, fico constrangida assim.]

“Então não corremos risco de sermos atacados, isso é bom.”

[Ignorada novamente.]

— Uma pessoa me disse que algo tem valor quando não conseguimos ficar indiferente em relação a esse algo, não entendo. Não compreendo nada sobre este mundo, sobre emoções humanas ou sobre valores, — continuou a mulher, Lou Souen, chamando a atenção do jovem — por isso decidi utilizar você como um experimento.

— Experimento? Isso não me parece coisa boa…

— Quero descobrir mais sobre emoções, principalmente sobre a que mais me fascina, aquilo com os homens chamam de “paixão”.

[Iiiiik!]

“O que foi isso?! Você acabou de gemer?”

[V-você era quem devia estar assim, ela acabou… acabou de dizer que vai se a-apaixonar por você!]

“Sério? É isso que ela tá tentando dizer?”

[Besta!]

Por um segundo, o mundo de Kurone virou de cabeça para baixou ao escutar aquele “besta” tão tímido, tão diferente daquele usado por uma garotinha de cabelos brancos. A figura de Rory piscou em sua mente, mas ele tentou se manter firme.

 Não adiantava se lamentar pelo que aconteceu, precisava obter informações e retornar o mais rápido possível para Eragon, precisava ajudar Rory e os outros.

— Diga, não parece que tô em Eragon, que lugar é esse? — perguntou com a voz forçada. As lembranças da loli delinquente realmente o abalaram.

— Este lugar especificamente é a ilha de Lou Souen, uma das Ilhas de Lou Xhien. Este aqui é o quarto que utilizo para meditar e refletir sobre sentimentos.

— Ilha? Como cheguei aqui… não, como saio daqui e faço pra voltar a Eragon? Apenas aponte para a direção e eu vou para lá.

[Sua pressão arterial está aumentando, é melhor relaxar um pouco, ela vai explicar tudo.]

— Seu rosto é o de alguém irritado, por quê? — a mulher perguntou aproximando-se — Não lembro de ter dito algo que o ofendeu, então por que teve este sentimento?

Decidiu ficar em silêncio. O antigo Kurone explodiria dizendo “eu acabei de acordar e tem uma mulher estranha…”, mas aquele era um novo Kurone Nakano. Por algum motivo, aquela voz doce de Annie tocava no interior do seu ser e o acalmava.

— Você está a milhares de quilômetros da Cidade-Estado de Eragon. É inviável voltar andando, para não dizer que é uma loucura. Eragon localiza-se no Continente Ocidental e Lou Xhien, no Oriental. 

Apesar de ser uma coisa inacreditável, ele conseguia perceber o peso daquelas palavras. Tentar retornar era equivalente a viajar do Japão ao Brasil a pé, no entanto, ainda não sabia como chegou ali.

Ele olhou para uma pequena janela no canto da parede e viu a luz alaranjada do pôr do sol adentrando o quarto. Se era verdade o que ela dizia, então podia supor que estava em um lugar semelhante a um país oriental do seu mundo.

Rapidamente, correu em direção à porta e saiu do quarto. Teve que cobrir os olhos por conta da luz laranja ofuscante, mas logo se acostumou a ela. Uma brisa forte bateu no jovem parado, levantando a franja e mostrando seu olhar surpreso.

Árvores de folhas rosas circundavam todo o local. A única entrada para o lugar era um torii vermelho — o portão tinha diversos glifos negros nas extremidades.

Teve a impressão de estar em um santuário xinto do seu mundo, porém de aparência mais selvagem, pois aparentemente fora construído em meio a uma floresta.

Poucas lanternas começam a acender sua chama lentamente com o fim do pôr do sol e a ascensão da noite.

[É lindo…]

De fato, todo aquele cenário aquecia o coração, fazendo-o inspirar e expirar lenta e calmamente, sentindo o ar frio adentrando os pulmões. Isso misturado à voz de Annie era um verdadeiro paraíso, podia sentar ali, fechar os olhos e escutar a deusa cantar uma música  vagarosa em sua cabeça.

Mas não estavam apenas eles ali. Podia sentir a aura de mais duas pessoas. Após o torii vermelho, visualizou uma escada longa levando para dentro da floresta rosa e laranja. Estava no topo, então podia ter uma visão geral da parte inferior se estivesse mais próximo do portão.

“Tá sentindo? Tem uma pessoa naquele lado e outra ali. Será que são amigos?”

[Não consigo identificar daqui.]

 — Você ainda não está recuperado, pode ter complicações se ficar se esforçando aqui — advertiu Lou Souen, saindo do quarto.

A construção era tão pequena quanto Kurone pensou, com as paredes finas e o telhado avermelhado ao estilo chinês.

[Tem alguém se aproximando!]

Com o aviso de Annie, ele virou o rosto para o torii e escutou o som de passos e sinos de ouro aproximando-se. A floresta estava silenciosa, por isso o badalado dos sinos ecoava com facilidade.

Ele montou a pose de batalha e preparou-se para encarar quem estava chegando, porém, soltou um suspiro ao deparar-se com um par de olhos laranjas em um rosto bonito.

Seu semblante foi se tornando visível conforme subia as escadas. Primeiro a cabeça surgiu, adornado por fitas vermelhas, depois o corpo em uma roupa semelhante à de Lou Souen, porém preta e dourada, e, por fim, as pernas curvilíneas por baixo do hakama negro.

Era uma garota de cabelos rosa-claros. Ela franziu o cenho e falou com desprezo ao avistar o garoto:

— O que está olhando, plebeu? Ajoelhe-se!

A última coisa que o jovem viu foi o céu noturno quando sentiu o corpo virando. 

Teve a impressão de ter levado um empurrão, mas não viu a garota se mover para atacar.



Comentários