Volume 3
Capítulo 101: A Decisão Da Sophiette
A demonstração de determinação de Orcus foi um golpe pesado no seu coração. Sophia jamais imaginou que sentiria inveja daquele guarda, porém, naquele momento, queria ter a sua força, não física, mas sim a psicológica.
Orcus perdeu sua filha, a vila e o homem que jurou a espada, porém não estava se lamentando como ela, pelo contrário, o guarda desejava vingança. Não se importou nem mesmo em se aliar aos demônios para vingar a morte de Kurone.
Em contrapartida, ali estava Sophia, isolada naquele quarto e sentada ao lado da cama em que Noah dormia profundamente.
Quando pensava em se levantar, a imagem de garota sofrendo se passava na sua cabeça. Não podia deixá-la ali e ir para o campo de batalha, mas também tinha ciência que aquelas pessoas não venceriam sem a sua liderança, então só podia esperar a morte inevitável.
— Madame? — A voz seguida de dois toques leves na porta chamou a atenção da jovem. — Temos visitas e eles desejam ver a madame, o que digo?
Aquela era voz de uma das suas empregadas mais velhas, Maria. Era a terceira pessoa em que mais confiava ali, mas com a traição de Raul e o coma de Noah, agora era a primeira. Também era a única que sabia a localização do quarto secreto de Sophia.
— Visitas…? — murmurou a jovem. A voz estava arranhada devido à pouca hidratação. — Quem são? — perguntou sem fazer menção de abrir a porta para receber a empregada.
— A senhora Marta Gotjail e o mestre Eliezer Sophiette. As pessoas estão assustadas, a senhora sabe como eles são, podem começar uma briga a qualquer momento se a madame não for até lá.
— Deixe que eles se matem! Isso pelo menos seria interessante, as pessoas não estão aguentando mais esse clima… eu também não aguento mais, só quero ficar ao lado da Noah, não podemos mais fazer nada — concluiu fechando os olhos. As olheiras aumentaram muito em um curto período, o rosto da garota também estava pálido devido à má alimentação.
— Madame…
— Então vai simplesmente esperar o ataque de Azazel van Elsie e seus lacaios? — Outra voz sobrepôs a fala da empregada. — Não sei se o Kurone concordaria com isso.
Repentinamente, a porta de madeira foi quebrada com um único chute da dona da voz desconhecida. Sophia levantou o lençol para garantir que nenhuma farpa tocasse Noah.
— Então é aqui o buraco que você arranjou para se esconder? Uh! Que climão depressivo — comentou examinando o pequeno quarto.
A garota, que arrombou a porta e fez comentários descontraídos, vestia um uniforme diferente das empregadas da mansão Sophiette, um bem longo e mais recatado que não combinava com seu rosto. Pequenos cachos do cabelo ruivo brilhante se espalharam pelo seu rosto quando chutou a porta.
— Azazel van Brain — murmurou em um tom quase de raiva. Os grandes olhos avermelhados de Sophia se encontraram os castanhos e afiados da jovem intrusa. — Você não tem permissão para estar aqui!
— Na verdade, não tenho permissão nem para estar viva, mas cá estou eu — disse em um sorriso sádico, sua marca registrada.
— Diga logo o que quer, não podemos fazer muito barulho aqui, senão a Noah…
— Vai acordar? Pfff, eu e você sabemos que isso não vai rolar, querida marquesa.
A última vez que sentiu um impulso selvagem de quebrar a cara de alguém com socos foi na reunião após o ataque de orcs, naquela ocasião se conteve e fez apenas um estrago na mesa, mas não sabia se poderia conter o impulso dessa vez. Sua vontade era agarrar o pescoço daquela demônia e socá-la até que parasse de respirar.
— Olha só para o seu estado, — começou Brain — nem parece aquela marquesa que o Edward tanto temia. Agora, você não passa de outro desses heróis que passam os dias jogando jogos de tabuleiro ou lendo livros de seus grandes feitos, pessoas assim me enojam.
— Se já terminou os insultos, já pode ir embora. Ria da minha cara o quanto quiser, mas não faça muito barulho — Sophia falou em um tom frio, porém seu rosto parecia o de alguém prestes a chorar.
— Se eu quisesse rir da sua cara, não teria vindo aqui. Me sinto enojada só de escutar sua voz, marquesa Sophys. Sim, disse “Sophys” porque você não é digna de ser chamada de “Sophiette”.
O que Sophia mais odiava era o fato de que tudo que a empregada falava não era mentira. Sim, era fraca, covarde e uma vergonha para família Sophiette. Desde que salvou Noah em Fallen, abandonou a espada e as batalhas para viver uma vida tranquila como um humano comum. Ela abandonou todos os seus deveres como líder do clã, mas suas obrigações sempre lhe atormentavam.
— Diga logo o que quer! — A marquesa ignorou o que dissera antes e gritou em ódio. Ela aproximou-se alguns passos da demônia e a segurou pelo colarinho antes de continuar: — Não acredito que Vossa Senhoria veio aqui apenas para ser espancada por mim!?
— Madame, por favor, acalme-se. — Maria tentou interferir, mas o olhar furioso da marquesa fez ela ficar parada onde estava.
Brain manteu-se calma e segurou delicadamente as mãos rígidas de Sophia. Ela formou outro sorriso sádico e respondeu:
— Vim aqui para saber o que você pretende fazer, marquesa Sophys. Terá meu apoio se decidir lutar contra van Elsie. — A garota pôs a mão no rosto e fez uma expressão macabra. A empregada na porta soltou um grito ao ver a expressão demoníaca de Brain.
— Já disse que…
— Mas se quer realmente continuar isolada aqui enquanto aguarda um ataque, então o melhor é que eu mate todas as pessoas que estão aqui — concluiu um tom sério e firme que constratava com seu rosto. — Escolha, marquesa Sophys. Lutará até o fim ou eu precisarei matar todos? Saiba que esse “todos” inclui você e essa menina dormindo ao seu.
A marquesa arregalou os olhos ao sentir a aura de Brain espalhando-se pelo quarto. Aquela demônia estava falando sério, seu poder deveria ser algo próximo ao de Azazel van Elsie, Sophia podia sentir isso em sua presença.
— Por que um demônio está interferindo em assuntos humanos?! Por que não vai viver sua vida e nos deixa em paz com nossa guerra?!! — bravejou com a voz mais baixa, a presença da garota era opressora até para ela.
— É uma boa pergunta — começou ainda com a voz firme. — Nem eu consigo lutar contra a Elsie, estou aqui arriscando minha vida, mas quer saber o motivo? É porque Kurone Nakano me deu uma segunda chance para que eu pudesse me redimir, ele me encarregou de cuidar de muitas coisas importantes. Se eles vão sofrer com o ataque de Azazel van Elsie, então prefiro que tenham uma morte rápida e indolor.
— De novo o Kurone! Qual o problema de vocês!? — berrou em ódio. — Kurone pra cá, Kurone pra lá, qual o problema de vocês?!! Ele está morto!
— Você devia se envergonhar. Olhe só para você, marquesa Sophys, é um dos humanos mais fortes do mundo, tem poder para enfrentar um exército sozinha, mas quem é que protegeu Grain da Besta Negra? Me responda, marquesa Sophys, quem foi que liderou a batalha contra o Edward e voltou vivo após encontrar Azazel van Gyl? Quem foi que deu a essa demônia aqui a chance de pagar pelos seus pecados?!
Sophia ficou em silêncio, soltou o colarinho da garota e, quando pensou em responder algo, Brain adiantou-se:
— Eu lhe respondo, marquesa Sophys, foi o humano mais fraco que já conheci na vida. Um pervertido, medroso e que só pensava em proteger uma garotinha de cabelos prateados.
A marquesa ficou em silêncio com a cabeça baixa. O corpo dela tremeu ao escutar o nome daquele jovem novamente.
— Olhe para o pátio, — Brain apontou para a janela suja do quarto — ali está a temível Besta Negra. No interior da mansão está a lendária Condessa Hematófaga. Sentada ali está a única aventureira Rank B de Grain. Ah! Veja só, ali está o Santo Avios Bishop ao lado da sacerdotisa chefe de Cecily. Quem foi mesmo que juntou todas essas pessoas aqui?
Mesmo tentado se manter forte, lágrimas discretas afloraram do rosto da marquesa. Estava sendo ingrata e sabia disso. Brain não tocava no assunto do julgamento de propósito, ela queria que a marquesa se culpasse ainda mais.
— Enfim, você tem um dia para decidir. Se não fizer nada, eu vou começar a matar todos. Não pense que estou blefando, afinal sou um demônio. — A garota virou as costas e dirigiu-se à porta destruída.
O silêncio na sala era tamanho que os passos da garota foram escutados até mesmo quando ela estava bem distante. As pernas fracas da marquesa quase não tinham forças para sustentar o corpo desidratado.
— Ma-madame! — Maria correu para segurar a mestra prestes a desmaiar.
— Eu estou bem… eu acho. Maria, o que você acha que eu devia fazer?
— Madame, estou com a senhora desde que era criança, então me sinto no direito de dar minha opinião sincera, me perdoe se não for do seu agrado. Eu não sei quem é esse Kurone, mas concordo com aquela garota, apesar de não aprovar a ideia da matança de inocentes.
— Entendo… — murmurou enxugando as lágrimas — é claro, eu estou errada, sempre estou, nunca faço nada certo. Não discorde! Você conhece alguém que deixou uma princesa ser sequestrada duas vezes e não pôde fazer nada?
— Não, madame, não conheço.
— Viu? Sophia Sophiette Sophys III sempre está errada…
— Porém, também não conheço outra pessoa que enfrentou tantos problemas como a senhora e não baixou a cabeça. Eu me sinto honrada em servir a madame, então, se tivermos de morrer, ficarei contente em morrer ao seu lado.
A marquesa lançou um olhar surpreso para a empregada. Em todos aqueles anos, raramente conversou com Maria, mas sua mãe confiava nela, por isso também confiou sem questionar suas ações. Pensava que aquela mulher era uma empregada como as outras, que apenas fazia se trabalho, mas estava enganada.
— Deixarei a senhora sozinha agora, qualquer uma das escolhas que for tomar é muito difícil.
Antes de sair do quarto, a empregada arrumou o estrago feito por Brain e colocou o cobertor em Noah novamente. Seus passos suaves ecoaram pelo cômodo quando saiu.
Sophia encarou o teto e suspirou profundamente. Tinha a vida de centenas de pessoas em suas mãos de novo. Prometeu no frio daquela casa abandonada de Fallen que jamais sujaria suas mãos de sangue, mas lá estava ela novamente.
— Acho que não tenho escolha, terei que pagar a dívida que tenho com você, Kurone — murmurou olhando para o jardim da mansão, lembrando-se do sorriso daquele jovem em um piquenique com seu grupo.
A marquesa pegou algo escondido debaixo da cama de Noah e, olhando uma última vez para a garota em coma, saiu da sala. Levou aquela espada por segurança, mas realmente não tinha intenção de usá-la.
O barulho de passos vindo das escadas chamou sua atenção, mas logo relaxou ao perceber quem se aproximava.
— Acho que um demônio também te fez uma visita, certo? — comentou ao ver a figura vindo em sua direção.
— Aquela garota sabe como animar um espírito derrotado, marquesa Sophiette — respondeu o jovem parando em frente a Sophia. — Pelo seu rosto, acho que já sei o que decidiu.
Sophia lembrava do estado que aquele jovem chegou ali: gritando, chorando e puxando os próprios cabelos ruivos como um louco. A persuasão de Azazel van Brain era assustadora.
— Prepare-se, senhor Rhyan Gotjail, nós iremos lutar até o fim — afirmou erguendo sua espada, a mesma espada que um dia pertenceu a Karllos Sophiette, sentia-se indigna de usá-la, mas dessa vez não decepcionaria seu antepassado.