Volume 2
Capítulo 95: Guardião Do Centésimo Piso
Ele confiou em ser daquele mundo e acabou sendo enganado novamente. O ódio no interior do seu peito fez com que apertasse a escopeta com força. Decidiu jogar a ira para o canto da mente e se concentrar apenas em atravessar o corredor.
A única fonte de luz no local era o Sigilo de Azrael arroxeado estampado no seu peito. Odiava admitir, mas era ajudado pelo anjo caído, sem aquela luz, estaria andando sem enxergar nada.
Sabia que ia para o caminho certo por conta do “chamado”, porém não podia dizer que ali era seguro. Um monstro poderia saltar e matá-lo a qualquer momento, afinal o que habitava o centésimo andar, segundo o próprio Azrael, era “o motivo pelo qual o próprio Hangar dos Mortos foi edificado”.
O jovem andou pela escuridão por mais alguns metros, mas parou quando sentiu que pressionou algo com o pé. O barulho de engrenagens girando reverberou pelo breu e Kurone entrou em pose de batalha.
Tentou concentrar-se e manipular o fluxo de mana em seu corpo, mas lembrou que não possuía mais o Olho Sagrado. “Droga!”, praguejou internamente ao perceber o quão vulnerável estava.
A Convocação de Orcs e a AutoRecuperação também estavam fora de cogitação, só tinha a Boito .20 à sua disposição. O garoto cerrou os olhos e aguardou o pior.
Em instantes, as trevas que tomavam conta do corredor foram extintas pela luz de diversas tochas espalhadas pelas paredes do local.
— Argh! — deixou um grito escapar inconscientemente. O que o surpreendeu não foram as imagens grotescas esculpidas nas paredes, como aquelas do portão, mas sim a quantidade inacreditável de ossos no chão. — Merda, odeio esqueletos.
Como não precisava mais da iluminação fraca do Sigilo de Azrael, ele apressou o passo, pisando sobre vários crânios espalhados pelo corredor. Sentiu um frio na espinha ao ver marcas de cortes nas paredes, pareciam terem sido feitas por algo afiado, como uma espada ou… “As garras de um monstro…”
O coração acelerou, recusou-se a olhar para trás e embalou ainda mais a corrida. A cada passo, o barulho de ossos quebrando ecoava por todo o corredor apertado. Sentia que algo ruim aconteceria com certeza, mas, no fundo, desejava atravessar o corredor sem problemas.
Um som estranho fez ele para e suspirar profundamente em frustração. O “Clang Clang” provocou uma repulsa daquele lugar no jovem.
Ao olhara para trás, deparou-se com a cena de diversos ossos do chão se agrupando em um único ponto. O som de “Clang Clang” era provocado quando um osso batia com violência no outro, formando juntas bizarras.
Os ossos davam forma a uma criatura enorme e de aparência grotesca. A coluna vertebral da coisa, formada pela junção de ossos de diferentes tamanhos, tinha mais de dois metros. Ossos mais finos tornaram-se as asas esqueléticas do monstro.
A aparência da criatura sendo construída na frente do garoto lembrava muito um morcego do seu mundo, mas era sessenta vezes maior, considerando que um morcego comum tinha 5 cm. Kurone engoliu seco a decidiu agir, não poderia esperar o monstro ser construído completamente e começar o ataque.
Pow! Após o tiro, o som de ossos quebrando fez ele ter outro arrepio, porém decidiu continuar. Focaria os disparos nas pernas finas e, em seguida, no crânio.
Ficou a uma distância segura para evitar ataques surpresas e viu dali que seria uma luta difícil, já que a cada osso estourado, outro era colocado no lugar. Para matar a criatura, precisaria destruir todo o repositório do monstro no chão.
“Porra, eu tenho sorte mesmo pra enfrentar esses chefões.” O grande morcego esquelético à sua frente tinha uma vantagem semelhante àquela de Edward Soul Za, não importava quantas vezes fosse destruído, ele retornaria a vida sem nenhum arranhão.
De fato, se não fosse a intervenção de Azazel van Gyl, Kurone e seu grupo teriam perdido a luta contra o marquês pelo cansaço. “Ele tem que ter um ponto fraco!”, pensou enquanto se aproximava do monstro.
Uma coisa que aprendeu nos últimos meses foi que todos os seres — exceto a Elsie — possuíam uma fraqueza. Até mesmo a imortalidade de Edward podia ser vencida com ataques que fizessem uma alteração direta na alma. O monstro à sua frente não tinha uma alma e ele não era um mago, então uma magia assim não funcionaria.
Kurone recuou alguns passos, deslizando nos ossos, para esquivar da investida da criatura. As partes estavam sendo reconstruídas mais rápido do que o jovem podia destruir. Naquele ritmo, acabaria morto pela fadiga.
A Convocação de Orcs seria útil, sem o poder dos outros, não passava de um humano comum segurando uma espingarda, algo inútil contra uma monstruosidade daquele porte.
— Roaaaar!! — berrou a criatura quando foi construída totalmente. Ela era completamente irregular, afinal os ossos que formavam seu corpo tinha uma gigantesca diferença de tamanho.
Kurone desistiu da ideia de atirar de correu. A locomoção estava difícil por conta da quantidade de crânios no chão, mas por sorte, suas botas de Santo, assim como o manto, possuíam um tipo de benção que lhe davam mais equilíbrio.
— Pensa, pensa, pensa!
— Roaaaarrr!!! — a fera berrou novamente, investindo com suas enormes asas ósseas e criando uma enorme onde de crânios em direção à sua presa.
“Droga!”, praguejou ao sentir seu corpo sendo arremessado violentamente contra uma das paredes estreitas. O jovem bateu a cabeça e viu o mundo girar por alguns momentos, porém logo recuperou a consciência e entrou em sua posição de luta.
A perna esquerda na frente, os braços relaxados e a mão segurando a arma como se fosse soltá-la a qualquer momento era uma pose roubada de Sophia.
Durante sua estadia na mansão Sophiette, percebeu que todos os empregados de lá utilizavam aquela pose de batalha enquanto se preparavam para esquivar. A postura de quando Amélia ia disparar com a besta também era semelhante. Em sua luta contra Gotjail, percebeu estar em desvantagem por conta da técnica do falso herói que, apesar da postura relaxada, conseguia lutar com habilidade.
Não sabia se funcionaria com uma espingarda, mas tentaria lutar como um guerreiro de Niflheim, combinando tudo o que aprendeu nos últimos dois meses com os desgraçados daquele mundo.
Ryuu, Katherine, o supervisor, a garota morena e o garoto apaixonado pela Brain não sacrificaram suas vidas para que chegasse até ali e lamentasse por ter perdido o poder dado pelos outros.
Não precisava do Aprimoramento Físico para suportar os golpes e muito menos do “Fogo Infernal” de Annie para queimar a criatura. Ele passou a mão pela cabeça sangrando por conta do impacto e limpou o sangue.
— Roaaa…
Pow! O grito ensurdecedor do morcego esquelético foi silenciado pela Boito .20. A mandíbula da fera desprendeu quando entrou em contato com o chumbo, voou e desapareceu na escuridão.
Outro osso foi em direção da criatura para substituir a mandíbula perdida, mas se explodiu no ar também. Kurone agarrou a tocha da parede e avançou em direção ao monstro.
Ah sim! Lembrava-se daquela sensação. Era semelhante àquela de quando espancou o médico que tentou abusar da sua irmã até a morte. Nunca precisou do poder de ninguém para lutar. Ele era o lendário Kurone Nakano que, sozinho, espancou uma gangue de delinquentes do ensino médio quando ainda estava no fundamental. Como pôde se esquecer?
Desde a morte da irmã, tentou se tornar alguém calmo e pacífico, tomou seus remédios e reprimiu toda aquela sede de sangue que vivia em seu ser. Pensava que poderia machucar sua família se continuasse sendo aquele louco do fundamental, mas não era bem assim.
Se fosse bonzinho demais, acabaria não conseguindo proteger seus aliados, mas, em contrapartida, mataria seus aliados se deixasse sua insanidade extravasar como fez em Eragon, chegando ao ponto de aceitar o poder da maldita Annie. Precisava alcançar o equilíbrio entre loucura e consciência.
A adrenalina tomou conta do seu corpo, fazendo um sorriso se formar em seu rosto. Jamais sentiu aquela sensação. O corpo estava leve!
O monstro deu golpes mortais consecutivos no ar e mais arranhões foram criados nas paredes. Mesmo sem o Aprimoramento e o Olho Sagrado, conseguia esquivar sem dos golpes sem problemas, seu corpo estava tão leve que permaneceu por mais de um minuto no ar.
“Desvie!”, uma voz sussurrante ordenou. Sem pensar duas vezes, o jovem obedeceu e recuou alguns passos, escorregando com elegância pela montanha de crânios animalescos.
Enfim percebeu de onde vinha aquela sensação macia em seu rosto. Observava o mundo de maneira diferente por conta máscara em sua face. Aquele calor era familiar, pois era a mesma máscara que carregara em seu peito desde a morte do seu antigo dono: o supervisor.
Finalmente era digno de usá-la. Não sentia mais aquela tortura excruciante de quando a colocou em Eragon. Toda a dor foi esquecida. Estava novamente dependendo de algo que não era seu poder, ao perceber o fato, ele desacelerou e olhou para o monstro à sua frente. Lentamente, pôs a mão no rosto e retirou a máscara.
— Foi mal, mas quero enfrentar essa coisa com meu próprio poder, nem que eu morra, mas foi bom saber que eu ainda tenho essa recordação — ele murmurou guardando a máscara no Inventário Interno. Tinha certeza que aquele objeto não estava ali antes, por isso presumiu que ele entrou no seu inventário quando morreu.
— Vamos continuar, eu quero te matar com minhas próprias mãos — disse encarando o monstro. O garoto desmaterializou a Boito .20 e tirou a camisa de Santo. Ele abaixou-se e pegou um osso longo do chão antes de prosseguir: — Pode vir com tudo!
— Roaaar!!! — a criatura rugiu após substituir sua mandíbula por outra enorme e foi em direção à sua presa. O jovem também não se acovardou e brandiu o osso enorme e pesado em mãos para o monstro. O enorme sorriso prevalecia estampado em seu rosto.