Volume 2
Capítulo 100.1: De Volta Ao Prólogo (parte 1)
Existia um motivo pelo qual os humanos raramente conseguiam chegar a Zaphon, o Continente Demoníaco, e esse motivo era o sol.
Claro, existiam outras variáveis, como atravessar o oceano sem ser morto por um monstro marinho da Leviathan, ou tentar a sorte de usar a tênue ponte que ligava o Continente Oriental ao Demoníaco, porém no último caso a viagem seria em prolongada em mais dois meses, tempo precioso que não podiam perder.
Mas por que o sol? Querendo obter a resposta, Ryuu Toshiro pesquisou bem antes de iniciar sua jornada e encontrou ela em um livro amarelado da biblioteca de Lou Xhien.
A temperatura naquele continente chegava a 100 °C nos dias mais frios, — ele conhecia as fórmulas de conversão de Termpoints para Celsius — temperatura a qual um demônio suportaria sem problemas, mas não um humano.
Se era apenas uma coisa tão idiota como aquilo, Ryuu presumiu que não teria problemas em atravessar a primeira parte do Continente Demoníaco com a proteção do Leopard 1, no entanto…
— Puta que pariu, que fome do caralho!!! — gritou em seu tom rude. Sua voz ecoou por toda a floresta e fez várias gralhas negras demoníacas provocarem um estardalhaço no céu.
Ali não precisavam mais da cobertura do seu veículo de confiança, o Leopard 1 verde, pois as lâminas das folhagens os protegiam. Raros raios do sol avermelhado atravessavam os limbos enormes e tocaram o rosto de Ryuu, obrigando-o a fechar os olhos.
O homem apoiou as mãos na lombar e um estalo satisfatório foi seguido de um suspiro. Ele abaixou os ombros, fazendo as medalhas douradas produzirem estalidos, bagunçou os cabelos grisalhos com a mão grossa e olhou ao redor para verificar a existência de algum inimigo.
— Senhor Ryuu, você não devia xingar em uma floresta tão bonita, está estragando a paisagem — repreendeu a garotinha de cabelos prateados saltando do tanque de guerra. Por conta do período confinada ali, sua pele estava mais branca que o usual.
— Bobagem, loli, xingar é uma maneira de celebrar a liberdade. Você devia para de ser tão certinha, já se passou tanto tempo e você não muda.
— E o senhor não parou de me chamar de “loli”…
A interação comum entre o homem rude e a garotinha assustou os monstros dóceis das redondezas. Apesar de ali ser uma floresta do Continente Demoníaco, ambos agiam como se estivessem em uma excursão comum, na verdade, já fizeram excursões em locais tão perigosos quanto aquele.
Aquela interação era fruto de trinta anos de convivência. Ryuu agora estava com cinquenta anos e a menina… talvez tivesse trinta e oito ou algo assim, ele ainda ficava impressionada com a maneira que a garotinha, Luminus streix Astaroth, continuava tão jovem desde o dia que se conheceram.
— Desgraça, a lata velha não vai aguentar passar por essa floresta estreita, vamos ter que esconder ela e continuar a pé — concluiu o homem após examinar as redondezas com uma expressão de raiva.
— Tem certeza que é uma boa ideia? Sem o tanque….
— Tsc, tá com medo de uns demônios de merda? Se virem pra cima, só preciso mandar todos pro inferno de novo! — afirmou com um sorriso enquanto puxava o fuzil que carregava nas costas e passava para Luminus.
A arma de modelo M16A1, quase do tamanho de Luminus, estava repleto de arranhões e algumas partes continham ferrugem. A memória de receber o objeto da deusa Cecily ainda era viva em sua mente, apesar da quantidade de anos que se passou.
— Não podemos perder tempo aqui… ei, qual é a dessa cara? Tá com dor de barriga? — perguntou franzindo o cenho para a expressão da garotinha.
— Não é isso, esse lugar me dá calafrios… não sei se gosto da ideia de continuar a pé, tem certeza que não dá para levar o tanque?
— É inviável, — começou puxando um cigarro do bolso e acendendo com pequenas chamas mágicas dos dedos — além de ser difícil atravessar sem destruir a própria lata velha, vai chamar muita atenção dos demônios. Claro, com certeza os filhos da mãe já devem ter percebido nossa presença, eles não são tão mongolóides assim.
Apesar de ser normalmente impulsivo e ter passado por diversas situações difíceis, até Ryuu percebia o nível de periculosidade daquela missão, por isso escolheu vestir seu uniforme militar verde perfeito para camuflagem, assim como o de Luminus.
— Tome, pode usar ele se quiser — disse entregando o fuzil para a menina, porém ela recusou e fez uma careta. Ainda odiava aquela arma. — Então, se terminamos, vamos logo, precisamos encontrar pelo menos um local para acampar por hoje.
Antes de partir, tiraram folhas laminadas enormes e as colocaram sobre o Leopard 1, por sorte o tanque era esverdeado, então não chamaria muita atenção em meio aos arbustos.
Luminus olhou uma última vez para a lateral do veículo onde a palavra “Raifurori” fora gravada pela faca de Ryuu em caracteres estranhos. Ela suspirou e jogou uma folha por cima dos rabiscos. Pelo seu olhar, ainda não concordava com a ideia de deixar o tanque de guerra para trás.
— Não fica assim, senão a lata velha vai chorar, haha — brincou passando a mão sobre os cabelos prateados da companheira, porém parou ao perceber algo. — Ei, você tá bem mesmo? Parece que sua temperatura tá muito alta…
— N-não é nada, é só o calor… afinal nós passamos um mês confinados no tanque — explicou Luminus afastando-se das mãos grossas do homem.
— Tem razão… bom, já perdemos muito tempo aqui… — disse apontando para uma parte mais clara da floresta.
A trilha tornou-se íngreme após cinco minutos de caminhada, mas Ryuu já esperava aquilo, por isso causou suas botas militares especiais. Apesar de ter tantas habilidades mágicas, agradecia muito por aprender a confeccionar roupas e acessórios durante seu tempo no exército japonês.
A primeira roupa que costurou naquele novo mundo fora o uniforme militar de Luminus, roupa esta que ela usava até hoje, lembrava-se claramente do sorriso e do olhos arregalados de surpresa da menina quando recebeu o presente.
— Ah, porra! — gritou ao sentir uma folha queimando seu rosto. Acabou se distraindo e saiu da trilha estreita.
— Haha, senhor Ryuu, é melhor não se distrair por aqui, essas folhas causam um estrago na pele. Não vai dizer que estava pensando naquelas mulheres das ilhas Lou Xhien do Continente Oriental? — provocou Luminus.
— Eu não tava, mas agora que você falou, quero passar lá quando terminarmos essa missão.
— Pervertido.
Ambos caíram na risada quando se encararam, aparentemente Luminus também queimou um pouco da face nas plantas e, aproveitando-se da brecha, Ryuu também a provocou dizendo “e em que você tava pensado?”
— Ah! — o homem exclamou após mais alguns minutos — Essas folhas me lembraram de algo que li naquele livro!
— Huh? — Luminus olhou curiosa para o companheiro jogando uma folha que queimou sua testa fora.
— “A Floresta de Taliesin”, — começou Ryuu — se não me engano era esse o nome do conto, ele começa mais ou menos assim: “Houve outrora um bardo demoníaco que edificou uma barreira entre dois continentes em constante guerra, contudo o bardo de nome Taliesin viveu exilado até seus últimos dias na própria barreira.”
— Nossa, falando assim, nem parece você — comentou a menina impressionada.
— Você nem prestou atenção na história, loli desgraçada?!
— E nem você prestou atenção em quando eu falei para parar de me chamar de loli, senhor Ryuu.
A jornada pelo que provavelmente seria a “Floresta de Taliesin” continuou da mesma maneira pelas próximas horas, com paradas e provocações ocasionais. Eles pararam para descansar quando o sol começou a desaparecer no horizonte.
— Atchim!
— Ei, loli, tem certeza que você tá bem?
Tanto Ryuu quanto Luminus estavam com os rosto vermelhos por conta das folhas incomodas e o passo estava mais lento pelo cansaço.
A luz do pôr do sol alaranjado adentrando pelas brechas entre as folhas mostravam que o primeiro dia naquela floresta estava chegando ao fim.
— Estou bem, é só alergia a essas folhas… — Luminus respondeu passando um pano úmido no rosto avermelhado.
— Bora acampar aqui por hoje, a noite nessa floresta pode não ser tão tranquila quanto o dia — o homem disse afastando alguns arbustos e apontando para uma pequena clareira.
Quando se tratava de acampamento, Ryuu era um expert. Todas as habilidades obtidas no exército lhe foram úteis até aquele momento.
Rapidamente, ele cortou alguns galhos com a faca que carregava na perna e acendeu uma fogueira com magia de fogo. A comida enlatada na mochila estava acabando, mas ainda conseguiriam comer três vezes durante dois dias, seria tempo o suficiente para sairem da floresta.
— Naquele conto que te falei antes, — começou Ryuu — tinha uma parte que contava que essa floresta tem um tipo de feitiço que faz as pessoas andarem em círculos, ainda bem que li, consegui quebrar o efeito dele assim que chegamos… ei, loli? O que foi?! — bravejou ao ver Luminus capengando de um lado para outro, podendo desmaiar a qualquer momento.
Os olhos avermelhados da menina estavam quase fechados e pele mais pálida que antes. O homem largou a panela em mãos e correu para segurar a garotinha.
— Puta que pariu, você tá queimando em febre! — praguejou enquanto buscava o kit médico da mochila.
Reparou que Luminus estava um pouco diferente enquanto atravessavam o mar e, quando ficaram confinados no tanque de guerra, ela ficava mais pálida a cada dia, mas não imaginou que a menina estava tão ruim.
— Tenta ficar acordada…
Por alguns segundos, todos os pelos do corpo de Ryuu se eriçaram. O homem sentiu o corpo de Luminus também ficando tensos. Ele cerrou os dentes e xingou, era uma péssima hora para ficar doente.
— Porra, hoje não é nosso dia de sorte!
Uma presença vil havia adentrado a Floresta de Taliesin, aquela aura só podia pertencer a um Duque do Inferno.