Que Haja Luz Brasileira

Autor(a): L. P. Reis


Volume 2

Capítulo 27: Ainda não!

— Você controlou o vento? — Perguntou o velho para o pequeno Kira, deixando-o sem palavras ao reconhecer com quem havia colidido. Sua surpresa logo se desviou para o que o senhor fazia naquele local.

— Casa de banho feminino — Pensou Gayami, lendo a placa que identificava o lugar. Uma cerca de madeira separava-os de uma fonte de águas termais reservada apenas para mulheres. Aparentemente, o senhor estava espiando por uma das brechas, observando quem tomava banho.

— Quem é você? E o que está fazendo aqui? — Indagou Kira, já compreendendo as intenções do senhor. Ele estava espiando as fontes termais reservadas para as mulheres.

— Eu sou Karumo, o guardião de Takaamahara e protetor do vento. E você? — Respondeu o senhor com seriedade, tentando disfarçar a situação em que havia sido pego. Enquanto se apresentava, Karumo pulava com uma das pernas e abria a outra no ar, usando um chinelo de madeira e estendendo o braço para mostrar sua presença para Kira.

— Nem ferrando que um tarado como você é o guardião da nossa terra! — Debochou o garoto, rejeitando a ideia de que aquele senhor poderia ser o protetor de Takaamahara — Isso de guardião foi uma desculpa, certo? Pra eu não te denunciar para os samurais.

Karumo olhou para o garoto e achou-o interessante. Raras vezes ele se apresentara e alguém não ficara com medo do que representava. Uma das ocasiões fora quando se apaixonara por uma moça, roubando-lhe o coração, mas sem conseguir conquistar o dela. Porém, aquela era uma história para outro dia. Observando Kira, o guardião pensou:

— Ele vai servir.

— Eu sou um guardião mesmo — O senhor abriu a mão, e uma leve brisa alcançou o rosto de Kira, fazendo-o perceber que o homem à sua frente parecia falar a verdade — E tenho uma proposta interessante para te fazer.

O garoto observou-o com curiosidade. O que um homem que estava bisbilhotando um banho termal feminino poderia oferecer a ele? Gayami recuou.

— Olha, senhor Karumo, eu não quero confusão. Vamos fazer o seguinte: eu te deixo em paz, não conto pra ninguém o que vi, e você me deixa ir embora brincar com meus amigos. O que o senhor acha?

Kira se preparou para correr, caso fosse necessário, mas sabia que, se Karumo fosse um guardião, nada poderia fazer contra ele.

— Calma, garoto. Eu não vou fazer nada com você — Disse o senhor, sorrindo para Kira e bagunçando seu cabelo — Minha proposta é que você seja meu discípulo.

Kira não ouvira direito a proposta, estava tão surpreso que precisou perguntar novamente:

— Seu discípulo? Mas se você é um guardião, por que precisa de um discípulo? Questionou, com certa curiosidade em sua voz, tentando compreender o que Karumo desejava com aquilo.

O senhor se aproximou e sentou-se perto do garoto, que o acompanhou fazendo o mesmo.

— Os guardiões, meio que estão recrutando aprendizes. Por mais que sejamos os seres mais forte dos mundos, os bem-aventurados um dia já foram quase tão fortes como nós. Entretanto, hoje em dia, estão mais para uma sombra do que já foram. Por isso, o grupo entrou em consenso para buscarmos aprendizes — Karumo olhou para Kira, que aparentava ter 12 anos, como se acreditasse que o garoto entenderia todas as complicações que os protetores dos mundos tinham que lidar — Então tive que começar a procurar, já que só eu ainda não consegui encontrar um e as coisas ficam ainda mais difíceis quando não se tem tanta facilidade de lidar com outros seres de uma forma fácil.

— Também ficar espionando uma casa termal feminina não deve te ajudar muito bem nisso! — Disse Kira, rindo e não perdendo a oportunidade de cutucar o guardião por não ser tão sociável.

— A questão não é essa. Eu estava fazendo uma pesquisa para encontrar alguém para ser meu discípulo — Explicou Karumo, tentando justificar sua exploração naquele lugar em que não era bem-vindo, e então pigarreou antes de continuar — Eu vi que você conseguiu manipular o vento para que não caísse com tudo no chão. Quem te ensinou isso?

— Isso? — Perguntou Kira, fazendo uma pequena espiral de vento em sua mão direita — Eu aprendi sozinho. Na verdade, eu aprendi observando a trajetória do vento. Foi quando percebi que podia fazer isso com a minha respiração.

Karumo compreendeu que aquele garoto tinha potencial. Seu controle sobre a energia elemental poderia se tornar tão refinado quanto o dele se treinasse com o mestre guardião. Se Kira conseguiu manifestar o vento sozinho, imaginem o que ele poderia fazer com um treinamento adequado. Poderia até mesmo superar os poderes de Susano’o, Tsukuyomi e Amaterasu juntos, algum dia.

O protetor realizou o mesmo movimento que Kira, e da sua mão direita também surgiu uma espiral de vento. No entanto, quando o guardião expandiu a espiral, a bolha de elemento cresceu, cobrindo os dois e fazendo-os flutuar.

Kira sentiu medo no primeiro instante quando percebeu que seus pés saíram do chão, mas logo passou a presenciar uma das cenas mais incríveis de sua vida. Eles conseguiam visualizar a capital de Takaamahara de cima, e Kira sabia que seria uma das poucas pessoas com aquele privilégio por um bom tempo.

No horizonte, o céu exibia uma paleta de cores deslumbrante, à medida que o sol mergulhava no horizonte, pintando-o com tons de rosa, laranja e violeta. O espetáculo do pôr do sol refletia-se na superfície tranquila das águas do porto, criando um cenário mágico que parecia saído de uma pintura. A cidade de Taiyo era abraçada por essa atmosfera encantadora, enquanto as flores de cerejeira, em sua plena glória, se espalhavam como uma chuva de pétalas por toda a capital.

A delicadeza das sakuras contrastava com a imponência do castelo, lar das lendárias divindades Amaterasu, Tsukuyomi e Susano'o. A construção, com suas torres e detalhes arquitetônicos, parecia emanar uma aura de poder e mistério. A cidade, em sua majestosidade, reverenciava os grandes bem-aventurados que ali residiam.

A chegada da primavera marcava o início do espetáculo das cerejeiras. Em vários pontos da cidade, elas desabrochavam com esplendor, pintando as ruas, parques e jardins em tons suaves de rosa e branco. Cada árvore parecia exibir seu próprio espetáculo de beleza, convidando todos a se maravilharem com a efêmera e delicada vida das sakuras.

À medida que Gayami contemplava a cena, suas preocupações iniciais deram lugar à pura deslumbramento. O coração do jovem pulsava com emoção diante de tamanha magnificência natural. O cenário se abria à sua frente, com as ruas da cidade se tornando cada vez menores à medida que subiam, revelando toda a beleza e riqueza de Taiyo.

Ele girava seu corpo, num giro completo de 360°, para absorver plenamente a grandiosidade do lugar. Era como se estivesse imerso em um conto, onde cada cenário era mais deslumbrante do que o outro. Os reflexos do sol, a delicadeza das flores e a grandiosidade do castelo se entrelaçavam, formando um quadro harmonioso e hipnotizante.

Do ponto elevado em que se encontrava, Kira podia avistar o majestoso rio Ha, serpenteando entre as montanhas distantes. Era como se o curso daquele rio narrasse a história da sua terra natal, carregando consigo memórias ancestrais desde o momento em que os grandes bem-aventurados chegaram àquelas terras pela primeira vez.

Gayami sabia que jamais esqueceria daquele momento de deslumbramento e beleza que Taiyo lhe proporcionara.

— Fazer algo assim será muito fácil com meu treinamento. Você não quer tentar? — Questionou Karumo para o garoto, que estava encantado com tudo o que conseguia enxergar.

— Você está me dizendo que tenho potencial para fazer uma técnica igual à sua? — Questionou Kira, incrédulo com o que tinha ouvido. O garoto já não duvidava que o velho tarado fosse um guardião; agora, seu questionamento era se Karumo estava dizendo a verdade.

— Se acreditar em mim, prometo que você poderá fazer coisas maiores do que eu já fiz — Respondeu Karumo, erguendo a mão para cumprimentar Kira e selar o acordo de que o garoto seria seu aprendiz. Desde aquele dia, naquela altura gigantesca, Gayami aceitou ser discípulo daquele velho tarado, passando a amá-lo como se fosse seu pai.

Kira não entendia por que estava relembrando aquela cena justamente naquele momento em que mal tinha forças para manter seu coração batendo dentro do corpo. Sua respiração o ajudava a manter a consciência ainda presente, e talvez as flores de cerejeira daquele encontro com Karumo, assim como as que estavam caindo hoje no campo de batalha, trouxessem boas memórias para ele.

A fala de Karumo naquele dia ecoava na mente de Kira, suas palavras reverberavam em seus pensamentos como uma promessa de grandes feitos e possibilidades inimagináveis. A respiração do jovem oscilava entre o primeiro e o segundo elemento, buscando reunir forças para se levantar. Seu corpo exaurido lutava para obedecer aos comandos de sua mente, que insistia em não se render.

— Eu ainda não posso perder aqui! — Pensou Kira com determinação, impulsionando-se para erguer-se do chão onde estava deitado de bruços. Uma poça de sangue se formava sob seu corpo, mas ele se recusava a fraquejar. Cada movimento era uma batalha interna entre sua mente e seu corpo exausto — Ainda não, ainda não!

Repetia ele, os braços esticados, os joelhos dobrados, buscando equilíbrio para ficar de pé. Com determinação implacável, congelava o próprio sangue para evitar que escorresse para fora de seu corpo, resistindo à dor intensa que aquele ato lhe causava.

Finalmente, Kira se erguia, sua coluna reta, seu corpo virado de costas para onde Bernardo se dirigiu. A prisão, o lugar sombrio onde aquela batalha chegava ao seu clímax, onde a sombra aprisionada aguardava sua libertação. Com a pouca energia que lhe restava, o garoto forjou uma lança de Tsuku a partir de seu sangue e dos vestígios de sua energia elemental. A lança, símbolo de sua determinação, servia como apoio para subir o monte da prisão.

No entanto, sem aviso, uma espada perfurou o estômago de Kira, vinda das suas costas. O golpe veio com força, e o agressor girou a lâmina dentro do corpo de Gayami, deixando claro seu desejo de matar o aprendiz de Karumo.

As forças de Kira se esvaíram de seus dedos, e ele soltou a lança que estava em sua mão. Caindo de joelhos no chão, depois tombou com o rosto voltado para o pé do morro. Seus olhos, cheios de lágrimas, voltaram-se para as flores de cerejeira mais uma vez, e ele sorriu. Assim a lança de Gayami se desfez em água e sangue, essa foi sua última ação antes do fôlego de vida deixar seu corpo para sempre.

— Você é muito bom lutando, garoto, — Uma voz disse em uma entonação meio chiada, como se a língua fosse presa, mas parecia apenas uma peculiaridade da pessoa que falava. O membro do corpo daquela pessoa dava voltas de empolgação, enquanto ela lambia todo o rosto do sangue que havia respingado nele — Mas se tem algo que você não terminou, quando se começa uma luta, você precisa finalizá-la.

— A minha missão não era matá-lo, era apenas libertar você, Yamata No Orochi — Disse Bernardo, caminhando na frente sem olhar para trás, onde estava o corpo caído e sem vida de Kira.

Orochi tinha uma pele extremamente branca, e as eras que passou trancafiado não ajudaram em nada na sua tonalidade, assemelhando-se à pele de uma cobra, coberta por escamas. Seus olhos tinham as pupilas finas, uma tonalidade alaranjada e piscavam tanto na horizontal quanto na vertical. Libertado das algemas que o impediam de usar energia elemental, ele havia acabado de enviar alguém para a morte. Seus cabelos eram lisos, de um preto muito escuro, e ele estava extremamente magro. O corte de cabelo mostrava que havia sido raspado em sua lateral esquerda.

— Você é muito bom usando a transmutação, mas pode chegar no mesmo nível que eu. Se você quiser, posso te ensinar muitas coisas — Orochi lambia o resto de sangue que estava na espada que havia matado Kira enquanto fazia a proposta para Pitta — Em troca, você pode me ajudar a roubar uma espada que pertence a um grande bem-aventurado, o que achas?

— Vou pensar no assunto, agora preciso levar você para outro mundo. Vamos! — Disse Bernardo, tentando cortar qualquer tipo de graça que aquela sombra poderia querer com ele. Sua missão estava concluída, mas ele sabia que essa atitude de Orochi ia respingar em alguém a quem ainda amava. No entanto, teria que torcer para seu irmão ser forte o suficiente para aguentar as consequências do que viria a partir dali.

FIM DO CAPÍTULO.

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