Que Haja Luz Brasileira

Autor(a): L. P. Reis


Volume 2

Capítulo 28: Pego de calças curtas.

Gael acordou naquela manhã de um jeito muito atípico. O dia começou estranho antes mesmo de abrir os olhos; a primeira coisa esquisita que presenciou foi o seu sonho.

Ele se viu em uma sala em que não podia ser visto. Havia um monte de pedras empilhadas como uma cama, e um corpo deitado sobre elas, mas Gael não conseguia ver quem era nem lembrava do rosto que apareceu em seu sonho. Por mais estranho que fosse, sua presença naquela sala era imperceptível.

No entanto, ele conseguia ver uma pessoa: era o mestre Karumo. Seus cabelos brancos estavam soltos na frente dos olhos, ocultando o rosto do garoto, pois Karumo estava de cabeça baixa. Ele estava passando uma espécie de pano no corpo da pessoa deitada nas pedras, como se estivesse tentando limpá-lo, e pelo resultado parecia que estava quase terminando.

Em certo momento, Karumo levantou a cabeça, e seus cabelos caíram para trás, revelando a cicatriz no olho direito. Seus olhos castanhos estavam marejados de lágrimas que escorriam por todo o seu rosto. Quando terminou de limpar o corpo da pessoa na pilha de pedras, Gael compreendeu que aquilo era uma espécie de pira funerária, e que a pessoa deitada ali estava morta. No entanto, ele não conseguia enxergar o rosto do falecido.

Karumo pegou um pequeno barrilzinho de madeira, que carregava com saquê, e despejou-o sobre o corpo. Em seguida, ele pegou uma tocha de fogo, provavelmente para cremar o corpo, mas antes de fazer isso, olhou fixamente para a pessoa deitada e disse:

— Descanse em paz, meu filho. Que você se torne um com Takaamahara a partir de hoje — Karumo disse com lágrimas escorrendo dos olhos. Em seguida, ele encostou a tocha no corpo encharcado de saquê, e o fogo se espalhou rapidamente pela pira. O guardião permaneceu em silêncio até que o fogo consumisse completamente a pilha de pedras. Porém, quando finalmente decidiu falar, suas palavras abalaram todo o grupo de sete:

— Se vocês não vierem me impedir, isso aqui vai virar uma carnificina. Eu irei atrás dele e de todos ligados a ele, se preciso for, até em Yomi estarei! — A ameaça de Karumo fez o coração de Gael disparar. Um vento forte soprou pela janela de seu quarto, fazendo-o se levantar da cama apressadamente para fechá-la.

Para aumentar a estranheza daquela manhã, enquanto assistia ao final da saga de MarineFord de One Piece, o pai de Luis ligou para Gael, perguntando se o amigo estava na casa do garoto. Confuso com a pergunta, Gael confirmou que Luis estava lá, mas tomando banho naquele momento.

Após a ligação, o celular de Gael começou a vibrar novamente. Era a mãe de Daniella ligando para perguntar se a garota estava na casa do garoto e se dormiria lá. Surpreendido, Gael respondeu que sim, e que Daniella estava tomando banho naquele instante. Incapaz de inventar outra desculpa, o garoto sentia-se completamente desorientado diante de tantos acontecimentos inesperados.

Assim como o pai de Luis, a mãe de Daniella também acreditou em Gael. Silva sabia que estava em uma enrascada danada, e as coisas só pioravam à medida que ele voltava da escola e nenhum de seus amigos aparecia na aula daquele dia. Ele pensava no que diria para justificar todas essas mentiras.

Gael não era um garoto dado a fazer coisas assim, e agora se via envolvido em uma complicação sem nem mesmo entender o motivo. Refletindo sobre o assunto, Silva percebeu que ambos os amigos tinham desaparecido na mesma noite e quase na mesma hora.

— Será que eles sumiram para se beijarem? — Pensou o garoto, tocando o queixo em contemplação. No entanto, logo balançou a cabeça negativamente, descartando a ideia de que seus dois melhores amigos estivessem tendo um relacionamento — Não, isso é impossível. Não tem como os dois estarem ficando sem nem me contarem nada.

Contudo, Gael sabia que precisava resolver essa situação o mais rápido possível. Ele teria que conversar com seu avô assim que chegasse em casa para buscar orientação, pois havia mentido para os pais de seus amigos.

Caminhando pelas ruas com uma velocidade mais lenta do que o habitual, Gael não tinha pressa em se meter em problemas com seu avô e acabar de castigo mais uma vez, especialmente quando não entendia sequer o motivo do que havia acontecido. Silva sentia-se frustrado, pois entrou nessa confusão para proteger seus amigos, mas nem mesmo sabia o que estava acontecendo, pois quando se tornou guardião, revelou a eles algo tão íntimo quanto a existência de deuses ou bem-aventurados. No entanto, agora eles pareciam estar agindo juntos sem lhe dizer nada.

O garoto abriu a porta de casa e adentrou a sala. Era uma casa comum, com a sala e a cozinha na parte debaixo e dois quartos na parte de cima, um para ele e outro para seu avô. No corredor que dava acesso aos quartos, havia uma porta para o sótão no teto. Como de costume, Gael gritou ao entrar:

— Cheguei!!!

— Estou aqui na cozinha filho, venha aqui — A voz rouca e firme do avô ressoou da cozinha ao lado, indicando onde o garoto deveria ir.

A sala da casa possuía uma pequena TV de 32", raramente ligada, pois o garoto passava a maior parte do tempo em seu quarto, e seu avô também tinha sua própria televisão no cômodo em que dormia. Havia um sofá em L de cor cinza, acompanhado por uma poltrona da mesma tonalidade. Quando tinha visitas, o Sr. Silva gostava de sentar ali e passar horas conversando, compartilhando histórias dos tempos em que a Sra. Silva trouxera muita felicidade àquela casa.

As paredes da sala eram pintadas em tons pastéis, combinando com o teto. No entanto, as cortinas vermelhas que cobriam as janelas chamavam mais atenção, pois eram escolhidas a dedo pela Sra. Silva.

Ao chegar na cozinha, Gael viu seu avô folheando um álbum de fotos. Era um álbum especial, cuja capa já trazia à mente do garoto as lembranças que continha dentro. Eram fotos da sua festa de 5 anos, e à medida que o garoto observava seu avô, tinha a sensação de que cada página virada era como um carinho nos preciosos fragmentos do tempo ali registrados.

Seu avô se chamava Sebastião Silva, conhecido na vizinhança como seu Silva, e para os amigos de Gael, era o Sr. Silva. Entretanto, para sua amada e finada esposa, Lourdes Silva, ele era carinhosamente chamado de Tião, um apelido que ela usava com afeto ao longo dos mais de 40 anos de casamento que compartilharam.

O avô de Gael gostava de sentar na mesa da cozinha, tomar seu café preto em um copo americano e ir comendo mortadela como um petisco. Era um homem magro, mas alto, medindo cerca de 1,90 de altura, com seus 60 e poucos anos. Seu cabelo era raspado, mas ainda havia fios brancos misturados aos poucos fios castanhos, e apesar da idade, o Sr. Silva mal mostrava sinais de calvície.

A pele do Sr. Silva era clara, e havia um boné sobre a mesa. Para ele, era falta de respeito comer com algum chapéu na cabeça. Quando Gael chegou na cozinha, ele foi até seu avô, pegou sua mão e a beijou, dizendo:

— A benção, avô.

— Deus te abençoe, filho — A voz do Sr. Silva voltou a firmar no coração de Gael o temor que teria que enfrentar mais uma vez por tentar ocultar algo dos seus amigos.

Seu avô continuou folheando as páginas do álbum enquanto bebia seu café e comia sua mortadela com um palito de dente. Sua perna estava cruzada, e assim o avô de Gael vivia seu dia de folga, relembrando os tempos que já haviam passado ao longo de sua vida. Enquanto isso, o garoto puxou uma cadeira na mesa para ouvir o que Sr. Silva tinha a dizer para ele, mas da boca do avô não saiu nada.

Gael então pegou a garrafa térmica azul, que sempre estava cheia de café fresco, e despejou a bebida em um copo que estava em cima da mesa. Observou seu avô folheando o álbum de aniversário de 5 anos por cerca de 5 minutos, enquanto ambos bebiam seus copos de café preto e comiam fatias de mortadela. O avô cruzava e descruzava a perna várias vezes, até que Gael decidiu interromper o ciclo e falar logo aquilo que estava entalado em sua garganta:

— Vô, preciso contar algo para você — Seu avô tirou os olhos do álbum e olhou para Gael, abrindo um sorriso enquanto dizia:

— Então somos dois, como sou mais velho, eu começo.

— Isso é injusto, vô. Fiquei 5 minutos, sentado aqui, e o senhor não disse nada, e ainda quer tomar a minha vez de falar — Gael brincou com seu velho, sabendo que deixaria seu avô falar antes dele.

— Menino, menino, não se esqueça que você acabou de sair de um castigo. Quer entrar em outro? — Sr. Silva provocou, já conhecendo a resposta, e aproveitou para colocar mais café em seu copo.

Preciso falar para você sobre seus pais.

O sorriso brincalhão de Gael se desfez imediatamente, o que ficou evidente em sua expressão.

— Imaginei que você não gostaria de tocar nesse assunto de novo, mas hoje não tem como escapar — Disse Sr. Silva com um tom sério na voz, mostrando que não aceitaria que Gael não ouvisse sua história.

— Mas para que eu preciso saber sobre eles? Você e a vovó sempre foram meus pais, como posso me importar com isso agora? — Questionou Gael, encontrando dificuldades em compreender a importância disso em sua mente.

Durante toda sua infância, Gael pensava sobre seus pais, mas nunca havia tido coragem de perguntar algo para seus avós a respeito, mesmo após tanto tempo, ainda não os conhecera e por isso sabia que eles não se preocupavam em lhe conhecer. Nessa altura do campeonato, havia entendido que, se eles não o procuraram até então, ele também não se preocuparia mais, afinal, sua família sempre foi seu avô, sua avó e ele.

— Sinceramente, eu não tenho essa resposta — Respondeu o avô de Gael, transmitindo a seriedade do assunto — Mas o que é claro é que eu não quero levar esse segredo comigo para a minha cova.

— Credo, vô, o senhor ainda vai viver muito — Rebateu Gael, desejando afastar as afirmações sobre a morte de seu avô — O senhor precisa continuar vivo por muito tempo para ver meus filhos brincando com o senhor e correndo por essa casa.

— Mas, para você ter filhos, primeiro precisa de uma esposa, e você nem namorada tem ainda — Disse o avô, brincando com Gael e bagunçando o cabelo ruivo do garoto.

— Podia ter me batido com a mão que teria doído menos —Respondeu o garoto levando os dois a rirem bastante.

Os dois se entreolharam de forma afetuosa, e nesse momento, a Sra. Silva normalmente os chamaria a atenção por estarem bagunçando demais a cozinha, mas dessa vez, o chamado não veio. Ambos sentiram uma pontada de saudade no coração, mas Gael quebrou o clima perguntando:

— Acho que hoje essa história não escapa, certo?

— Não, filho.

Respondeu o avô, olhando para Gael de maneira séria.

— Vai demorar muito essa história?

— Um pouco. Reserve pelo menos uma hora de sua grande agenda — Disse o avô de Gael, fazendo graça com a falta de atividades do garoto depois que voltava da escola.

— Então, vou ao banheiro para não ter que interromper a história do senhor — Gael levantou-se da mesa e dirigiu-se ao banheiro, que ficava entre a sala e a cozinha. Entrou, abriu a porta e a fechou, trancando-a pelo lado de dentro.

O garoto começou o processo de baixar sua bermuda para fazer xixi, ficando apenas com a cueca à mostra, quando algo viscoso e escuro começou a subir por suas pernas do nada. Gael percebeu o que se tratava, mas não deu tempo para puxar suas roupas de volta para o lugar. A massa escura envolveu Silva mais uma vez da mesma forma que havia feito na frente de Daniella e Luis em seu quarto, sugando-o em direção ao chão.

E então, vindo do teto para o chão novamente, lá estava Gael em uma casa muito engraçada que não tinha teto e quase não tinha nada.

Mais uma vez, Gael havia caído diretamente do teto para o chão, como se aquele lugar ficasse logo abaixo do banheiro de sua casa. A reação mais rápida que Silva teve foi puxar suas calças após atingir o chão.

Quando Gael olhou em direção à mesa, estranhou as pessoas que estavam sentadas nela. Não havia nenhum guardião presente, apenas seus aprendizes ocupavam seus lugares à mesa, e Silva reconheceu o olhar de todos. Aqueles seres eram os que haviam tentado lhe atacar. Lucas estava sentado na mesa, mas Kira não estava presente, e o lugar onde Karumo costumava sentar, quando visitou aquela sala pela primeira vez, estava vazio.

Gael terminou de arrumar suas calças no meio daquele embaraço. Ele agradecia a sei lá quem por não haver nenhuma garota na sala.

— Eu sei que os humanos vivem pouco e que precisam se reproduzir em um estado mais rápido do que as demais raças, mas você não acha que 15 anos, para padrões humanos, não é muito cedo, Gael? — Quem fez essa pergunta que quase fez o guardião mais novo enfiar a cabeça no chão era um garoto que tinha o cabelo todo preto, mas com algumas mechas brancas na cabeça. Era ele quem tinha vindo com um raio para cima de Silva quando o mesmo despertou seu poder de guardião.

— Cala a boca, Dave — Todos sentados na mesa disseram em uníssono.

Dave achou ruim a chamada de atenção que havia sofrido dos aprendizes. Estando sentado de forma mais informal, arrumou sua postura para se corrigir perante os demais. Naquele momento, não sabia quem estava mais sem graça, ele mesmo ou Silva.

Gael ficou vermelho, como a cor do seu cabelo, mas, mesmo assim, arrumou sua compostura e se aproximou da mesa. Silva percebeu que Lucas estava com um leve sorriso no rosto, mas esse sorriso discreto demonstrava que a situação era séria demais.

— Aconteceu alguma coisa para vocês me chamarem aqui? Onde estão os guardiões? — Questionou o garoto, querendo saber o motivo de ter sido convocado para aquela sala estranha.

— Tome seu lugar na mesa, Gael. Daniel vai explicar o motivo de você ter sido convocado aqui — Lucas dirigiu a palavra para o garoto enquanto apontava a cadeira na ponta da mesa, na qual ele deveria se sentar.

A cadeira que pertencia a Rick e que agora estava sob seus cuidados tinha a figura de um leão entalhada nela, a imagem perfeita de Emunn, que ele tinha cravado em sua mente. Mas essa não seria a única imagem cravada em seus pensamentos, pois as próximas palavras de Daniel viriam como um soco em seu estômago.

— Te convocamos aqui, Gael, porque Kira está morto.



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