Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 9: Aprovação à Ousadia

OLPHEIA

 

Sentado numa cadeira, Raygan estava entretido em contar as uvas no cacho, seus dedos ágeis e com precisão sobre a bandeja. Ao seu redor, a mesa transbordava uma variedade opulenta das mais requintadas sobremesas do império. E as nobres senhoras, em gesto de respeito à rainha, reverenciáram-na enquanto desfrutavam das iguarias dispostas diante delas.

― Sete…, oito…, nove… ― Ele indicava, seu corpo relaxado, alheio a qualquer formalidade ao som das vozes irritantes das mulheres ao redor de Saône. 

Como matriarcas de suas casas, elas desdobravam os leques com gestos suaves junto de sorrisos que, aos olhos perspicazes de Raygan, se revelavamcomo meras máscaras que ocultavam suas verdadeiras intenções. 

A aprovação despertava inveja, porém a ousadia sem remorso era, sem sombra de dúvida, um sinal de atrevimento. 

― Argh! ― Ele grunhiu, revirando os olhos, mas seu interesse foi logo despertado pela concentração de Thayrin nas jovens bem acompanhadas por seus parceiros.

Ela apertou as mãos, ponderando a desanimadora possibilidade de que, entre todos os convidados, nenhum cavalheiro teria a gentileza de convidá-la para dançar.

Havia duas figuras poderosas. Um deles era o imperador, atento à movimentação dos rapazes que demonstravam interesse nela. O outro, embora não tivesse tamanho, conseguia ameaçar todos que tentasse roubar sua irmã dele.

Me concederia a honra de uma dança, princesa? ― ela pensou antes de Raygan torcer o nariz com desdém quando o homem parou diante dela.

Seu traje ― impecável ― se ajustava ao seu corpo, com o lenço elegantemente amarrado em torno de seu pescoço. As sardas adornavam as maçãs de seu rosto, e sua franja cuidadosamente partida para o lado.

Tantos cavalheiros, mas nenhum destes ousou se aproximar, somente ele. 

― Alteza. ― Curvou a cabeça. 

Elard avaliou cada detalhe de sua postura e expressão de Henryk. Embora confiasse nele como um conhecido e descendente do seu amigo de longa data, havia uma sombra de preocupação em seus olhos ao considerar que ele poderia causar transtorno à sua filha. 

A princesa, notando a inspeção de seu pai, conteve um suspiro e desviou o olhar do rapaz. Thayrin sentia o peso dos olhos de Henryk sobre ela ― uma sensação desconfortável e inadequada, especialmente em relação ao precioso colar radiante em seu pescoço ao recordar do seu primeiro encontro com ele.

― Parece que está sozinha, princesa. ― Ele sorriu. Sua voz acariciava os ouvidos como um sussurro afetuoso, mas continha uma borda áspera. 

Filho da p ― Thayrin interrompeu seu pensamento ao vê-lo erguer a mão.

Porém, nenhum gesto ela fez, ignorando-o por completo.

Essa vaca… ― Uma leve contração se manifestou no maxilar de Henryk. Ele resistia à ideia de que Thayrin era uma jovem ingênua; que não deveria ser manipulada aos propósitos do duque.

Ao presenciá-la ignorar seu convite, Henryk olhou para o trono. No entanto, mesmo com a confirmação silenciosa do imperador, o jovem compreendia que precisava mais do que sua permissão. Ele necessitava persuadir aquele que seria um obstáculo para seus planos.

― Vossa Alteza, príncipe Raygan. É uma grande satisfação tê-lo de volta ao palácio ― saudou Henryk, enquanto Raygan, desconfiado, franziu o cenho em silêncio. 

E Henryk prosseguiu: 

― Já se passou algum tempo desde nossa última vez juntos, mas… ― Ele percebeu a expressão desdenhosa de Thayrin. ― Talvez Vossa Alteza se recorde de Etyllia.

― O quê? ― Raygan abriu os olhos. A postura desleixada se dissipou. ― O que você sabe sobre Etyllia? 

― É uma antiga cidade em ruínas. Um lugar devastado pela Guerra de Redron. Enquanto estava na biblioteca, deparei-me com um livro envelhecido, entre os tantos esquecidos, escrito por um historiador que explorou as terras de Etyll. Pensei que Vossa Alteza ficaria encantado em lê-lo, não? 

― Está brincando! Vasculhei todo o lugar! ― Ele mal conseguia conter a empolgação. 

― Encontra-se na terceira fileira, estante de número sete no segundo andar. ― Sorriu. ― Espero que desfrute da leitura.

Os olhos de Raygan cintilavam como as joias de sua mãe. A incredulidade ainda estava estampada em seu rosto, mas o sorriso foi a principal ação que ele batalhou para esconder. Saône não acreditava na expressão do filho, e Elard, do trono, não parecia admirado. 

Assim, o príncipe se inclinou diante de sua família e partiu depressa para a biblioteca, deixando apenas Thayrin, com olhos desconfiados, encarar o homem que conseguira manipular seu irmão.

― Bem… ― Henryk dirigiu sua atenção para a princesa de semblante taciturno. ― Esta é a última dança, Alteza. Seria uma honra. ― Estendeu a mão novamente.

― Que sua habilidade na dança seja tão boa quanto sua capacidade de persuadir meu irmão ― ela sussurrou as palavras para que apenas ele pudesse ouvir.

Calos em seus dedos. Ásperos ao toque frequente com o papel, porém quentes ao envolver a mão dela.

― Bobagem, disse a verdade ― Ele a levou até o centro do salão. Todos estavam concentrados neles.  ― Que seus passos sejam tão delicados quanto sua forma de julgar os outros, Alteza.

Agora era a vez da princesa Thayrin ser conduzida para a pista de dança.

― Sempre sai bobagens de sua boca? Senhor… Como devo chamá-lo?  ― ela perguntou. 

― Não se lembra de mim?

― Eu deveria? 

Em poucos segundos, os músicos executaram uma serena melodia. Henryk acompanhou Thayrin com aptidão, deslizando sua mão suavemente pela dela com uma elegância discreta. Não houve gestos audaciosos. Sua mão direita manteve uma distância respeitosa da cintura dela, enquanto a esquerda se dedicou a guiá-la na valsa com muita graça.

― Acredito que não. ― Ele sorriu. ― Me chamo Henryk, Alteza. Mais conhecido como sarnento, dependendo se esses boatos são frequentes em seus aposentos. 

― Parece que meu pai intercedeu por um salvador, talvez um bobo da corte que tivesse a coragem de acompanhar sua filha para uma simples dança.

― Sinto lhe dizer, mas nem todos os cavalheiros são ousados de chamar a filha do imperador para uma valsa.

― E o que lhe fez ter tal ousadia, senhor Henryk?

Henryk segurou a mão de Thayrin com firmeza, seus olhos encontrando os dela. Sem uma palavra, ele a conduziu em um giro com uma destreza que revelava anos de prática. Ao redor deles, os membros da corte observavam com admiração, e entre eles, Ahoneu se movia pela fileira de curiosos.

― Suponho que eu tenha sido intimidado pelo seu olhar. Tenho uma tendência a ser influenciado por desafios, especialmente quando percebo uma ameaça iminente.

Um olhar prolongado era o que a corte buscava para espalhar rumores ―  e essa era a função do duque: impedir qualquer comentário que ameaçasse seus planos. 

― Ah! Me convidar é uma tarefa muito difícil para o senhor, estou enganada? 

Os passos de Thayrin, de repente, se tornaram pesados; inconstante em sua performance, ao contrário da elegância de Henryk, determinado à tomar o controle.

― Eu… não disse isso. 

― Por que cedeu, senhor Henryk? 

Henryk contraiu as sobrancelhas, um tanto desacreditado. ― Por que pressupõe que eu a convidaria por capricho? 

Thayrin, contudo, permaneceu calada. De tantos homens reunidos, nenhum sequer teve a coragem de convidá-la. Ela não deixava de pensar na quantidade de vezes que Dhália recebeu um convite. Um, dois, mais de cinco homens diferentes convidando-a enquanto a princesa do império, isolada, desesperada para dançar.

― De todos os homens… tinha que ser você? ― Ela desviou o rosto, seus olhos concentrados na plateia ao mesmo tempo que Henryk, surpreendido com sua falta de bom senso, optou por continuar em silêncio.

A música se aproximava à extremidade das notas mais sublimes quando Henryk notou que os movimentos de Thayrin não estavam tão livres quanto antes.

Ele precisava ganhar a confiança dela. 

― Este colar… ― Ele imaginou que ela não conseguiria acompanhá-lo na dança ao enxergar sua hesitação. Diante disso, com delicadeza, ele segurou a cintura dela. ―,  se é tão importante, deveria exibi-lo à corte de cabeça erguida.

Num instante, o salão foi tomado pela luminosidade dos lustres. O aperto de Henryk era firme, e todos os presentes foram absorvidos pelo brilho que os envolvia . Como se nada mais pudesse desafiá-los.  Henryk, no franzir de sua testa, encarava o olhar profundo de Thayrin. Ela fazia questão de lembrá-lo de sua insatisfação em tê-lo como parceiro; o homem que arruinou a sua festa. 

 

 

No fim, Ahoneu manteve os olhos nos dois. A expressão pensativa, suas íris se tornaram opacas, atentas a cada movimento. Saône, descrente pela maneira como dançaram, olhou secretamente para Elard, no entanto, ele já estavam fixado nela, o fôlego dela sendo sugado pela expressão do marido.

Ao término da música, Henryk escoltou a princesa até o assento. Ele inclinou a cabeça, sua prudência o orientando a dirigir seu olhar exclusivamente para o imperador. Todavia, Thayrin estudou a postura convincente do jovem.

Será que me chamou para dançar porque se sentiu especial? Ou foi movido por compaixão? ― A raiva pulsava dentro de seu corpo.

Seja qual fosse o motivo, Raygan, distante do salão, se aventurava ao subir a escada para alcançar o livro nas grandiosas estantes da biblioteca. Quando teve o item em mãos, ele se dirigiu a uma sala aberta do palácio onde encontrou uma garota e um rapaz próximos de sua idade.

― Você viu como está a aparência da princesa? Ela chama aquilo de penteado? ― A menina riu.

Raygan foi atraído pelo comentário.

― Acalme-se, prima. Alguém pode nos ouvir! ― alertou o garoto, cauteloso.

― Que ouçam! Não suportaria vê-la por um segundo sequer. Quem ela pensa que é?

― A princesa? Veja bem, ela vai mandar costurar sua boca. 

― A maneira como ela olhava para a minha irmã… Não é à toa que a nossa tia deixou de cuidar dela. 

Raygan, recostado com o corpo na parede, engoliu a saliva. Seus olhos, antes iluminados pela vontade de degustar mais uma aventura literária, foram cegados pelo calor que subia à cabeça, a sensação consumindo-o de dentro para fora. Ele atravessou a porta e, visível aos dois, interferiu, dizendo:

― Thayrin tem seus defeitos ― Ele segurava firmemente o livro de capa dura. ―, mas nenhum deles foi ter nascido com essa sua cara de bunda mal lavada.


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