Volume 1
Capítulo 8: Nortunália
ACAMPAMENTO: LORIST
Às proximidades de uma barraca, brasas de uma fogueira sussurravam em crepitações, harmonizadas ao assobio da coruja vigilante e ao som dos galhos dançantes no vento. Daemis observava a chama consumir a lenha lentamente, o calor aquecendo suas mãos.
― Recruta Daemis. ― O general se pronunciou com altivez.
― Sim, senhor. ― Daemis se ergueu prontamente do toco de madeira onde repousava, preparado para servir.
Halcan, o líder que enfrentou inúmeras batalhas, questionou:
― Quantos anos tens?
― Quatorze, senhor.
O velho tomou um banco de madeira ao lado de três barris de suprimento e uma faca retirada do bolso. ― O que te trouxe aqui? Aprontaste algo?
― Nada de errado, senhor. Me voluntariei.
Halcan deslizou a lâmina na casca de uma mexerica. ― Por qual razão?
― Meu pai é aleijado nas pernas; minha mãe trabalha como empregada e tenho um irmão mais novo para cuidar. O salário de um veterano é o que eu almejo.
Ele degustou um gomo da fruta. ― Com qual arma tens afinidade?
― A-Arma…? ― balbuciou. ― Ainda não tive a oportunidade de treinar com alguma, senhor.
― Vens a uma guerra e não sabes qual arma usar?
Daemis permaneceu calado.
De repente, um som agudo rompeu a quietude da noite. O chamado estridente, uma melodia de ave, ressoou tão alto que ecoou por todo o acampamento. A criatura, oculta pela escuridão, planou sobre a área. Ao ouvirem, os homens que repousavam em suas barracas foram atraídos para fora.
― É a Nortunália! ― exclamou um dos recrutas, correndo para alertar os guerreiros reunidos à mesa para o jantar ― a sopa quente, preparada pelas sacerdotisas, os aliviava do frio. ― Deus não terá piedade de nós!
― Nortunália? ― indagou um homem.
― É uma lenda. Esse bastardo deve ser do interior ― murmurou o outro, levando a colher à boca. ― Os camponeses acreditam que Deus criou uma ave do clamor e espírito vingativo dos inocentes que morreram nas batalhas. A Nortunália aparece apenas para os pecadores, assassinos; para aqueles destinados à morte, besteiras como essa.
O general direcionou seu olhar para o céu mergulhado na escuridão. Os escassos pontos luminosos não eram suficientes para discernir a origem do som.
As estrelas estavam relutantes em revelar seu brilho, pois a guerra havia roubado o esplendor de sua luz.
― Já ouviste falar na lenda da Nortunália? ― Halcan fitou Daemis. ― A criatura celestial que consome a alma dos transgressores. Penas afiadas como lâminas; garras capazes de dilacerar suas presas. Seu canto atrai a morte, e seus olhos espelham a fúria dos corações puros ceifados pela guerra. ― Sorriu.
A ave, segundo a lenda, era colossal. Suas asas velavam o brilho da lua enquanto planava pelo céu. E Daemis encarou brevemente seu superior. Seus olhos redondos e parcialmente amendoados, de um verde penetrante, refletiam as chamas com desconfiança.
― Sim, senhor.
― Acreditas em tal lenda? Como pode, neste mundo tão pequeno, haver uma criatura apta a espalhar caos e destruição?
A lenha crepitava. Ouviram-se os risos dos homens à mesa. A sopa quente, bebida quando necessário e os nomes das mulheres de santa fé nas bocas dos soldados.
― Aves não matam ― afirmou Daemis. ― Elas se alimentam, caçam quando estão com fome. Elas protegem seu ninho e são leais.
― Hum… ― Halcan riu, admirado pela convicção dele. ― Acreditas fielmente nisso? ― Ele lançou a casca da fruta ao fogo.
― Talvez. ― Olhou para ele outra vez.
― De onde és, rapaz? ― perguntou Halcan.
Daemis sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ele falava com uma voz áspera como se estivesse rouco de gritar ― por comandar seu exército.
― Jighal ― respondeu Daemis.
Halcan fixou o olhar nos olhos do jovem recruta, o sorriso se desfazendo de seu rosto.
Jighal, a terra consumida pelas chamas e devastada pelo fogo da guerra, agora jazia destruída pelos mesmos homens com os quais ele lutava.
Antigos inimigos, agora aliados.
Mais uma vez, a ave entoou seu cântico. Ela pousou num tronco à beira do lago próximo onde Halcan e Daemis permaneciam. Sua forma se fundia à escuridão das folhas da floresta, mas seus olhos negros brilhavam como o reflexo da lua na água, acariciados pela suave brisa noturna.
O velho experiente, mas forte e de grande estatura, pôs-se de pé diante de Daemis.
― Um treinamento está agendado para os recrutas durante a vigência da trégua. Partiremos daqui a três dias. Três meses é o tempo oferecido antes que Balmont anuncie seu retorno. Esteja preparado, garoto. ― Pegou no ombro dele.
Daemis concordou, seu superior desaparecendo na escuridão onde as tochas não podiam alcançar. Ele examinou os arredores, confiante de que estava sozinho, e retirando um pedaço de carne envolto, apanhou um pano da bolsa de couro amarrada à sua cintura.
Atento para qualquer movimentação suspeita, Daemis juntou o indicador e o polegar na boca, produzindo um assobio prolongado. Dentre os galhos, surgiu uma ave de porte pequeno, um filhote que pousou em seu antebraço.
― Daqui em diante, é melhor você manter distância. ― Ele ofereceu o alimento, e a ave o devorou no mesmo instante. ― Nortunália soa desagradável, não acha?
O animal, cujas penas marrons ― de leves tons de marrom e branco ― que ainda se desenvolviam, piscou os olhos e o encarou.
― Pois é, eu também prefiro Maxine. ― Daemis acariciou as penas atrás de sua cabeça, sorrindo ao vê-la saudável. ― Vá! ― Estendeu o braço para permitir que a ave alçasse voo a uma distância segura para sua própria proteção.
Do lado de fora do salão, Thayrin aguardava com expectativa o momento em que seu nome seria proclamado pelo arauto.
Thayrin Rosellin Ehnov, Princesa Thayrin...
Ela esfregava as mãos quando viu outra jovem se apresentar. Os olhos um pouco arregalados e nervosa, Thayrin não conseguia parar de brincar com os anéis em seus dedos, pois suas mãos suavam sem parar.
Raygan analisava roupas, acessórios, posturas e até mesmo as trocas de sussurros da corte quando uma das garotas se desequilibrou ao se curvar diante da rainha de pescoço rígido e a face indecifrável. Indiferente ao ocorrido, ele arfou. Nada no espaço despertava seu interesse, até notar, de relance, que Dhália não vacilou em manter o contato visual.
O que ela quer? ― refletiu, franzindo a testa.
Soava com uma ameaça à sua falta de etiqueta, mas sua concentração foi interrompida pela voz alta do arauto que ecoava, anunciando:
― Com reverência, permitam-me apresentar a entrada da joia mais preciosa deste reino: nossa estimada princesa, Thayrin Rosellin Ehnov!
As portas se abriram, e Thayrin foi brevemente cegada pelo brilho dos lustres. Seu corpo percebeu a ameaça dos olhares, contudo, sua pose permanecia impecável. Cabeça e postura retas. Passos suaves. Sem pressa.
Assim, ela prosseguiu. Estava perfeita, indubitavelmente a joia mais bela da noite. Raygan era um dos muitos homens hipnotizados por sua beleza. Estava com a boca entreaberta e os olhos bem abertos, orgulhoso ao ver a irmã deslumbrante que chegava a ser enjoativa.
Aos pés da escadaria, curvou a cabeça, e Saône sorriu para ela. Thayrin, como todas as meninas reunidas, foram recebidas com a aprovação da rainha.
Elard manteve os olhos em sua esposa. Em consideração ao favor dele, Saône assentiu. E dado o término da cerimônia, o rei elevou a taça e proclamou, dizendo:
― Divirtam-se.
A música preenchia o ambiente. Os convidados se uniam em pares, dançando as coreografias mais refinadas. Os músicos, cativados pelo entusiasmo da realeza, tocaram as melodias com paixão e harmonia. Cada nota entoava uma emoção vinda de seus corações pulsantes, movidos pela alegria da nobreza.
Passos coordenados, alegria e a animação dominou o salão. As belas debutantes, alinhadas em fileiras, aguardavam ansiosamente o momento em que seriam convidadas para a tão esperada valsa.
Uma a uma, foram chamadas por jovens mais atraentes que outros, todavia, nem todas tiveram a sorte de serem convidadas por um belo rapaz de sua idade. Os senhores não perderam a oportunidade de arranjar uma mulher submissa, que seguisse suas ordens e lhes proporcionasse herdeiros.
Thayrin se acomodou ao lado do irmão. Raygan, retraído no assento, evitava chamar a atenção dos presentes. Em um instante fugaz, ela percebeu quando ele respirou fundo, e por um segundo, Elard também testemunhou o gesto do filho, apesar de desviar o olhar rapidamente.
No centro do salão, a corte se reuniu para festejar. Os convidados amontoados dificultavam a passagem de Henryk que se movia habilmente, contudo, ele interrompeu seu percurso para contemplar a princesa que conversava com sua mãe, seu sorriso visível mesmo por trás da mão delicadamente erguida.
― Quanto menos fazê-la se importar, mais disposta estará em ajudar ― afirmou Ahoneu.
― Ela é apenas uma garota.
― Ela é uma mulher e a futura rainha de uma nação. Mas para isso, preciso da sua ajuda. ― Ele pôs a mão no ombro dele.
― O que está planejando?
― Digamos que a princesa compartilha uma personalidade familiar. Os dois herdaram a rebeldia e o orgulho do pai. Será um desafio convencê-la a se casar.
― E que mulher ficaria feliz em se casar com um homem envelhecido?
― É com o filho dele.
― Então, com um homem de pau enrugado?
― Cof, cof… ― Ahoneu tossiu ― a resposta foi inesperada até para o vinho que um serviçal lhe trouxera.
― Além disso ― Henryk continuou. ―, ele se envolve com cinco prostitutas em uma única noite e, no dia seguinte, é abençoado pelo arcebispo como se fosse santo.
― Nossa, você odeia realmente o Brycen. O que aquele sujeito fez a você? ― Ahoneu nem sequer imaginava que ele poderia proferir tais palavras.
― Essa não é a questão! Você não...
O tom das palavras de Henryk atraiu a atenção de um grupo próximo a eles.
― Sim, eu posso e o farei ― declarou, sua voz firme e arrogante num murmúrio. ― Ou será Balmont a nos arruinar!
― Há tantos reinos disponíveis… É desperdício unir nossos recursos aos de Leswen.
― Leswen possui o armamento necessário. O armamento que eu necessito para destruir Balmont. ― Moveu o cabelo para trás. ― Você se aproximará dela e a convencerá de que sua responsabilidade quanto princesa supera qualquer decisão política.
― E se eu não conseguir convencê-la? Devo forçá-la a se casar? A obrigarei a se deitar com um homem que a tratará como mais uma em seu harém?
Ahoneu o encarou. ― Por que está tão incomodado com isso?
― Vejo o sofrimento de minha mãe por sua causa ― expressou, franzindo o cenho com desdém.
E o duque manteve o sorriso esnobe no rosto. ― Sua Alteza está esperando por você ― proferiu ao se retirar.
Henryk respirou profundamente, aceitando ― mesmo que relutante ― que seu pai não desistiria.
― Por que está escondendo o sorriso? ― pensou Henryk.
Parecia uma avalanche de pessoas, todas o impedindo de enxergá-la com clareza. Ele desejava observá-la mais uma vez.
Era por Olpheia. Por seu lar.
― Maldição! ― bufou, desaparecendo em meio à festa.
Ahoneu: Que diabos o Brycen fez?