Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 6: Diamante Rosa

OLPHEIA

 

O relógio de bolso do duque marcava seis e quarenta e cinco da noite. 

Ahoneu percorreu os corredores do palácio iluminado pelas lamparinas. Os servos, agitados pelo evento, corriam em todas as direções, motivados pelas ordens do mordomo que os incentivava com sua alta voz. A festa prometia um esplêndido banquete. A mesa extensa, repleta de inúmeras delícias refinadas, parecia não ter fim.

Ao explorar as decorações  ― enormes cortinas azuis como a cor do brasão real ―, avistou um jovem que conversava com três rapazes trajados de longas túnicas marrons. 

― Henryk ― ele convocou.

 O jovem se despediu dos amigos e se dirigiu ao duque, cumprimentando-o: 

― Oi, pai.

Intrigado com a presença prolongada do filho no palácio, falou: 

― Pensei que estivesse em casa. 

― A reunião ainda não terminou. Ficarei até o final da festa. E você, por que está aqui? ― Ele jogou a franja do cabelo curto, semelhante ao do pai, para trás. ― Minha mãe o espera no ducado.

Ahoneu pegou uma taça de vinho de um servo. Ele tomou um gole e seus olhos permaneciam fixos no chão, sua mente presa em algum pensamento. ― Preciso da sua ajuda para ir até Leswen.

― Leswen? ― perguntou, arqueando a testa.

O duque esvaziou a taça num único gole, entregando-a a Henryk ao dizer:

― Aliança.

― Está brincando ― articulou Henryk, junto de um sorriso incrédulo, acompanhando seu pai para fora do palácio.

― Nunca estive tão lúcido.

― Isso é estupidez! Um reino libertino…, pessoas que mal se distinguem de animais ― expressou seu nojo. ― Por que se aliar a quem não conhece a diferença entre a mão direita e à esquerda?

Ahoneu chamou o cocheiro num assobio agudo. ― Você também não sabia quando tinha dez anos.

― Pai, eu não compreendo! ― murmurou o jovem, confuso.

Próximo ao rosto do filho, Ahoneu sussurrou: 

― Entenda, Olpheia está prestes a ser tomada por Balmont. Elard está arruinado e Saône virou motivo de piadas nos últimos dias. Uma rainha consorte sem relação com seu marido há mais de dez anos… ― Fixou o olhar nele. ― Isso é um problema. Precisamos de um reino rico e, bem, Leswen é uma ótima opção. 

― Não é culpa dela ― defendeu, seus olhos atentos na carruagem estacionada e o cavalo relinchando ao comando do cocheiro. 

― Diga isso aos que comem migalhas do chão. Eles querem herdeiros e nós também. Leion e Thayrin animaram o reino. Precisamos de festas! Enquanto Elard estiver de luto, teremos uma princesa inútil e um moleque arrogante para assumir o lugar dele. 

― Eu não… ― Henryk não conseguia deduzir as intenções de seu pai.

― Mantenha-os distraídos à medida que homens morrem no campo de batalha ― apontou Ahoneu. ― Eles precisam saber que há um império que se importa com seu povo. Precisamos da antiga Olpheia. 

― Aonde pretende chegar com tal ilusão? ― Henryk questionou, divergente à ideia, mas sem outra opção senão ajudar.

― Existem três coisas que fazem o povo se alegrar: dinheiro, bebês e casamentos. ― Ele subiu o primeiro degrau da carruagem. ― Uma princesa irá debutar hoje. ―  Sorriu. ― Esteja preparado. ― Ahoneu bateu no teto da carruagem.

Henryk viu a carruagem se afastar, a taça firme em sua mão. Ele permaneceu imóvel; seu rosto refletindo a incerteza num profundo suspiro ao bservava a carruagem partir para fora dos grandes portões de ferro.

Nos aposentos do príncipe, Raygan encarava duas criadas despejando a água dos jarros em suas mãos na banheira. Ele estava sentado na beira da cama, sua expressão emanava um desejo sutil para que as elas se retirassem rapidamente. 

― O banho está pronto, Alteza. 

― Saiam ― proferiu com rispidez. 

As duas moças obedeceram ao comando, saindo em reverência. Então, Raygan desfez o nó do lenço em seu pescoço, despiu-se e testou a temperatura da água com a mão semi-submersa na banheira. Mergulhado até a cintura, fixou os olhos em seu rosto no reflexo da água. As pontas onduladas de seu cabelo se moviam enquanto esfregava os braços com um pano fino.

O brilho das lamparinas realçava as olheiras e os olhos caídos, cansados como de costume. No entanto, ao se deparar com seu próprio rosto, uma pergunta surgiu em sua mente. 

E se eu fosse como ele? ― Imerso no pensamento, o príncipe franziu o cenho, um tanto frustrado. ― Sou melhor que ele ― afirmou para si.

― Melhor que quem? ― indagou Thayrin, sentada no sofá.

― AH! ― O corpo de Raygan deu um pequeno salto. ― Que droga! Há quanto tempo está aí? ― Ele cobriu o peito com as mãos ―  e ele não tinha muito o que esconder; seus braços magros, típicos de um príncipe que não manuseava uma espada há um tempo.

― Deve fazer uns dois minutos. Você parecia hipnotizado com a água que nem me ouviu chamá-lo. 

Thayrin estava com os cabelos trançados e trajada em tons suaves de rosa, o mesmo vestido que a madame Marie-Charlotte embalou horas mais cedo. As mangas eram longas e justas até os pulsos, e o caimento do vestido era como uma saia fina e delicada. Ela estava sentada com um anel em cada mão e brincos de pérola que combinavam com seus olhos-acinzentados.

Apesar do susto, Raygan ficou encantado com a beleza da irmã, como se fosse a primeira vez em que a viu tão bem arrumada. 

― Está bonita ― admitiu, desviando o olhar. 

― Obrigada. ― Thayrin apoiou o braço no encosto do sofá num sorriso, todavia, por pouco tempo, pois um leve traço de preocupação marcou sua expressão.

― Você não foi ao coreto. 

― Houve uma reunião dos noviços na biblioteca. Alguns membros do Conselho também estavam lá. ― Ele evitou olhar para ela.

― Tudo bem. Comi o sanduíche por você. 

Os olhos de Raygan se fixaram na água novamente, e Thayrin continuou:

― Estou nervosa.

― Por quê? ― ele perguntou,  molhando o cabelo com o auxílio da jarra deixada pelas servas.

― Verei meninas da minha idade debutar antes de mim. Todas lindas e bem acompanhadas. E… se eu tropeçar? Ou ouvir comentários sobre meu vestido? São pensamentos que passam pela minha cabeça ― exprimiu junto de um leve desconforto. 

― Não deveria se importar com isso. 

― Fácil falar. Tenho certeza que você recebeu muitos elogios no convento.

Sem perceber o impacto de suas palavras, Thayrin viu a face de Raygan mudar. Olhos cerrados, contraindo os lábios.

― Você não tem ideia do que foi viver naquele lugar. ― Raiva soava em sua voz. ― Dizem ser um lugar sagrado; estava mais para o próprio inferno.

― D-Desculpa. Esqueci que você detesta falar disso.

― Que seja. Agora, saia, preciso me vestir.

Thayrin direcionou seus olhos para a porta enquanto seu irmão se arrumava. ― Desculpe ― repetiu, arrependida.

 Raygan acabava de vestir as calças, quando disse:

― Deveria se importar consigo mesma e não com os outros. ― Ele ofereceu a camisa para que ela o ajudasse a se vestir. ― Não há nada mais estúpido do que pensar nos outros quando todos devem pensar apenas em você.

Thayrin se levantou, e os irmãos pararam frente ao espelho.

― É bom ter empatia, Raygan. ― Ela apertou a gola da camisa dele e, logo em seguida, o puxou para amarrar o lenço em seu pescoço.

― E foi bom para você se importar? 

Ela o observava pelo espelho em silêncio.

― Você dedicou sua vida para agradar os outros, mas o que recebeu em troca?

― Eu… ― As palavras dela fugiram de sua boca.

― Não há nada pior do que estar preso a alguém, e é por isso que nunca terei amigos ― completou Raygan, convicto de que era a melhor decisão.

Thayrin terminou de arrumá-lo, ainda sem compreendê-lo. ― Qual o problema de ter amigos? 

― Eu teria que mudar para isso. 

A princesa acariciou suavimente os fios do cabelo dele, enrolando as pontas nos dedos para definir os pequenos cachos. ― Você prefere ser desagradável em vez de ter amigos? 

― Prefiro não depender de amizades para ser feliz, ou de validações para me sentir melhor comigo mesmo.

Uma pontada violenta atingiu o peito de Thayrin. Ela hesitava entre interpretar como uma indireta branda, um comentário moldado pelos anos de solidão no convento, ou simplesmente o ego amargo do relacionamento infeliz com seu pai.

― De qualquer maneira, não se preocupe ― expôs Raygan. ― Você é a joia desta noite. Um diamante cor-de-rosa combina com você. ― Ele estendeu a mão para ela, e Thayrin o acompanhou.

Os irmãos deixaram o quarto de mãos dadas, ele agindo como sua escolta. Apesar de seu rosto adquirir uma aura angelical quando relaxada, carregava uma expressão amargurada de um garoto descontente e de temperamento forte que a princesa, pelo canto dos olhos, apreciava com admiração. 

Seu irmão, finalmente, estava perto dela.

 As horas prolongadas do tão aguardado dia era uma sensação de serem intermináveis.  As cortinas dançavam ao vento frio da noite que, a qualquer momento, anunciaria a chegada do inverno. 

O caminho até local da grande festividade era preenchido por carruagens, umas mais suntuosas que outras, dignas da nobreza, estacionadas à entrada do palácio. E Raygan interrompeu o trajeto para observá-las através da janela.

Grupos de soldados patrulhavam os portões, controlando a entrada e saída de todos os convidados. Famílias, casais e jovens estavam presentes, e ainda que fosse incomum para a ocasião, também havia uma criança, uma garotinha com sua cabeça coberta por um véu. 

Ao contrário do rosto pouco visível da menina sorridente, Raygan manteve a feição antipática.

É apenas uma festa, idiota ― pensou com desdém.

Thayrin, ao perceber a parada do irmão, indagou:

― Algum problema?

― Não. ― Curto e direto. 

Quem se importa? ― Era uma voz que outrora o incomodava.  

Para o espanto dos irmãos, uma mulher os chamou. A rainha, tão deslumbrante quanto a filha, os repreendeu:

― O que fazem aqui? Vamos, vamos! Pressa nestes passos! ― Saône segurou o pulso de Raygan e o puxou para segui-la.

― Ei, e quanto a ela? ― Raygan protestou. Foi o único a receber tal tratamento. 

― Ela irá em breve. Venha! E quem lhe arrumou? Veja este lenço torto!

Thayrin soltou uma pequena risada ao ver Raygan ser arrastado por Saône pelo corredor. Mesmo assim, ela não deixou de se preocupar com a face dele e temeu que o príncipe estivesse nutrindo sentimentos negativos quanto à sua presença no palácio.

Mas à parte de suas impressões sobre ele, Thayrin tocou o pescoço e percebeu, surpresa, que seu colar de miúdas pedras preciosas não estava mais lá. Ela olhou para o chão, nervosa, e assim que parou para reorganizar seus pensamentos ― um mais atormentado que o outro ― ela foi abordada por um grupo de meninas.

― Princesa? ― perguntou uma das jovens, o vestido chamativo e rico em detalhes de renda, mantendo a postura rígida ― aos olhos da infanta, intimidantes.

O coração de Thayrin palpitou, e outra menina falou:

― Algo de errado, Alteza?

― Não… ― Ela moveu uma pequena mecha de cabelo solta de sua trança para atrás da orelha. ― Um pouco nervosa. Não é todo dia que iremos debutar. ― Sorriu. 

― Será uma noite inesquecível ― disse a jovem, as madeixas da cor do carvalho-escuro e seus lábios formando uma gentileza confiante.

Thayrin se rendeu à postura da jovem de ombros retos e o queixo erguido. Sua beleza era tão marcante que, sem dúvida, atrairia muitos olhares, mas nenhum deles para o diamante rosa do palácio.


Quem encontrará o colar de Thayrin?

 

 



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