Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 46: Sangue Real

KANARIS, FLORESTA

 

 

Quem nunca se perguntou como seria ser uma raposa, fugindo da cobiça, perseguida apenas porque sua pelagem era mais rara e bela que as chamas mais ardentes dos fornos de um ferreiro?

Ser único… ser especial… era, muitas vezes, pagar com a própria existência.

E não havia cenário melhor para testemunhar essa ríspida lição do que uma clareira — uma esfera perfeita aberta no seio da floresta, moldada pela mão paciente e cruel da natureza. 

No centro, isolado sob o céu cadavérico, estava o alvo. Seus olhos violetas, como ametistas, cintilavam na luz filtrada pelas copas das árvores. A pele, de uma brancura que lembrava mármore recém-cortado, tremia sob o frio cortante… ou seria sob o peso do olhar cravado em sua direção?

Raygan observava-o com olhos de predador. O arco descansava em suas mãos, mas o sorriso esmoreceu quando Daemis, a voz entrecortada pela ansiedade, adiantou-se:

— E-eu acho… que devíamos esperar pelo senhor Asher… — sugeriu.

Raygan não se moveu. Não piscou. Sua atenção permanecia fixa em Joellis, que, com braços cruzados e um sorriso desafiador, equilibrava uma maçã sobre a cabeça como uma coroa provocativa.

— Nunca saberei do que sou capaz se não tentar. — Raygan ajustou a tensão do arco.

— Você não é louco, ou é? — zombou Joellis, a voz impregnada de uma arrogância quase cômica.

— Quer apostar? — retrucou Raygan, o desdém em cada sílaba.

— P-pessoal… hahaha… — Daemis tentou intervir, posicionando-se entre os dois como um escudo humano. — Ainda é a primeira aula de tiro ao alvo! Você nem deveria estar segurando uma arma!

— Saia da frente, idiota — rosnou Raygan. — Sei mais do que você imagina.

— Sabe tanto que esqueceu as aulas de etiqueta — brincou Joellis, as sobrancelhas arqueadas em desafio.

Raygan bufou, baixinho.

— Que tal eu ensinar a você que, com um único tiro, posso calar essa sua boca insolente?

Joellis apenas sorriu, indiferente. 

— Tente.

O ar estremeceu, como antes da queda de um raio. Contudo, uma voz ribombou entre as árvores.

— Ninguém vai tentar nada! — bradou Asher, emergindo da floresta.

Sua expressão era relaxada, mas seus olhos brilhavam junto de um sorriso zombeteiro que curvava-lhe os lábios.

— Pelo menos, não por enquanto — acrescentou, rindo roucamente.

Num movimento preciso, o homem tomou o arco nas mãos de Raygan. Em seguida, dirigiu-se a passos largos até Joellis, que apressadamente apanhou a maçã, entregando-a ao caçador. 

— Por enquanto? — comentou Daemis, coçando a cabeça.

Asher deu uma mordida ruidosa na maçã, mastigou lentamente e voltou-se para Raygan, os olhos avaliando-o como um joalheiro examina uma pedra rara.

— Você tem boa postura. Quem lhe ensinou a atirar?

Raygan ergueu o queixo, pois ele não precisava ser ensinado.

— Aprendi sozinho.

— Sozinho? — Asher arqueou a testa, mastigando devagar. — Garoto, não minta para mim.

Inclinou-se, o rosto a poucos palmos do de Raygan, o olhar implacável.

Raygan esboçou um suspiro, tão impaciente quanto o homem para descobrir a verdade.

— Kaleid. Satisfeito?

Por um instante, Daemis empalideceu; Joellis arregalou os olhos; até as árvores pareciam desacreditadas ao escutar.

— C-comandante Kaleid? — gaguejou Daemis, a voz mal saindo.

Mas Asher apenas sorriu. Lançou o resto da maçã para Joellis, que a apanhou desajeitadamente.

— Não me surpreende — murmurou Asher ao ouvido de Raygan. — Tal tio, tal sobrinho.

Raygan desviou o olhar, mas não era o orgulho latejando sob sua pele.

— Hoje — disse Asher, erguendo a voz para que todos ouvissem. —, vocês aprenderão que sobreviver na floresta exige mais do que saber onde pôr os pés.

Foi até seu cavalo e retirou três bolsas de couro, cada uma contendo uma faca.

Joellis desembainhou uma, passando o polegar pela lâmina sem fio.

— Estão cegas.

— Medidas de segurança — respondeu com um sorriso de dentes brancos. — Halcan me mataria se eu deixasse vocês brincarem com armas afiadas de novo.

— Você quer que a gente lute? — perguntou Joellis, desconfiado.

Antes que Asher pudesse explicar, o sorriso predatório de Raygan respondeu por ele.

— Vamos nos dividir em duplas — começou o caçador. — O objetivo é simples: vocês se embrenharão floresta adentro, esconder-se-ão e tentarão voltar sem serem pegos. Nós vamos caçá-los.

— Como pique-esconde… — refletiu Daemis, hesitante.

— Com a diferença de que um erro custa mais do que um puxão de orelha — retrucou Asher.

E quando pensaram em protestar, Asher armou seu arco e disparou uma flecha entre Daemis e Joellis. O projétil cortou o ar com um zumbido mortal, fazendo-os saltar para trás.

— MAS QUE DROGA FOI ESSA?! — gritou Joellis, a voz falhando.

Asher sorriu, satisfeito.

— É melhor se apressarem — disse Raygan, vendo Daemis puxar Joellis pelo braço para longe da linha de tiro.

Em questão de instantes, o grupo, que deveria ser de cinco, tornou-se um trio… e então uma dupla apressada, deixando Raygan sozinho no campo, impassível como uma estátua.

— Eu poderia ter feito isso — resmungou o jovem príncipe, com uma certeza que poucos ousariam contestar.

Asher, porém, lançou-lhe um olhar duro, pois sabia que a floresta não era lugar para alguém que deveria trajar mantos de veludo, e não uma camisa esfarrapada.

— Você nem deveria estar aqui, pirralho. Seu lugar é no palácio, entre almofadas e bajuladores.

Raygan, no entanto, apenas endireitou os ombros, o olhar distante, como se já enxergasse para além da floresta e dos homens comuns.

Já não era segredo para ninguém que o príncipe herdeiro caminhava sob o peso de uma advertência severa, fruto de seus atos nada favoráveis à frágil harmonia entre a família real e o condado. Ainda assim, seria mesmo responsabilidade dos aclamados soldados de Olpheia disciplinar o filhote de felino tão displicente quanto ele?

Com um suspiro contido, o caçador largou o arco sobre a neve com um baque abafado. Depois, abaixou-se, flexionando os joelhos até quase tocar o chão gelado, mas sem nunca perder a compostura.

— Você conhece muito bem o sangue que corre em suas veias. Descendente de Redron, o Conquistador; Akyle, o Impiedoso… — Ele fixou o olhar nos olhos do menino — olhos negros como ônix, uma marca inconfundível de tal linhagem. — Sobrinho-neto de Raygan I, sobrinho dos leões negros do Império, Oracis e Kaleid… e, claro, filho legítimo do Leão Dourado.

Raygan, porém, sequer piscou. Seu rosto mantinha-se impassível, como se recitar sua árvore genealógica fosse um fardo tão conhecido quanto irrelevante.

— Aonde quer chegar? — indagou, impaciente, como se já soubesse de suas intenções.

Porém, Asher não se deixou abalar.

— O que estou tentando dizer, alteza — respondeu, apontando-lhe um dedo em direção ao peito dele. —, é que há um coração feroz pulsando dentro de você. Um dia, sentirá o verdadeiro peso da coroa sobre sua cabeça. Mas não será desprezando seus companheiros que aprenderá a carregar esse fardo.

Raygan soltou uma risada curta e vazia.

— Ha! E o que você sabe sobre reinar?

Era possível ouvir o tom arrogante de Oracis, como uma verdadeira família, ou quase. Mas Asher, paciente como um lobo à espreita, apenas sorriu de lado.

— Seu pai me ensinou muito nas caçadas, alteza. E uma dessas lições foi a preocupação que ele tinha… por você. — Seus olhos endureceram. — Eu não posso permitir que sua confiança desmedida se torne sua maior fraqueza.

Em contrapartida, o jovem príncipe avançou um passo, sua sombra mesclando-se à do caçador sob o céu cinzento.

— Está me repreendendo por acreditar que serei um imperador digno? — desafiou, o deboche escapando. — Que eu, diferente desses tolos, reinarei melhor que meu pai? — Seus olhos faiscaram. — Diga-me, senhor Asher, quem você vê diante de si? Eu… ou o fantasma do meu pai?

Por um instante, o caçador hesitou. Era uma pergunta que nem um veterano como ele responderia com leviandade.

— Eu vejo você, alteza — disse, afinal, em um tom baixo, sincero.

Raygan sorriu, sem alegria.

— Então saiba disto — sussurrou, inclinando-se para perto de Asher, de modo que seu hálito, quente e ríspido, tocasse a pele do homem. — Um dia, eu serei seu rei. E você, meu súdito. Seu dever não é me ensinar a caçar ou a temer lobos e espadas. Seu dever é garantir que nenhum desses idiotas que você chama de alunos atrapalhe os meus planos.

Asher arqueou uma sobrancelha.

— E que planos seriam esses, alteza?

O sorriso de Raygan se alargou, frio e calculista como o inverno.

— Por que não tenta adivinhar? 

Embora fosse natural uma atitude esnobe vinda de um nobre, para o caçador, ouvir isso dos lábios de uma criança nunca seria normal.


Em uma estufa escondida no coração do palácio, onde incontáveis flores desabrochavam no inverno impiedoso, Thayrin inclinava-se sobre uma jovem camélia. Seus dedos, delicados como o toque do orvalho, examinavam o caule promissor, ainda franzino, mas cheio de vida.

Ao lado dela, sobre uma mesa coberta de instrumentos de jardinagem e livros envelhecidos, jazia um tomo aberto. Thayrin via, nos traços da planta, a promessa de uma beleza que, cedo ou tarde, superaria todas as outras do jardim.

Nadye, atenta, observava em silêncio, os olhos grandes e hesitantes, incapazes de captar a mesma grandiosidade oculta que tanto fascinava a princesa.

— Será que vingará? — murmurou, a voz quase engolida pelo frio que se adensava no ar.

Thayrin não desviou o olhar das frágeis pétalas brancas, que tremulavam sob o hálito gelado, e com um leve sorriso, respondeu:

— Está em dúvida quanto a habilidade de sua princesa, Nadye?

— Tenho certeza de que este santuário será o bastante para protegê-las… — Ela puxou o manto para mais perto do corpo enquanto esfregava os ombros enregelados. — Ainda assim, meus cílios pesam só de respirar.

Thayrin riu baixinho, o som quente contrastando com a atmosfera gélida.

— Nada que uma cama macia e seu encantador — e, devo acrescentar, taciturno — noivo não resolva.

— A-alteza! — protestou Nadye, com um rubor que nem o inverno conseguiu disfarçar. — Esse não é um assunto apropriado!

Thayrin voltou-se para ela, os olhos faiscando com uma curiosidade provocativa.

— E por quê? Já sou uma mulher. — Inclinou levemente a cabeça. — Nunca se imaginou deitada ao lado de seu amado?

— S-Sim… claro… — Nadye gaguejou, as faces coradas agora tanto pela timidez quanto pelo constrangimento. — Mas não deveríamos falar disso tão levianamente! Sua Alteza está prestes a se casar, deveria ser um exemplo de recato.

Thayrin apenas riu novamente, despreocupada, podando uma rosa com mãos ágeis.

— Como se não ouvíssemos piores nos corredores do Segundo Salão. — Seus olhos brilharam de malícia.
— A corte não deveria envenenar nossas conversas, princesa. — retrucou Nadye, franzindo o cenho. — Aliás… — ela olhou além do vidro embaçado da estufa — … a ala dos criados está estranhamente silenciosa.

Havia sons ao fundo — murmúrios abafados, passos dispersos — mas não o burburinho habitual.

Thayrin, por sua vez, ergueu o rosto, afastando-se das flores. Seus olhos — antes devotados às suas queridas rosas — encontraram, com um sobressalto, algo que lhe roubou o fôlego: mechas de cabelo alaranjado, como chamas em movimento pelo caminho coberto por uma tênue camada de neve.

A tesoura escapou de seus dedos.

— Alteza? — chamou Nadye, vendo a princesa mover-se para fora da estufa. — Princesa, espere!

Mas Thayrin não ouviu. O coração golpeava suas costelas enquanto ela atravessava a neve, seus pés deixando pegadas apressadas no chão branco.

Por que ele estava no seu jardim? O homem que, quando criança, não hesitou em abandoná-la, e ainda assim, fazia-se presente, como uma afronta às suas memórias.

Ele visitava escravos e criados, entre aqueles que nada possuíam senão seus próprios labores… Ele, cujas ações eram misteriosas.

Ela atravessou os arbustos altos, o xale flutuando atrás dela.

Mantinha uma distância segura — ou assim pensava — enquanto seus olhos seguiam cada passo dele, cada gesto, cada inclinação da cabeça. Dois dos passos dele mal equivaliam a um dos seus, e, mesmo assim, ela precisava se apressar para acompanhá-lo.

Foi então que o destino, com sua ironia cruel, interveio.

Ele parou.

Virou-se.

E Thayrin também parou, tarde demais para fugir, tarde demais para se esconder. Seus olhares colidiram — a luz do sol se refletindo nos olhos dele como se uma fogueira tivesse sido acesa no meio da neve.

Um instante. Um suspiro. E o mundo pareceu parar de girar.


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Ribeira dos Desejos.

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