Volume 1
Capítulo 47: Meias Verdades
JARDIM DAS ROSAS, PALÁCIO DE OLPHEIA
Minutos antes, Henryk caminhava pelo corredor externo do palácio que, num dia incomum, parecia barulhento demais. Ele foi até um salão, não tão grandioso quanto ao principal, mas suficiente para abrigar uma quantidade significativa de membros da corte e do próprio conselho para uma festividade que, até então, rei e rainha não se encontravam.
Ele olhou pelas brechas, reparando nos rostos felizes e sorrisos, junto, de claro, da bandeja de moedas e cartas empilhadas. Mais apostas, o tradicional. Foi quando, chegando-se a um soldado que guardava uma das entradas, perguntou:
— O que está havendo?
— Parece que saiu uma notícia de que Leswen tornou-se aliada de Olpheia.
De repente, Henryk sentiu o coração disparar. Sua face congelou enquanto o soldado continuava:
— Estão festejando, porque o príncipe Bryce é um grande aliado para as casas de apostas da capital.
— Quem lhe disse isso?
— É o que eles disseram. Está nos jornais.
Então, num único impulso, Henryk adentrou o salão, passando despercebido entre os membros festeiros até chegar em uma mesa, onde se encontrava um dos jornais. E lá estava o anúncio:
“O diamante rosa do império se casará com príncipe herdeiro de Leswen? O duque de Britham, Ahoneu Baylam foi visto pelas ruas da famosa cidade de forja do reino, Forston para pedir uma aliança, e finalmente, para vencermos os malditos animais de Balmont! Honra e glória ao Leão Dourado! Viva, amada Olpheia!
Ele apertou o papel, amassando-o entre os dedos de anéis, retirando-se enquanto seus pensamentos não pararam, nem por um segundo.
Ao sair do salão, perguntou-se sobre como as notícias espalharam-se em tão pouco tempo. De que modo, todos pareciam saber, menos ele. A veia em seu maxilar saltou. Não poderia ser verdade! O que Leion pensaria dele? Que permitiu que sua irmã fosse vendida a um homem promíscuo.
Como ele, o homem que um dia prometeu protegê-la, pôde trair a confiança e o juramento de seu amigo, que morreu para salvá-lo?
A mente de Henryk girava como uma tempestade noturna sobre um mar revolto. Mil pensamentos, como flechas envenenadas, atravessavam-lhe o crânio enquanto ele perambulava pelos caminhos de pedra que margeavam os jardins do palácio. Seus passos não tinham rumo, tampouco paz. Sua mente — maldita traidora —, insistia em lembrá-lo do juramento feito.
E para homens de honra, era uma prisão sem chaves.
Leion não me perdoaria.
A imagem do amigo se erguia em sua memória, pungente: o olhar cheio de decepção, os lábios murmurando palavras que doíam mais do que aço afiado.
“Eu confiei em você, Henry” — sussurrou a lembrança, em um timbre tão nítido que ele chegou a girar o rosto, esperando vê-lo ali.
Mas quando ergueu os olhos, não viu Leion — viu-a.
Ela.
A princesa.
Estava imóvel, como se o destino houvesse entrelaçado suas vidas mais uma vez. O vento brincava com as dobras finas do xale que ela trazia sobre os ombros, um tecido leve demais para o frio que assomava.
A visão dela ali, tão serena e tão fora de lugar, atravessou-o como uma forte ventania.
— Princesa…? — disse, incapaz de conter o assombro na voz.
Por que ela? Por que sempre ela, em cada curva do caminho onde seus pensamentos insistiam em buscá-la?
Ela voltou com um olhar cortante.
— O que faz no meu jardim? — ela retrucou, o tom tão duro quanto o metal bruto de Forston.
Mas ele não recuou. O coração batia desordenadamente no peito, e a dúvida o empurrou adiante. Um passo. Nada mais.
— Por que está tão tranquila em relação a esse casamento?
Ela arqueou as sobrancelhas, confusa.
— Perdão…?
— Thayrin… — Outro passo, mais ousado que o anterior. — Sei que me odeia pelo que fiz. Sei que fui um covarde, que errei. Eu não deveria ter partido. Mas, por tudo o que é sagrado, acredite: casar-se com o príncipe Bryce é um erro terrível.
A incredulidade despontou em seu rosto dela, seguida por uma risada seca.
— Como ousa? Quem pensa que é para me dirigir tais palavras?
Ele baixou os olhos por um instante, contendo a ira, o orgulho ferido.
— Perdoe-me. Só… reconsidere.
Ela o fitava, e embora quisesse elevar a voz, ponderou:
— O que você… pretendia, exatamente, quando me entregou o colar?
Ele piscou, confuso.
— Colar?
Ela bufou, a frustração crescendo dentro de si.
— Esperei que dissesse algo. Que falasse comigo como antes, como quando éramos apenas duas crianças tentando escapar das regras do palácio! Mas tudo o que vi foi um nobre frio, usando máscaras de formalidade.
— Thayrin, eu…
— Eu esperava que você percebesse!
Ele franziu o cenho, tentando compreender.
— Queria que eu decifrasse um olhar carregado de repulsa?
— Não foi isso… — ela desviou os olhos.
— Está brincando comigo? — Ele deu mais um passo, a voz contida, prestes a explodir. — Quando cheguei ao palácio, tudo que eu queria era vê-la. Mas você… estava na butique de Marie-Charlotte, cercada de vestidos caros e joias. Eu esperei anos imaginando em quem você se tornaria.
Ela ouviu, mas não respondeu. E ele prosseguiu, a voz cada vez mais crua.
— Eu nem percebi que era você quando entreguei o colar. Estava tão diferente. E mesmo assim, tentei me aproximar, convidá-la para dançar… Mas o que recebi foi desdém.
— Está me culpando?
— Não! — respondeu, mais alto que o necessário. Depois suavizou, suas mãos voltando-se ao peito em protesto. — Estou dizendo que você se tornou inalcançável, Thayrin. Não é mais a irmã do meu melhor amigo. É uma princesa. E eu… sou só um cão sarnento aos seus pés.
Os olhos dele a consumiam, e cada palavra era um ferimento aberto.
— Eu não sou mais o Henry que você conheceu. Fiz uma promessa a Leion: proteger você. E é isso que estou tentando fazer.
Ela riu, mas não havia humor.
— Proteger? Como? Sumindo por anos e depois retornando para me provocar?
— Provocá-la? Nunca!
— Sim, fez!
— Então diga, alteza… o que tenho feito para merecer sua ira?
— A sua presença me irrita! Seus olhos me irritam! — gritou, furiosa. — Você se juntou àqueles que desprezavam meu irmão! O amigo a quem diz ter jurado lealdade! Todos esses bastardos desejavam a morte dele, e ao invés de contrariá-los, você se tornou um deles!
Ele se calou. Faltou-lhe palavras, engasgadas na garganta como um nó impossível de desfazer. Ver a expressão dela e a certeza em sua voz fizeram seu estômago revirar.
Mas não se calaria por covardia — e sim por conter a raiva, tal qual um soldado sustém a lâmina antes do golpe.
— Retornei ao palácio a pedido de Sua Majestade, seu pai — disse por fim, a voz firme como pedra quebrando o silêncio.
Dessa vez, foi Thayrin quem se calou. Os lábios, antes prontos para o ataque, se fecharam, tomados por uma surpresa nem um pouco disfarçada.
— Ele me convidou para integrar o Conselho. Porque confia em mim — continuou ele, avançando um passo. A distância entre ambos tornou-se uma linha fina, e seus olhos, dourados e irredutíveis, não vacilaram. — Você querendo ou não. Seu irmão… — sua voz vacilou, por um instante — …foi alguém muito especial para mim. Não permitirei que manche sua memória com acusações infundadas. E mais uma coisa… — Sua voz desceu um tom. — Eu não sou mais o garoto que você conheceu.
Thayrin engoliu seco. A saliva parecia amarga, como se o orgulho ferido tivesse contaminado cada gota. Ainda assim, por mais que sua altivez tentasse resistir, o olhar dele impunha-se sobre o dela.
Foi então que ele quebrou a tênue barreira entre ambos. Sua mão agarrou o pulso dela, puxando-a suavemente para si. Com a outra, segurou-lhe o queixo, os dedos pressionando a mandíbula com força suficiente para impedir que ela falasse — até que ele o permitisse.
— E quanto mais você destila esse veneno contra mim — sussurrou, as palavras ardendo como brasas — mais desejo tenho de roubá-la antes que Bryce o faça. Porque não há tesouro mais cobiçado que uma joia rara… e você, princesa, é preciosa demais para ser entregue a qualquer um.
Soltou-a.
Seu semblante era o de um predador que, por capricho, libertava a presa — por ora.
Thayrin recuou um passo, o pulso latejando. Mas antes que pudesse recompor-se, retrucou:
— Leion jamais se orgulharia do homem em que você se tornou! — cuspiu-lhe no rosto, gesto tão nobre quanto impulsivo.
Ele? Nada disse. A saliva escorria-lhe pela face, mas sua expressão era um mármore de indiferença. Com os dedos, recolheu o líquido e, num ato lento e cruel, depositou-o no rosto dela, que paralisou em choque, seus ombros sobressaltando-se.
— Seu valor pode ser comparado ao de um diamante… — disse ele, a voz agora fria — … mas sua essência, enquanto mulher, está bem abaixo das humildes criadas que frequentam os corredores da ala leste. — Tirou um lenço de dentro do casaco, limpou os dedos e o atirou aos pés dela. — Pois sua arrogância será um festim para um homem cujo passatempo preferido é domar feras. E Bryce não será gentil como você imagina, alteza.
Então, virou-se e se afastou, sem olhar para trás.
Thayrin permaneceu onde estava, inerte. O queixo tremeu, e os olhos, apesar de toda resistência, umedeceram.
Onde havia errado? Cumprira seu papel, obediente, leal… Por que então aquelas palavras lhe cortavam mais que uma adaga? Ela, herdeira do trono, comparada a servas cujos nomes ninguém lembrava? O desprezo em sua voz a feria mais do que desejava admitir.
— Alteza! — A voz de Nadye ecoou atrás dela, carregada de urgência.
Thayrin não se virou. Fitava apenas o lenço no chão, a mente girando em círculos.
— O quanto você ouviu? — murmurou, sem tirar os olhos da pedra fria sob seus pés.
— O suficiente… — Nadye respondeu com pesar. — Não tudo. Mas o bastante para entender o quanto me enganei sobre o caráter do senhor Henryk.
Thayrin respirou fundo, os olhos ainda presos no vazio.
— Ele… — começou, a voz fraca. — Ele não está certo… está? — Voltou-se, e seu olhar vacilante encontrou o da dama. — Meu pai… Eu… não sou apenas uma moeda de troca, certo? Eu serei rainha um dia, e governarei ao lado do meu esposo…
Mas, mesmo enquanto falava, as lágrimas ameaçavam descer.
— Eu… não quero que me vejam como mercadoria.
Foi quando Nadye a tomou pelas mãos com respeito e ternura, respondendo-lhe mansamente:
— Vossa Alteza, eu a conheço muito bem, e sei que o valor que carrega não pode ser medido com ouro ou joias. É maior do que qualquer pedra enterrada sob a terra. — Sorriu com doçura e apontou para o peito dela. — Porque aqui dentro pulsa um coração forte, gentil e digno de ser amado por quem realmente mereça conhecê-lo.
As palavras entraram em Thayrin como bálsamo. Seu rosto, ainda úmido, suavizou-se. Um sorriso tímido surgiu, tênue como a luz da aurora.
— Obrigada. — Apertou levemente a mão da serva — e amiga. — Não errei ao escolhê-la como minha dama de companhia.
Ergueu o queixo, e com um suspiro, disse:
— Vamos. Ainda preciso terminar os arranjos.
Ela aceitara aquela condenação injusta com tamanha naturalidade que Henryk, imóvel diante do velho tronco retorcido, sentiu-se um perfeito tolo. Como se fosse ele o condenado. Como se suas palavras não passassem de vento diante de uma muralha.
Estava parado, feito pedra enraizada no solo.
E sem aviso, cerrou o punho e golpeou a madeira com uma força brutal. A casca rugosa cedeu pouco, mas foi o bastante para feri-lo. A dor queimou-lhe os nós dos dedos. Ele apoiou o antebraço no tronco, a testa encostada, o peito arfando.
O ar que escapava de seus lábios era quente, ofegante. Em mente — oh, sua mente! — era como estar acorrentado. E longe dele, os lábios de Thayrin apareciam, convidativos, suaves como pétalas; incômodos como espinhos.
Os olhos dela podiam destruí-lo se assim quisessem, e Henryk sabia disso. Sabia e desejava. Os cabelos dela, rebeldes, pareciam vinhas vivas, prontas para enlaçá-lo e arrastá-lo até o abismo que ela representava.
Porém, mais do que a beleza mordaz, era a maturidade incerta que o atormentava. Ela crescera, sim, e ainda assim… ainda era uma menina para aceitar um casamento por conveniência e poder.
E havia algo de insuportável no fato de que nada estava ao seu alcance. Nada podia fazer senão observar, impotente, enquanto o destino da irmã de seu melhor amigo fugia do controle que ele acreditava possuir. E agora, tudo o que podia fazer era imaginar o que Bryce faria com ela.
Não! Era um que pensamento ele se recusava a ter.
A raiva, no entanto, ainda rugia dentro dele, abafando todo bom senso. Foi então que, num relance, algo lhe chamou a atenção — movimento, uma presença.
Não era Thayrin. Os cabelos não eram ruivos, mas negros como noite sem lua. Uma menina. Pequena. A pele oscilava entre o tom da terra úmida e o branco gélido da neve. Seus olhos… eram desiguais. Um azul como o céu ao amanhecer, o outro castanho como a casca de um carvalho escuro. E em suas pequenas mãos… o lenço.
O maldito lenço, agora, entre os dedos de uma criança da ala dos criados. E pelos olhos da menina, Henryk soube que ela ouvira mais do que devia.
Sem rodeios, ele se virou para ela.
— Você ouviu tudo?
A criança, em saudoso respeito, assentiu, sem dizer palavra. Henryk, por outro lado, soltou um suspiro pesado e se agachou, até que seus olhos ficassem no mesmo nível dos dela. Tocou de leve no tecido, entre os dedos miúdos da menina.
— Não conte nada a ninguém. Está bem?
— Sim, senhor Henryk. — A voz dela era amável, de doce inocência.
Ele arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— Você sabe quem eu sou?
Ela assentiu outra vez, e respondeu:
— O homem que está ajudando o mestre Levi com o grande banquete.
Henryk a observou por um instante mais longo, e por fim, um sorriso fugaz escapou-lhe, dissipando um pouco do incômodo em seu peito.
— Qual é o seu nome?
— Hadara.
— Do que você gosta, Hadara?
— Porco assado — disse, tímida, mas com um brilho nos olhos.
— E quando será o “grande banquete”?
— Amanhã à noite, depois do jantar dos nobres… Na floresta. Fora dos muros do jardim.
Claro. Claro que fariam isso quando o imperador estivesse longe… — pensou Henryk, o sorriso retornando, desta vez mais astuto, e um pouco sombrio.
— Então vejo você amanhã?
Hadara, sorrindo largo, acenou com a cabeça, um “sim” silencioso. E Henryk, mesmo com a alma em frangalhos, sentiu algo tênue aquecer seu peito.
Algo próximo da esperança.
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Ribeira dos Desejos.
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