Volume 1
Capítulo 4: Vestido Cor de Vinho
FORDWEL
Pela calçada de pedras da movimentada cidade portuária, dois irmãos andavam de mãos dadas. Pessoas transitavam apressadas, e alguns alçavam a voz para chamar os trabalhadores para descarregar os barris das grandes embarcações, enquanto outros anunciavam suas mercadorias.
Barracas de frutas, temperos, tecidos e vários produtos ficavam à mostra. Havia casas, firmes construções, mas envelhecidas com o tempo. Rachaduras visíveis, porém, não velavam os sorrisos da população ao cumprimentar os mercantes das janelas de suas residências.
As gaivotas cantavam ― o som agudo e estridente ― rumo a um farol erguido na área elevada de uma extensa rocha em meio ao mar.
A cada toque do sino no porto, era o sinal de que mais uma embarcação seguiria seu destino. Eram águas profundas; misteriosas, no entanto, aventuradas pelos marinheiros de faces alegres, despedindo-se de suas famílias que ansiavam por seu retorno.
Para a menininha ao lado do irmão, o cheiro do peixe impregnou em suas narinas. Ela reclamou, tampando o nariz com um lenço.
― Que cheiro horrível! ― Seus olhos encararam os peixeiros retirando as entranhas dos animais. ― Vai demorar muito?
― Você insistiu para vir, então pare de reclamar. ― O irmão mais velho tinha os passos constantes. Estava com pressa e seu humor não era dos melhores.
― Perguntei se vai demorar!
A menina de bochechas vermelhas e olhos azuis redondos exigiu, apertando a mão dele.
― Deus… ― Ele bufou. ― Só mais alguns passos.
― Quantos?
― Não sei.
― Então, como sabe que será em alguns passos? Quantos passos? Dez? Vinte? Mil? ― A garota de seis anos parecia feliz em ver a expressão dele mudar a cada pergunta. ― Você nem consegue contar! Olha, eu sei! Um, dois, três…
O rapaz fechou os olhos; um clamor, preces, ou qualquer oração que a fizessem parar.
― Está bom, Ayanna. Chega disso!
― Não! Um, dois, três, quatro…
Ele estava de babá, responsável pelo cuidado de sua irmã caçula. E Ayanna soltou a mão dele para pular sobre os tijolos.
O garoto, vestido com um colete azul-marinho e um lenço ao redor do pescoço, encarou Ayanna, sentindo o calor da irritação invadir sua cabeça.
― Se continuar em até dez passos, diga adeus ao Gomitch. ― Virou-se de costas para ela e continuou o caminho.
Ayanna estremeceu e o espanto em sua face tornou-se aparente. A menina o seguiu, preocupada com o destino de seu brinquedo preferido.
― Não mexa com o Gomitch!
― Aquela pelúcia não verá a luz do dia em mais três passos. ― Um sorriso maléfico surgiu na face dele.
― Joellis! ― Ayanna parou, seu queixo contraído e sua testa franzida.
― Hah… estou brincando.
A menina ficou imóvel, os braços cruzados, prestes a chorar.
― Ei, é sério. Estou brincando.
A voz dela soou chorosa. ― Você vai pegar o Gomitch.
Ela, sim, não estava para brincadeira.
― Não vou, prometo. ― estendeu a mão. ― Venha, precisamos ir. Não farei mal a ele, mas não quer dizer que você deva me irritar.
Joellis se abaixou no meio da calçada, dobrando os joelhos até ficar na altura dela. Os olhares curiosos das pessoas ao redor não o incomodavam; o que importava para ele era sua irmã.
Então, Ayanna abraçou o pescoço do irmão, dizendo:
― Desculpa por irritá-lo.
O arrependimento que Joellis esperava dela.
― Tudo bem.
Antes que o rapaz levantasse do chão, um homem parou diante deles.
― O que estão fazendo aí? ― Pelo tom de sua fala apressada, Joellis cambaleou no chão ao erguer-se depressa.
Ele limpou as manchas brancas das calças, deixadas pelo chão em seus joelhos. ― Pai? Ah, desculpe! Já estávamos indo.
Seu cabelo, como um turbilhão de nuvens, voou enquanto ela corria em direção ao pai, abraçando-o na cintura. ― Papai!
As madeixas brancas atraíram muitos olhares. Não era comum encontrar pessoas com uma condição tão rara. Ela era especial, se comportava estranhamente saudável. Pessoas como ela se escondiam nas sombras, distantes da luz.
― Filha de uma usuária de magia? As meninas sempre que herdam os poderes malignos de suas mães. ― Uma velha cochichou para a amiga, partindo com pressa antes que fosse notada.
O comentário foi pronunciado de forma que todos os três pudessem ouvir. Incapaz de ser evitado, e não era nada novo para eles.
Joellis conhecia o pai muito bem. Os ombros tensos e a expressão de desdém que ele carregava indicavam que algo não estava do seu agrado.
― O senhor parece estar tenso. O que aconteceu no palácio?
Harl observou os olhos cor de violeta de seu filho, vendo a desconfiança estampada em seu rosto. Ele sentiu orgulho pelo interesse do filho em discutir os assuntos do império.
― Quando chegarmos ao cais, conversaremos melhor. ― Um sorriso rotineiro surgiu na feição que, segundos antes, ameaçava soltar vários palavrões. ― Vamos.
Horas mais tarde, em um dos aposentos da família real, uma moça dobrava um vestido na cama. Ela estava de saída, indo até à porta. No sofá, outros vestidos esperavam para serem provados pela rainha com ajuda das servas.
Detalhados à mão; criados exclusivamente para a rainha. Os vestidos eram de sua posse, e uma ordem decidiria o destino das peças valiosas.
― Por favor, não se esqueça do chá, querida ― disse a rainha com uma voz calma e amável.
― Os vestidos ficaram ótimos, Majestade ― falou uma das três damas que avaliavam as vestimentas, e outra comentou:
― Sim, é maravilhoso.
Todas elas aparentavam ser maduras e ótimas companhias.
Ainda existem muitos, e todos que Sua Majestade já provou ficaram maravilhosos.
Saône girou o vestido na frente do espelho. Ela precisava conferir com seus próprios olhos.
― Acredito que o da cor vinho fica mais adequado. Esta cor não me agrada, para falar a verdade.
Era um laranja desbotado, isento de brilho e outras particularidades como não se assemelhar em nada à delicadeza e feição generosa da soberana.
Uma das damas aplaudiu e comentou:
― Sendo assim, vamos ver como o vinho se comporta.
As criadas prontamente se aproximaram de Saône, e uma delas desfez o nó do espartilho que prendia a rainha com firmeza. Contudo, antes que pudessem desfazer o restante dos fios, a porta abriu sem qualquer anúncio, trazendo consigo uma voz grave e intensa que ordenou:
― Todas, saiam.
Elas obedeceram, curvando a cabeça ao se retirarem.
― Exceto você ― aconselhou Saône a uma das criadas.
Ela lançou um olhar descontente para o marido. ― Ajude-me primeiro.
A criada hesitou quando o monarca parou para observá-la, aguardando sua próxima ação. Apesar da insistência de Saône para que ela não se retirasse, ela se curvou respeitosamente e se afastou, deixando-os a sós.
Saône fechou os olhos em um suspiro resignado. E, contrariada pela atitude do marido, ela perguntou:
― O que deseja?
Elard mexeu no anel em seu dedo anelar direito.
― “Boa tarde, é um prazer vê-lo bem.” ― ele articulou. ― Bem, era isso que eu esperava. Creio que precisamos ter uma conversa.
― Poderia retornar em outro momento? Se por acaso não percebeu, eu estava lidando com um assunto de grande importância.
Elard notou os vestidos espalhados pelo sofá, porém, seus olhos estavam focados na parte superior das costas semi-nuas de sua esposa. Saône, por outro lado, observou o reflexo dele pelo espelho, especialmente na mão nervosa que brincava com a joia entre seus dedos.
― O vinho fica melhor ― ele comentou.
― Por favor, diga o que você deseja.
Elard soltou um suspiro, desviando o olhar. Era claro para ele que sua presença, além de incômoda, passava desapercebida.
― Seu filho disse algo que não devia. Gostaria que tomasse alguma providência quanto ao que aconteceu hoje.
― Ele é o nosso filho, também pode repreendê-lo.
― Você sabe. Nós dois sabemos o que ele quer.
― Pois bem, diga-me. O que ele quer? ― A rainha caminhou até o sofá e afastou os vestidos para sentar. ― O que eu deveria fazer a respeito?
Ainda de pé, Elard fitou Saône de cima a baixo, seus olhos presos nela como se, num único erro, ele pudesse devorá-la. Um pensamento fugaz.
Ele arfou e massageou a testa. O efeito do álcool abalava sua determinação de lutar contra os sentimentos que o consumia.
― Você finge não perceber. ― Novamente, tocou no anel de ouro. ― Tudo o que ele quer é colocá-la contra mim. ― Sentou no sofá, as pernas e braços relaxados no assento confortável.
Saône deixou escapar uma risada incrédula e Elard, descrente, cerrou os olhos.
― Está rindo de mim?
Ela pôs a mão frente à boca para evitar revelar os dentes brancos e alinhados; um detalhe que a realeza sempre reparava.
― Não estou rindo de você, e sim do que disse.
Assim como a corte, Elard não pôde desviar o rosto do sorriso que ela ocultou com muita graça.
― É o mesmo.
― Sua preocupação é que ele me coloque contra você? Bem, não vejo como um problema.
Desanimado, Elard duvidou se havia ouvido corretamente.
― O que disse? ― As palavras dela o ofenderam.
“Sou seu marido, também mereço respeito”. Ele diria se não estivesse preocupado com o matrimônio deles.
― Você me ouviu.
― Fiz algo de errado?
― Já se observou, Elard? ― Ela se levantou do sofá e caminhou até ele. ― Você exala o odor de álcool. É este o exemplo que deseja dar aos nossos filhos?
Elard levantou o queixo para encará-la. Sua voz era assertiva, conduzida pela aversão evidente em seu rosto, que assumia uma expressão sombria. O leve franzir de suas sobrancelhas era uma visão que o intrigava.
Seus olhos azuis, penetrantes como o gelo, causaram um formigamento em seu peito e fizeram seu coração perder o compasso. No entanto, ele não sucumbiu a essa emoção.
― Não pense que irei deixá-lo falar comigo daquela maneira de novo. Ou você usa os seus métodos, ou resolverei com os meus.
― Está ameaçando seu próprio filho?
Ele se aproximou dela com sua guarda baixa.
― É um aviso.
Ele era formoso, e a altura de Saône alcançava seus ombros cobertos pelo majestoso traje real. Ela permaneceu intacta, encarando-o nos olhos.
― Você nunca me agradeceu por trazê-lo de volta para os seus braços. Então faça o mínimo e eduque-o adequadamente.
A soberana não se deixou abater pela postura dominante.
― Você o repeliu, portanto, qualquer ação que você tome não resultará em nada. E você sabe que sem mim, nunca conseguirá o respeito dele.
Elard deu um sorriso para ela, admirado pela convicção de sua rainha. Ele não esperava menos.
― É verdade, não há nada que eu possa fazer para reverter essa situação. Contudo, isso não me impede de provocá-lo. ― Ele deu de ombros. ― Você é inteligente e compreende que ele não possui limites. Um erro e ele retornará para o lugar de onde nunca deveria ter saído. É isso que seu coração almeja?
Saône se calou. As palavras dele fervilharam internamente como um nó na garganta. No entanto, o tempo que passou em silêncio não foi longo o bastante para se reprimir diante de sua audácia.
― Como você ousa?
Ele silenciou-a delicadamente com seu dedo indicador. ― Como você mencionou, ele é o nosso filho ― disse ele, um pequeno sorriso se formando em seus lábios. ― Que tal organizarmos estes fios?
O cansaço era visível em seus olhos, e a ideia de experimentar mais vestidos intensificava ainda mais seu desconforto. A visão de fios apertados ao ponto de sufocá-la parecia quase insuportável. Por fim, resignada, ela optou por se render, admitindo que persistir seria exaustivo.
― Seja rápido ― ordenou, virada de costas para ele.
― Devo prendê-lo?
Saône negou com a cabeça. ― Faça o seu trabalho.
Elard não conseguiu esconder seu sorriso divertido enquanto acatava as instruções de sua esposa. Ele soltou os fios do espartilho até a altura do quadril. A sensação de respirar era um alívio para ela, e ter o cabelo preso tornou o processo ainda mais fácil. Elard desfez o nó até o último fio e, de propósito, depositou um beijo suave em seu pescoço.
Um calafrio atravessou o corpo de Saône. Ela recuou, sua expressão de incrédula ao ato repentino.
― Faça como combinamos ― falou no ouvido dela.
Saône observou Elard deixar seu quarto pelo reflexo no espelho. Enquanto contemplava seu próprio semblante, percebeu as sutis rugas abaixo dos olhos que sinalizavam o desvanecer de sua juventude.
Cada dia apresentava novos desafios, e para ela, Raygan não deveria se tornar mais um obstáculo.
Novas ilustrações em breve!
Enquanto isso, aprecie a beleza em forma de mulher.
― mas não por muito tempo, porque o Elard está de olho (¬ _¬) ―
Ilustração: Rhainah