Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 3: Canhões e Sanduíche

ACAMPAMENTO DE LORIST

 

Em Lorist, o céu era cinza, igual ao nublado de uma floresta banhada pelo nevoeiro do tempo frio.

Na área mais alvoroçada da região, a fumaça bloqueava a visão dos soldados em alerta para qualquer ação inusitada do inimigo. Os homens fortes ― no porte físico como em suas expressões sérias ― tinham apreço e cuidado com os instrumentos de guerra.

Espadas polidas e armas que refletiam os poucos raios de luz vindos do sol e do calor sufocante.

Suas armaduras pareciam cintilar, e embora o chão lamacento sujasse os calçados de aço, estavam comprometidos com o trabalho que lhe foi ordenado. Lá, havia barracas, estrategicamente erguidas perto de um pequeno rio.

Os mais jovens, chamados de recrutas, carregavam jarros de água, enquanto outros auxiliavam as mulheres de vestes brancas da cabeça aos pés, que cuidavam dos soldados feridos.

Ouviram-se gritos e berros ao longe, onde os olhos dos mais experientes não alcançavam. A terra estremeceu junto do estrondo de um canhão. Era como um borrão à vista, e para os soldados que acompanhavam a batalha à distância, restava apenas a incerteza da vitória, ou a perda de mais um companheiro.

Próximo ao rio, um garoto mergulhou a talha de barro na leve correnteza. Mais adiante, ele viu a água cristalina ser manchada pelo rubro dos panos encharcados de sangue, mas por tempo limitado, pois, sem qualquer aviso, um canhão foi disparado. Foi mais perto do que qualquer outro que já ouvira, este, de nenhum outro senão do inimigo.

O corpo saudável do garoto ― de pele como amêndoa ― saltou num estímulo involuntário. Seu coração acelerou junto ao som da água batendo nas rochas do rio. Ao olhar derredor, as sacerdotisas corriam na mesma direção.

Ele ofegou, tocando no peito. O suor escorreu por sua testa, melando os cachos negros de sua cabeça. Consigo, a crescente sensação de desamparo; a incerteza de vida ou morte preencheu seu semblante pálido e atordoado.

Perto dele, um homem notou o rapaz imóvel à beira do rio.

― Ei! Por que parou? ― O sujeito apoiava a palma da mão no punho da espada, com um olhar ameaçador. ― Precisa de ajuda para lembrá-lo de suas obrigações?

Surpreso com a intimidação, o jovem encheu finalmente a bacia com água da talha e afundou alguns panos. Ele andou de encontro com a sacerdotisa que estancava o sangue de um soldado com a perna rasgada e osso do joelho exposto.

Seu estômago revirou o café da manhã, mas o conteve, pois, desperdiçá-lo seria um grave erro, principalmente no campo de batalha.

― Vamos, apresse-se! ― A mulher apertou um dos panos enquanto o homem, deitado numa cama improvisada com varas e um lençol, gritava de dor.

― A perna precisa ser amputada ― comentou a mulher, sua voz tensa, mas firme. ― Daemis, chame ajuda.

Como instruído, ele olhou em volta, mas todos estavam ocupados. Assim, o rapaz decidiu cortar trajeto por trás de uma barraca, no entanto, uma voz grave o chamou:

― O que faz aqui?

Daemis reconheceu a autoridade à sua frente; não era a primeira vez que via seu rosto. Então, inclinou a cabeça em sinal de respeito.

― Senhor… As sacerdotisas estão procurando mais homens para ajudar os feridos.

O homem se movimentou depressa para o centro do acampamento, dizendo:

― Diga-lhes que todos estão a caminho do campo de batalha.

― O quê? Mas e o anúncio de trégua, era mentira?

― Não é a primeira vez que um reino trai seus princípios, garoto. Estamos em guerra, e a honra não é para todos.

Daemis observou os cabelos grisalhos do general, que permanecia de costas para ele. E a capa azul, presa em seus ombros, se movia em sincronia com seus passos.

Ele conhecia a história por trás da guerra.

Lorist, uma terra vazia, sem donos. Balmont, um reino pequeno que lutava por seus ideais, pelas terras que lhe foram tomadas. E Olphéia, o grande império que permitiu que o tesouro do imperador fosse roubado de suas mãos.

Daemis fixou os olhos em seu superior. ― O senhor acredita que Balmont trairia seus próprios valores?

O velho parou, mas não ao ponto de encará-lo nos olhos.

― Tanto quanto Olphéia traiu os seus.

Antes que Daemis pudesse pensar sobre a resposta dele, as tendas do acampamento tremeram ao impacto do estrondoso som que fez a terra vibrar.

O recruta agarrou a camisa em direção ao coração; num trovejar distante, reverberando pelos campos. Ele estreitou os olhos e respirou fundo, mas o ar era fatigante em seus pulmões, contudo, ele engoliu a saliva e correu ao lado do general para o topo da colina.

Três explosões ecoaram, cada uma delas sacudindo o peito dos presentes. Soldados, alguns feridos e outros inexperientes, ficaram atônitos. Uma dezena de guerreiros correram junto de seu líder.

Ao alcançarem o cume, suas vistas foram recebidas pela retirada de Balmont ao longe.

― Por que agiram assim? ― indagou Daemis.

O general olhou para o jovem. ― É a forma menos educada de nos mostrar que aceitaram nossas condições. Vá e auxilie as sacerdotisas!

― Senhor, eu não sei o que fazer.

A expressão de Daemis demonstrava insegurança, sua fala revelava um estrangeiro perdido em uma terra desconhecida, longe de casa.

― Obedeça. ― A palavra final foi pronunciada, deixando-o à deriva.

Para o general, os eventos de uma década passada repetiam-se. Balmont era o reino que a prematura Jighal não conseguiu fortalecer, no entanto, possuíam a resiliência que a vila, agora ressurgindo das cinzas, mantinha para lutar.

No jardim do palácio, Raygan estava sentado no banco de metal tingido de branco junto da expressão sonolenta no rosto. Ao folhear um livro, os poucos sopros de vento brincavam com seus cabelos.

O aroma suave das rosas-vermelhas que sua irmã cuidava permeava o ar ao redor. Um perfume que ela também exalava com frequência.

Não demorou muito para o príncipe abandonar o livro ao se sentir entediado e sem motivação para cumprir suas responsabilidades.

Ele se estirou no banco e usou o braço direito como travesseiro. Lentamente, o sol se escondeu por trás das nuvens do céu pálido, e para Raygan, era um dia como qualquer outro, mas também um tanto solitário.

― Não deveria estar estudando? ― Uma voz o questionou ― uma que soava gentil aos seus ouvidos.

O corpo de Thayrin impedia que luminosidade do dia atingisse os olhos cansados do irmão.

Raygan desviou o rosto. ― Por onde esteve? ― Estava emburrado por um motivo desconhecido para ela.

― Não é da sua conta. ― Ela afastou a longa franja de cima dos olhos dele. ― Deixe de preguiça e apronte-se. Seu professor já deve estar esperando na biblioteca.

Ele sentou no banco com as sobrancelhas franzidas. ― Irá lhe custar algo se me disser por onde esteve?

Thayrin aproximou seu rosto ao ouvido dele, dizendo:

― Eu sei o que você disse ao nosso pai durante o almoço. As paredes dos corredores conversam entre si. Achou que eu não descobriria? ― Sua voz era séria, um timbre firme que pairava entre eles, não mais o adorável que seu irmão estava acostumado.

Raygan, no entanto, permaneceu indiferente. Sentimentos ou a falta deles por parte de seu pai pouco importava para ele.

― Isso importa?

A frustração crescia no peito de Thayrin.

― Você tem noção do que disse ao nosso pai? ― Thayrin lutou para conter a raiva, mas sua voz relevou o estresse, descrente com a ousadia dele. ― Ele era o nosso irmão!

― E daí? Eu não o conheci. ― A resposta de Raygan foi cortante, enquanto ele virava o rosto apático para o lado.

As palavras de Raygan dividiram Thayrin entre a raiva contida em seu coração e as palavras que não ousavam sair de seus lábios, ameaçando agir num tapa no rosto dele.

Thayrin balançou a cabeça em negação. ― Você merece estar sozinho.

Raygan, inabalável, retrucou:

― Eu não pedi pela sua companhia. Está aqui por esse jardim idiota, não é? Você sabe que essas flores murcharão em alguns dias, então deveria descartá-las de uma vez.

Thayrin, mantendo a compostura, respondeu:

― Faça-me o favor! Diferente de você, eu estudo sobre essas flores, me conecto com elas, converso e tento entendê-las.

Raygan, em tom de deboche, arqueou uma sobrancelha. ― Você é maluca? No convento, havia médicos especializados em problemas mentais. Não tenho certeza se este é o seu caso.

O deboche era a arma de Raygan, e Thayrin não se conteve, dando-lhe um peteleco na testa.

― Ai!

― Escute bem, se quer tanto ser melhor que o nosso pai, faça o mínimo e não haja como um irresponsável. Embora seja cansativo estudar os temas que você estuda e assimila tão rápido.

Thayrin, em vez de gritar, apenas murmurou consigo mesma:

É apenas um pirralho. ― Ela sabia disso. À véspera dos doze anos, uma idade que, para a irmã mais velha, era doloroso de lidar.

― Tenha em mente que, por trás desse rosto insensível, existe alguém que se importa com os outros. ― Thayrin tocou suavemente na bochecha dele. ― Mostre à corte que você é digno do trono. Se não, eu mesma serei a responsável por roubar o trono e fazê-lo se juntar ao esterco dos cavalos! ― Seus lábios formaram um sorriu ― um dissimulado.

Raygan não fez questão de olhar para ela, mas aceitou o gesto carinhoso sem hesitação. ― Até lá, tentarão me matar.

Não tenha dúvida! ― Ela sorriu. ― Mesmo tentem, estarei ao seu lado, sempre que precisar.

― Hum… ― Ele bufou junto a um riso descrente. ― Já ouvi isso antes.

Ela queria reconquistar a confiança que seu pai havia quebrado entre eles. Então, como última carta de persuasão que possuía, comentou:

― E que tal um sanduíche de frango?

Raygan voltou seu olhar na direção dela, e Thayrin sentiu a confirmação de ter atraído a atenção dele.

― Você é péssima na cozinha ― ele persistiu; jamais aceitaria a derrota.

― Sanduíche de frango ou saia do meu jardim. ― Ela cruzou os braços. ― Agora!

Ele grunhiu de raiva. ― Está bem! Sanduíche de frango!

― Eu faço para você, caso peça desculpas para o nosso pai.

― Nem ferrando! ― Seu rosto se enfureceu junto ao bico que seus lábios formaram. ― Pode esquecer!

Thayrin envolveu os braços nos ombros dele, sua estatura superando ligeiramente a dele. ― Estou brincando! ― Ela soltou uma risada ao ver a expressão dele. ― Me encontre no coreto mais tarde. O sanduíche de frango estará esperando por você.

A jovem infanta ia desabrochar lindamente como as flores vívidas do jardim recém regado por um servo. Ela poderia alcançar sua mãe, mas não era uma mudança brusca. E comparado ao tamanho do seu irmão, ele, sim, precisava da mudança que Thayrin desejava ver.

Mas Raygan se afastou. ― Eu não sou mais uma criança!

Thayrin apanhou a rosa que uma borboleta de asas azuis pousara e inspirou, alfinetando:

― Mesmo que sua voz pare de oscilar entre o agudo e grave, você continuará sendo uma criança. ― Ela pôs a flor sobre a orelha dele.

O jovem príncipe bateu o pé ao se dirigir para dentro do palácio. ― Não enche!

Enquanto isso, Thayrin observava-o durante o trajeto, notando-o retirar a flor de suas madeixas e guardá-la no bolso de seu colete.

Ela acreditava que havia um toque de delicadeza nele. O perfume que exalava de sua nuca lembrava livros antigos. Ele se esforçava incessantemente para aprender a cada dia e noite.

Que complicação… — Não era um incômodo, mas sim nostálgico perceber que o caçula da família crescia saudável ― pelo menos um pouco.

Apesar das discussões, eles também compartilhavam momentos de união. E ao contrário de suas altezas reais, em outra localidade, dois irmãos caminhavam de mãos dadas. O mais velho mantinha um semblante sério, já a mais nova, de aparência singular, contemplava as nuvens no mesmo céu que o príncipe uma vez observou em solidão.


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― se ele deixar (ง︡'-'︠)ง ―

 

 

Esboço | Ilustração: Rhainah

 



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