Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 2: Ervilhas e Rosas Murchas

OLPHEIA

 

O serviçal foi ágil e, com prontidão, recolheu os cacos da taça quebrada. Muitos fragmentos se espalharam perto das botas de couro marrom do príncipe, cuja face apática não denotava medo em relação às consequências de seus atos.

Pelo contrário, a situação parecia ser rotineira.

― O que você quer? ― indagou Elard, o olhar minucioso para a comida no prato de vidro branco fermentado.

Elard tentou separar as ervilhas com o garfo, mas o peito de frango já não tinha o mesmo sabor agradável.

― Nada de mais. ― Raygan fixos os olhos nele.

Elard odiava ervilhas, mas por algum capricho do destino, lá estavam elas no prato, encarando-o como se desafiassem sua aversão.

― Entendo.

O homem de ombros caídos ― e de olheiras fundas abaixo dos olhos ― aceitou que o frango mergulhado no molho de ervilha era melhor do que sentir sua barriga borbulhar. No pior da situação, ele lutou para não agradar o filho que adorava encontrar maneiras de irritá-lo.

Seus jogos repetitivos eram previsíveis para o rei, e Elard fez questão de evitar o pirralho, que até então, esperava ansioso para uma reação explosiva.

Tirá-lo do sério era como ganhar um baú de tesouros.

― Minha mãe gosta de ervilhas, não é? ― Raygan deu um passo à frente e pegou uma uva roxa da tigela exposta na mesa.

Hmmm… ― Era doce e saborosa.

― Já entendi a razão de sempre o encontrar embriagado ― alfinetou, na busca de desestabilizar a face indiferente ― irritantemente inabalável.

Elard levantou a colher em direção à boca, preso em um dilema refletido em seu rosto, que parecia perdido em pensamentos. No entanto, ele era mestre em manter suas emoções sob controle.

A textura do legume o lembrava de estar em um campo de batalha, pronto para enfrentar o desconhecido.

― Sério? Você deveria trabalhar melhor em suas provocações. ― Elard mastigou as ervilhas com uma determinação quase vingativa, na tentativa de ignorar o sabor desagradável que invadia sua boca.

O incômodo, ainda que insignificante, contrastava com o prazer que sentia ao observar a expressão desdenhosa de sua criação. A cor do cabelo de fios um pouco mais escuros que os seus; os olhos semicerrados, o nariz reto… Era impossível negar a semelhança.

Raygan tentou provocá-lo. ― Você é uma vergonha para o império.

Seu propósito ainda se mantinha incerto aos olhos do pai. E num suspiro lento, Elard desviou o foco da comida, deixando cair o talher de prata sobre a mesa num ruído pesado.

Ele se sentiu incapaz de tolerar a insistência incômoda.

― Sua mãe está ocupada? ― Pôs-se de pés, exigindo outra taça, e que esta estivesse cheia de vinho.

Raygan alterou a voz ao ver que o monarca bebia mais uma vez. ― Por que quer saber? Diferente de você, ela saberia governar!

Em situações cotidianas, Raygan buscava conforto em ser irritante, mas nem sempre alcançava o efeito desejado. Elard percebia que, ao testar a paciência, Saône, sua esposa, emergiria vitoriosa sem esforço.

― Por nada. ― Elard colocou a bandeja trazida pelo serviçal na mesa, vazia após o deleite.

Ele parou diante de Raygan, onde a estatura do rapaz não alcançava seus ombros largos. O imperador estudou o rosto franzido do filho por um momento, mergulhado em alguma lembrança distante.

Um silêncio duradouro.

― O formato do seu rosto está cada dia mais parecido com o de seu irmão. ― Sua mão tocou o queixo do príncipe, o qual desviou rapidamente, aborrecido com a comparação descarada. ― É lamentável que não tenha herdado a educação dele.

― Não me compare com ele! ― ele gritou em protesto, como se o imperador tivesse tocado numa ferida no coração do garoto há tempos.

E Elard, indiferente a ele, caminhou até a porta, dizendo:

― Está tudo bem. Mesmo que se esforce, jamais será como ele.

Ele alcançou o impacto desejado, mas não previra que o garoto teria uma resposta à altura.

― Diferente dele, não estou debaixo da terra. Eu não desperdiço meu tempo venerando um filho morto. ― As palavras saíram com um desabafo involuntário. ― Você é assim, afinal de contas. 

Raygan cerrou os punhos, incapaz de encarar Elard. A sombra do torso do imperador o envolveu. Os olhos negros, inexpressivos diante de suas palavras, eram os mesmos que o haviam virado as costas no passado.

Elard refletiu sobre a tenra idade de Raygan, surpreendido pela frieza como protestou, sentindo os pelos de sua pele branca, queimada pelo sol, arrepiarem. 

Raygan obteve o que buscava, mas o efeito de ser comparado ao seu irmão deixou uma ferida em seu orgulho. 

Ele limpou os lábios na costa da mão.

Se ao menos pudesse discernir a diferença entre a raiva pulsante e a inveja, talvez encontrasse um caminho para dissipar o gosto azedo da uva que perdeu seu doce sabor.

Não muito distante, Thayrin percorreu o amplo corredor, onde o teto se erguia majestoso, decorado com quadros e pinturas semelhantes às obras renascentistas deslumbrantes. Sob seus pés, havia um tapete vermelho ― de riqueza e requinte ― que guiava seu caminho.

Ao chegar a uma bancada de madeira refinada, a infanta notou um vaso de porcelana ricamente ornamentado ― com linhas e curvas detalhadas em azul ― e, com pesar, viu três flores murchas do arranjo. As pétalas brancas espalhadas pelo chão pareciam fragmentos de sonhos despedaçados, e uma sombra de tristeza cruzou o rosto da infanta, suas mãos oscilantes ao tocar a porcelana fria.

Thayrin observou a decadência da flor, seu delicado aroma substituído por um odor amargo de decadência. Uma onda de calor subiu pelo seu peito, e suas mãos cerraram-se em punhos.

― Ei, você!

O chamado cortou o ar, ecoando pelo corredor vazio. Thayrin, de passos decididos, avançou em direção ao guarda, cujos olhos pesavam de cansaço. Mas ela não hesitou em apontar para as rosas murchas à sua frente para mostrar ao guarda do seu erro imperdoável.

A armadura do homem parecia pesar mais sobre ele. Os olhos de Thayrin, iguais à neve de uma avalanche impiedosa, prendiam-no como uma presa numa teia. Não houve resposta imediata do guarda, apenas uma sensação crescente de desconforto. Seu silêncio falava mais alto do que palavras.

Thayrin fico à espera de uma resposta, todavia, ouvia somente o canto dos pássaros.

― O que há de errado com você? Onde estão os malditos criados? ― Sua voz irrompeu em fúria.

O guarda permaneceu imóvel, a mão firme no cabo da lança. Contudo, antes que Thayrin pudesse condená-lo, uma moça de cabelos castanhos, com um coque trançado, a mesma que a acompanhara à butique, interveio.

― Alteza! Me perdoe, esqueci de avisá-la que hoje os criados estão ocupados na cozinha e na decoração do salão.

Ela se movia em passos rápidos e saltitantes, apertando o vestido para facilitar a corrida, enquanto expressava, ofegante e ligeiramente desarrumada.

― Que seja! ― Thayrin fitou o homem, observando sua quietude incomum. ― Cada um conhece o papel que desempenha neste palácio. É uma vergonha que poucos compreendam o significado da competência.

A princesa virou o rosto, o vaso em seus braços como uma criança de colo.

Quando Thayrin deu-lhe as costas, a jovem dirigiu sua atenção ao guarda junto de um suspiro contido em relação à atitude da princesa.

No gesto delicado, ergueu a mão, seus dedos juntos e a palma voltada para baixo. Ela tocou suavemente o centro do peito em um pequeno movimento circular enquanto expressou:

― Desculpe.

Um sorriso afetuoso iluminou o rosto do homem, tranquilizando-a seguido de gestos suaves das mãos. Thayrin apressou-se nos degraus da grande escadaria.

― Vamos, Nadye! ― Instigou, expressando insatisfação com a demora de sua dama.

A jovem, habilidosa com as mãos, declarou em sinais:

― Preciso ir.

Porém, o guarda pausou a mão no ar e articulou:

― Você sabe que pode falar comigo. Fiquei mudo, não surdo. ― O sorriso permaneceu em sua face.

Ela soltou uma risada, a mais fofa e incomparável aos olhos do guarda.

― Gosto de praticar.

Num ato consciente, o guarda segurou a mão em um aperto suave. Ele a impediu de partir; tinha pouco tempo para admirar as pequenas sardas espalhadas nas maçãs do rosto dela.

Nadye lançou um olhar à princesa, temerosa das possíveis consequências de suas ações. A incerteza pairava sobre ela; perder tempo com qualquer pessoa que não fosse sua alteza poderia ter um resultado desagradável.

― Eu… ― Sua voz hesitante foi a senha para que ele a envolvesse num abraço firme, pressionando-a contra o peito robusto. ― Syfer…

Ele afundou o rosto no ombro direito de Nadye, seus músculos vigorosos resistindo a soltá-la.

Ao perceber que Thayrin observava a rosa murcha, Nadye aproximou-se do guarda de pele morena. Na ponta dos pés, esticou-se para alcançar seus lábios.

Syfer era alto, e mostrou alegria ao vê-la tão empenhada em tocá-lo.

Ele admitiu a derrota; seu coração agora pertencia a ela. Sem vacilar, inclinou o pescoço em sua direção, desejando-a dia após o outro, como se o ar fosse escasso.

Foi um beijo apaixonante; um momento guardado com muito carinho na mente de Syfer.

Por pouco tempo, mas satisfatório.

Como bem lembrava, o batom de Nadye tinha gosto de morango. Doce, como seus lábios harmoniosos.

― Até mais tarde. ― Nadye correu para os degraus, suas mãos firmes no vestido, e seu rosto exibia sinais de rubor, tão vívidos quanto suas bochechas coradas.


Não Esqueça De Regar As Rosas!

Rascunho | Ilustração: Rhainah; Duda e Biscoito

 

 

Thayrin ama cuidar de rosas; de suas pétalas e espinhos.



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