Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 1: O Grande Dia

OLPHEIA

 

O ano era 459 depois da Guerra de Redron. 

Na cidade de Ariuch, um garoto correu pelas ruas de tijolos enquanto distribuía jornais com as últimas notícias do conflito entre as duas maiores potências da época.

― Mais uma terra de Lorist conquistada? ― comentou uma senhora ao folhear o jornal. ― Maravilha! ― Ela balançou o leque, empolgada ao descobrir que o reino se apossou de mais um território.

― Lorist será nossa, madame!

 O garoto estendeu a mão para receber uma moeda de prata do senhor que acompanhava sua esposa ― ele tinha um bigode grande e os olhos do garoto não conseguiam se desviar dele. 

Simpático, sua cartola dava um charme a mais. 

O jovem jornaleiro tocou a ponta do chapéu em cumprimento ao casal e prosseguiu entre os habitantes que caminhavam pelas calçadas agitadas, porém pacíficas da capital de Olpheia. 

Para completar a sensação de paz, um guarda montado em seu cavalo rondava pela calçada. Ele mantinha a mão direita no punhal da espada e analisou com atenção a movimentação do local.

Os casarões de grandes janelas ficavam próximos aos comércios mais frequentados e, entre eles, a butique da Madame Marie-Charlotte se destacava. Nela, uma linda dama de cabelos cor de bronze ― um ruivo escuro estonteante ― acariciava os diversos vestidos, alguns feitos de tecidos mais refinados que outros. 

Ela irradiava alegria ao ver um vestido da cor rosa pálido floral, semelhante aos modelos vitorianos que estavam na moda no reino. Mulheres de vários lugares da cidade preparavam-se para o grande dia, o debute da princesa. 

Um dia mais que especial para as moças debutantes da alta sociedade, em especial, para a menina de olhar determinado.

A infanta girou com o vestido colado em sua vestimenta e cantarolou uma melodia, imaginando-se em uma coreografia de valsa.

Nam, nananamm… Uhuhum 

A jovem ― entre quinze e dezesseis anos ― apertou os olhos, imersa no cenário criado em sua mente. 

― Irei levá-lo ― ela atirou o vestido no sofá. ― Que Deus a ilumine outra vez, Marielotte. Este é perfeito. 

Mais-que-perfeito, o único que a agradou. 

Marie-Charlotte dobrou o vestido e sentiu, de soslaio, que a princesa observava suas ações.

― Obrigada pela preferência, princesa. Suas visitas à loja têm atraído ótimos clientes. 

A princesa dirigiu sua vista à janela, e ao fazê-lo, viu um grupo de moças da sua idade aglomeradas no portão médio de ferro da loja. 

Elas estavam animadas, numa espera aflita ― e ansiosa ― para que a menina,  membro da realeza e de rara beleza, oferecesse a atenção de seus olhos azuis-acinzentados; vibrantes e intensos. 

A expressão similar à de um rei carrancudo em especial ― um nada amigável.

― Veja, a princesa olhou para mim! ― exclamou uma delas, levada pela empolgação. ― Princesa Thayrin! ― A menina alçou a voz para tentar chamar a atenção dela. 

Thayrin se deu conta de um sentimento incômodo que a fez mudar a direção do rosto. Era desprezo, somente.

― Idiotas. ― Ou intrometidas, era desconfortável e irritante tê-las por perto. 

Marie-Charlotte evitou tomar qualquer atitude que pudesse fazer Thayrin perceber seu olhar intrometido em sua direção. Embora curiosa, ela já tinha vislumbrado um pouco de sua personalidade. 

― Princesa, está quase na hora do almoço. ― Uma moça informou, mais conhecida como sua dama de companhia.

Diante do anúncio, Thayrin se levantou do sofá e apenas encarou a velha ― de aparência surpreendentemente conservada.

Thayrin elevou o queixo. A posição da menina, em contraste a de uma mera serva, abateu a mulher já experiente com a vida.

Era a arrogância encoberta no rosto atraente dela que Marie-Charlotte parecia conhecer muito bem. Inconfundível. 

A mulher de cinquenta e sete anos a encarou por uma fração de tempo. Sua face simpática transformou-se em uma expressão desdenhosa quanto a menina. No entanto, sem contestar, respirou fundo e embalou o vestido, pois enrugar ainda mais as rugas não lhe custara o preço que iria receber pela roupa. 

O dinheiro era precioso, sem dúvidas.

O sino no topo da torre da catedral antiga, próxima ao palácio, ressoou em doze badaladas, marcando a chegada da hora do meio-dia.  

Durante o ecoar do som inconfundível, os membros da corte imperial desfrutavam de um momento de descontração e alegria. Alguns trocavam gracejos e risadas, enquanto outros jogavam as cartas do baralho como se suas vidas dependessem da pilha de moedas de ouro ao centro da mesa. 

De outro modo, em um salão silencioso, de amplas janelas que permitiam a entrada dos raios do sol, destacava-se um trono luxuosamente adornado e posicionado no topo de uma escadaria. 

O ambiente era solene. 

As duas cabeças dos leões ― de bocas abertas e dentes afiados à mostra ―  esculpidos nos braços do trono pareciam rugir junto ao reverberar da última badalada. 

Nele ― no trono ― havia um rapaz sentado sem preocupação, recostado nas almofadas avermelhadas, dedicado à leitura de um livro. Sua expressão era séria e suas olheiras nítidas, resultado de uma noite mal dormida.

Imerso na história que lia, o garoto de onze anos não percebeu a presença de uma mulher de postura cansada que o chamava repetidas vezes. Ela não conseguiu conter sua frustração, então, apoiou as mãos na cintura e dirigiu-se a ele.

 ― Raygan! Pelos céus, está surdo? ― inquiriu, transtornada com a falta de atenção do filho. 

― Oi, mãe ― expôs, acomodado no assento com desleixo. ― Estou ocupado. ― Ele moveu a franja de sua testa para o lado. 

O cabelo liso, mediano, de pontas onduladas e da cor do mel atrapalhava a leitura.

― É hora do almoço ― ela se aproximou dele e tomou o livro de suas mãos. ― Vamos, seu pai está esperando.

Raygan desfez as pernas cruzadas e levantou seguido de uma pergunta:

― Vai almoçar comigo? ― Era de seu desejo que ela estivesse junto. 

― Não, querido. ― A mulher, de cabelo fiel ao da princesa, acariciou a bochecha do rapaz que franzia o cenho. ― Almocei mais cedo devido ao trabalho. Sinto muito. 

― Hah, que seja… ― Raygan desviou o rosto do toque suave de sua mãe, deixando-a sozinha no extenso salão. 

A imperatriz fez uma respiração profunda e esforçou-se para esconder suas emoções, à medida que seus lábios, hábeis em ocultar sentimentos, ficaram selados, acostumados à ação.

Um príncipe quieto na vista grossa da corte, o herdeiro do trono que preferia ficar afastado dos demais e desfrutar de sua própria companhia. 

Ele caminhou pelo corredor que parecia não ter fim ao atravessar o espaço libertino que o irritara com a devida razão.

Além de barulhento, todas as vozes e gargalhadas estéricas pregnaram em seus tímpanos. 

Morram de uma vez! ― Se deixou levar por um pensamento momentâneo. 

As damas encantavam-se com sua aparência que espelhava a do imperador, contudo, Raygan permaneceu indiferente quanto aos elogios alheios em cochichos parcialmente audíveis. 

Na sala de refeições, os porteiros abriram a entrada para o príncipe. 

Ao levantar os olhos, foi ao encontro do imperador que se deliciava com uma taça cheia de licor. Presente com ele, um homem falava:

― Majestade, poderia levar minhas considerações a sério? ― Ele se esforçava para manter a voz calma. 

― Harl ― disse o imperador que exigiu mais licor no mover da mão. ― Jighal está no passado. Que tal vinho? ― Ele ofereceu uma taça. 

― Não…, obrigado. ― Suspirou. ― Majestade, Jighal foi uma fatalidade. Homens, mulheres e crianças, todas aquelas humildes pessoas foram brutalmente assassinadas!

― Preocupe-se apenas com as minhas ordens. ― Aumentou o tom da voz. 

O marquês não estava numa posição para exigências. 

 ― Entendo que Jighal era uma terra próspera para seus negócios no porto. ― O imperador tomou um gole do vinho. ― Estão mortos. Sua solidariedade não irá trazê-los de volta. Já se passaram dez anos. Esqueça-os.

Licor e vinho? Uma combinação de sabores ou um explosivo? Harl mal teve tempo de pensar numa resposta adequada. 

O homem de cabelos negros abaixou o olhar, deixando escapar uma mecha lisa que cobriu parte de seu rosto. A veia em seu maxilar pulsava, entretanto, devido ao efeito do álcool, o imperador de nada valia para seus questionamentos.

Harl tinha uma barba bem cuidada e olhos azuis como o fundo do mar, características que chamavam a atenção, em especial, por sua idade, que aparentava estar distante dos quarenta anos para um título tão desejado. 

Ao testemunhar a cena, Raygan contraiu os lábios ao ver o estado embriagado de seu pai. 

O marquês prestou reverência ao monarca, dizendo:

― Glória e honra ao Leão Dourado, Vossa Majestade. ― Harl mostrou uma boa oratória, embora não escondesse o maxilar tensionado.

Ele curvou a cabeça e, ao erguê-la, presenciou o príncipe herdeiro andar na direção do pai. 

Raygan evitou olhar para alguém abaixo de sua posição, e para Harl, os ombros jogados para trás e a cabeça voltada para cima era mais uma prova  de que Olpheia estava rendida a uma família que ia contra seus ideais. 

Contra seus valores.

De todo o modo, nada mais lhe despertava interesse na sala que parecia sufocá-lo. Elard estava absorvido em seu deleite com a bebida, e logo, Harl desvinculou-se dos dois, deixando-os. 

Parado ao lado do homem que abria um sorriso satisfeito toda vez que o serviçal enchia a taça, Raygan sentia a fadiga dominar seu corpo. Revoltado com a situação miserável do rei, não conseguiu esconder o olhar cortante na direção de seu genitor. 

Antes que Elard pudesse pegar a bebida, Raygan bateu na taça, fazendo-a cair no chão; o vinho desperdiçado se espalhou pelo pavimento.

Ouviu-se o som do objeto de vidro estilhaçado no chão em vários cacos e em diferentes direções.

Os olhos de Elard se fixaram no líquido derramado, mas lentamente se voltaram para o filho. Ele o encarou, arqueando as sobrancelhas.

O silêncio tomou conta do local e Raygan observou atentamente a face do monarca. Ambos de olhos cerrados um para o outro.

Raygan gostava de jogos, principalmente o que envolvia testar a paciência dos outros; de qualquer um que o contrariasse. E numa espera dissimulada, estava curioso para ver a reação do imperador.


Licor ou Vinho?

Suco de Uva

Ilustração: Rhainah

 

 

Raygan acha o suco de uva melhor. XD



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