Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Prólogo

ARMADURAS PRATEADAS

 

Em um vilarejo ensolarado, quatro crianças de estaturas distintas mergulhavam na brincadeira fervorosa de lobo e ovelha, à beira da exuberante floresta. Lorist irradiava uma aura suave que acariciava as narinas, um perfume doce de flores e vegetação que envolvia as modestas casas desgastadas.

Perto dali, um grupo de homens habilidosos ordenhava as robustas vacas no estábulo, concentrados no árduo trabalho ― e o suor não parava de escorrer de suas testas quentes. No pasto verdejante, eles colhiam a recompensa de seu esforço, enquanto o sol lançava seus raios dourados no cenário campestre.

Na ribeira próxima, as mulheres, imersas na correnteza cristalina, batiam vigorosamente as roupas nas grandes pedras. A água salpicava ao redor delas; seus movimentos rítmicos enchiam o ar com uma energia contagiante ― de famílias diferentes, porém unidas. Era uma tarde de calor abafado, mas a força das mães, avós e outras moças excedia o clima, impulsionadas pela determinação de suas tarefas.

De repente, ecoaram gritos intensos que interromperam a tranquilidade da atmosfera. Uma onda de emoção vinda de corações acelerados das vozes ofegantes, que pertenciam aos filhos inquietos dos habitantes. Com as madeixas meladas, eles corriam em fuga desesperada e incansável, pois um garoto travesso persistia em perseguir uma presa lenta.

Os risos e os batimentos acelerados dos pequenos preenchiam o ambiente com uma doce melodia de aventura e inocência.

A menina, alvo do lobo, correu apressada pelas ruas estreitas da pequena localidade, seu coração batia em desordem no peito. Desesperada para escapar, ela esbarrou em uma senhora de olhar carrancudo.

O impacto quase a fez cair com a face na estrada de terra amarelada, mas numa reação espontânea, a velha agiu com rapidez e firmeza; ela agarrou a menina pelo braço e a impediu de tombar, e as mãos enrugadas da senhora seguravam a garota com uma força surpreendente.

Antes que pudesse recuperar o fôlego e agradecer, um estrondo ensurdecedor varreu a vila. O solo tremeu sob seus pés, e as pequenas pedras no caminho se agitaram e saltaram por toda a estrada.

A confusão se instalou num piscar de olhos; as barracas dos vendedores, cheias de especiarias e objetos preciosos, balançaram abruptamente, derrubando as mercadorias.

Vozes agitadas se misturavam aos passos largos e desesperados. Era um aviso urgente para os demais moradores que, até então, pareciam inertes ao som metálico das armaduras dos soldados, juntamente de seus canhões.

Os guerreiros marchavam ― distantes de qualquer pensamento piedoso ― em direção ao povo do vilarejo. A maioria estava com trajes esfarrapados, de qualidade muito inferior ao homem montado em seu majestoso cavalo branco que liderava o exército com altivez.

A tensão pairava no topo da colina preenchida pelos cavaleiros de avanço sincronizado, e a menina, ainda segurada pela senhora, sentiu o medo embrulhar seu estômago.

A figura majestosa mantinha o rosto escondido debaixo de um elmo brilhante, que permitia a abertura dos seus olhos opacos e profundos. O seu corpo era protegido por um peitoral de aço e o manto vermelho de veludo cobria a traseira do animal, guiado para a área humilde da terra localizada à fronteira do território.

Bandeiras com o brasão de um leão feroz foram penduras em lanças, levantadas à vista dos amedrontados que paralisaram ao contemplarem a coroa mergulhada em ouro.

Em contrapartida, na lavoura recém-colhida, um jovem mancebo carregava com cautela uma cesta pesada, repleta de grãos e suado devido ao cansaço. Todavia, a caminhada cuidadosa foi interrompida quando seus olhos se depararam com a visão do exército que se aproximava.

Ele paralisou por um instante, e o medo tomou conta dele. Incapaz de conter sua angústia, seus lábios traíram seu temor em um xingamento audível, rompendo o silêncio da paisagem. O palavrão chamou a atenção de um homem que estava ao seu lado, alheio à presença dos soldados.

Contudo, antes que pudesse reagir, a cesta escorregou de suas mãos. Ele caiu no chão e a colheita se espalhou por toda parte. E ao recobrar o fôlego, o jovem soltou um grito de alerta, fazendo com que as pessoas ao redor se voltassem para ele. Sua voz foi ouvida pelos campos.

― O imperador está aqui!

Ele correu e tomou uma criança nos braços, esta, o lobo da brincadeira cessada pela aflição dos cidadãos na busca de reunir seus parentes. Ciente do perigo, a senhora apertou o pulso da menina e, com suas últimas reservas de energia, disparou em meio à multidão em pânico.

Seus passos rápidos eram acompanhados pela criança, cujos olhos transbordavam medo e incompreensão. O indivíduo estava cercado por várias fileiras imponentes de soldados, com expressões resolutas e postura que denotava prontidão e disciplina.

No entanto, ao observá-lo com atenção, o general em sua montaria percebeu uma hesitação palpável na face distante de seu rei. Era como se seus pensamentos o envolvessem em uma névoa confusa ― incerto e indeciso sobre como proceder.

― Majestade? ― indagou o homem da barba rasa composta de fios acinzentados.

Ao captar a voz do seu leal companheiro de guerra, os olhos do sujeito faiscaram raiva, com a cabeça momentaneamente inclinada para cima, acompanhado de um suspiro fadigado que escapou de sua boca.

Era evidente que ele estava ali por um motivo maior. Então, num gesto lento, o imperador ergueu a mão protegida pela vistosa armadura e apontou para o alvo à sua frente.

Após o sinal realizado, o general à sua direta apertou a embocadura do cavalo ao som grave de seu grito, como um rugido de guerra, enquanto sua espada se erguia no alto.

Em perfeita sintonia, os outros soldados em volta fizeram o mesmo. Suas armas reluziam à luz do sol, prontas para posse da terra.

 

Na vila, restava apenas o caos e a destruição.

Os cavaleiros, montados em seus suntuosos cavalos, avançaram, empunhando tochas incandescentes que transformavam barracas, casas e a vegetação em chamas crepitantes. 

Não havia compaixão ― era divertido para eles. 

Homens indefesos eram espancados impiedosamente, ao mesmo tempo que as mulheres eram arrastadas pelos cabelos e lançadas ao chão diante dos olhos atemorizados de seus filhos. 

O terror era refletido nos rostos das pessoas que corriam, fugindo, ainda que fosse em vão. Entretanto, antes que um soldado enfurecido pudesse traspassar sua espada no pai de família que o desafiara, o general elevou sua própria espada para interceder. 

Sua voz tinha um tom áspero:

― Esqueceu das ordens, soldado? ― perguntou, repreensivo. ― Quem é o chefe aqui?

A lâmina da espada do general apontou para o pescoço do cidadão ― um lembrete inquestionável de sua autoridade, mas ainda assim, junto do seu código moral e de honra. 

O morador ― de fala trêmula ― pronunciou um nome no caminho indicado. Era a resposta que o general aguardava. 

Num movimento rápido da cabeça e no estalar de língua para chamar a atenção de seu cavalo, o experiente velho partiu para o local designado, acompanhado pelos soldados. Um deles, cheio de desprezo, cuspiu no homem e seguiu adiante, sem olhar para trás. 

Sem perder tempo, uma porta foi brutalmente arrombada com um chute, e o homem referido como líder da vila se viu cercado por meia dúzia de soldados. 

Sua testa pingava e seu coração acelerava toda vez que escutava o som das armaduras dos homens, cujo propósito não era outro a não ser levá-lo. 

Vivo ou morto? Era um assunto de pouca importância. 

No centro da formação intimidante, o general se posicionou e assumiu a linha de frente. Logo atrás dele, caminhou a figura real, movendo-se com uma calma perturbadora para perto do líder da vila. 

O imperador retirou seu elmo e relevou um rosto indiferente que, mesmo assim, emanava apreensão. Seus cabelos ― dourados como mel, de tom parcialmente castanho ― eram caídos para trás, exibindo volume e ondulações.

Ele permaneceu em silêncio, com seus olhos fixados no líder da vila; junto dele, a presença de sua família que se escondia atrás de uma mesa caída. 

O chefe não demonstrava medo ou arrependimento por seus atos; ao contrário, estava sorridente e sua feição debochada. 

Repugnado pela expressão do homem, o general não conteve a indignação e desferiu um soco em seu rosto ― uma afronta inaceitável para ele.

― Desgraçado! ― bradou o general num aperto forte no braço do líder, arrastando-o para fora da residência. 

― Pai! ― gritou um garoto, contido pela mãe que protegia a barriga com o braço.

O imperador voltou sua visão para a residência do homem. Seus olhos não demonstravam emoção alguma, como se uma escuridão profunda tivesse tomado conta de sua mente.

Enquanto era carregado por dois soldados, o detido proferia palavras obscenas e insultos aos homens, sem nenhum medo. Um soldado pegou um pedaço de madeira e o colocou sob a cabeça do líder, no aguardo das ordens do rei, que observava lentamente o pequeno garoto com uma expressão temerosa.

O imperador sentiu receio; uma paralisia momentânea tomou conta de seus pensamentos. Ele refletia sobre o motivo de estar na presença das pessoas que não tinham relação direta com o ocorrido.

O general se deteve a esperar para constatar se o imperador hesitaria novamente. No entanto, antes que sua incerteza pudesse ser percebida pelos soldados, um homem com uma armadura montado a cavalo desceu do animal, interpelando-os:

― É ele? ― Estava tenso por uma razão.

― Senhor Baylam. ― O general fez uma reverência. ― Sim, Vossa Graça ― confirmou.

O duque desembainhou sua espada e apontou-a na cabeça do líder, preparado para agir. Contudo, ele foi interrompido pelo imperador.

― Ahoneu, espere. ― O imperador desviou o olhar para o chão, sem coragem de encará-lo.

Desacreditado, o homem de cabelos ruivos flamejantes falou mais alto:

― Não brinque comigo! ― gritou com uma ira avassaladora, apontando o dedo no peito dele. ― Mostre a eles quem é você! ― Ele pegou a espada e o forçou a tomá-la, entregando-a com grosseria.

Imobilizado, o líder soltou uma risada zombeteira ao imperador. E em total desprezo por sua condição, proferiu:

― Este império precisa de um líder. ― Suspirou com soberba. ― E você… O que pensaria o antigo imperador ao ver o que causastes a esta terra? Uma guerra sem fim. Mulheres e crianças sendo levadas para o inferno… ― Ele rangeu os dentes. ― Você fez isso! ― Aumentou o tom da voz.

E, de cabeça baixa e os olhos intensos para o imperador, o líder finalizou:

― Olphéia nunca e jamais será sua! Vida longa ao leão dourado!

No rápido mover do braço, Ahoneu puxou a espada e, num golpe fatal, cortou o pescoço do homem.

― Traidor insolente. ― Cuspiu no cadáver. ― Elard, está na hora ― falou ao monarca.

Elard fez uma respiração profunda. Sua face era indescritível, distante da realidade do fogo, sangue e cinzas da vila.

De súbito, o som das gotas de chuva nas armaduras dos soldados fez-se ouvir. As chamas se espalharam pelo terreno, e os cidadãos que pararam para testemunhar a cena grotesca, se tornaram alvos da implacável ordem do imperador, que declarou:

― Queimem tudo. ― Elard montou em seu cavalo e partiu com o general.

O duque observou a vila, avistando os habitantes se reunirem com suas famílias. Apático ao alívio estampado em seus rostos, Ahoneu apertou o cabo da espada e deu suas ordens ao restante dos soldados que permaneceram na região, dizendo:

― Matem todos.

Os soldados que ansiavam por algo maior abriram um sorriso aterrador, avançando contra a população.

O duque jogou seus cabelos para trás e soltou o ar pesado de seus pulmões. Sua espada refletia o brilho das chamas.

Os sons de grunhidos de morte e peles sendo rasgadas era como de um abatedouro, este, de seus inimigos. E ao caminhar sobre o corpo sem vida de uma senhora ensanguentada, Ahoneu ignorou a presença de uma criança que chorava aos prantos.

A chuva se intensificou e, sem pressa, as chamas se apagavam, restando apenas as cinzas e o cheiro enjoativo de sangue pelo chão lamacento.

 


Príncipe de Olpheia

Ilustração Capa: Maria Duda e Biscoito

Ilustração abaixo: BlueLicorfino

Raygan Ehnov II

 

 

 

 

 



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