Volume 1
Capítulo 38: Um Acampamento Improvisado. E uma Barraca
FLORESTA, RUÍNAS DE KANARIS
Era um pouco arrepiante como as árvores pareciam se curvar em uma reverência macabra, envolta da fila de jovens que se arrastava para dentro do desconhecido. Kanaris, ou melhor, o Forte de Kanaris, era conhecido por ser um local de defesa, que protegeu muitos homens quando a rebelião se instaurou na capital de Olpheia.
Com suas torres despedaçadas e muralhas corroídas pelo tempo, era um lugar um pouco sombrio, porém, as ruínas serviram como um bastião para os perseguidos, protegendo vidas enquanto espiões e soldados inimigos rondavam como demônios assassinos, determinados a extinguir a linhagem real.
Uma única criança havia sido marcada como o alvo de maior valor, um símbolo de esperança para uns e de destruição para outros.
Isso precisava acabar.
Próximo da trilha que levava até a parte mais escura da floresta, as pedras dos antigos muros ainda suportavam as cicatrizes deixadas pelos embates, mas o ambiente ao redor parecia clamar por descanso. Galhos retorcidos estalavam ao toque do vento, e o cheiro da neve úmida misturava-se ao leve aroma de madeira queimada, onde um grupo de jovens lutava para acender uma fogueira.
— Droga, esses galhos estão ensopados! — reclamou Thomaz, jogando as pedras de sílex com frustração na neve fofa.
— Tente isso — disse um dos garotos, erguendo um punhado de feno seco. — Peguei no estábulo.
— Oh, valeu!
Poucos segundos depois, um fio de fumaça ascendeu no ar, crescendo até se transformar em uma chama dançante que iluminou o acampamento improvisado. A luz tremeluzente dissipou parte da neblina, revelando rostos jovens, marcados por pelo cansaço e animação.
Eles estavam comemorando, felizes por algo tão… estúpido?
Raygan os estudava de longe, vendo os sorrisos em seus rostos; dois deles saltitando, alegres pela pequena conquista.
— Idiotas… — murmurou, baixando sua bolsa de couro sobre a neve. Ele puxou o manto grosso sobre os ombros, cobrindo-se até os calcanhares, e lançou um olhar crítico para o recruta ao seu lado. — Por que está demorando tanto?
Daemis, ajoelhado ao lado de um galho de madeira torto, ergueu os olhos e riu.
— Bem… eu só tenho dois braços. Já tentou montar uma barraca na neve? É mais difícil do que parece. — Ele gesticulou com ironia, numa tentativa de fixar a madeira na base nos flocos de neve.
Raygan bufou, contudo, seu olhar foi atraído pela formação do acampamento, onde a natureza, de algum modo, conspirava em favor deles. As árvores formavam um círculo quase perfeito, como se estivessem protegendo os jovens sob um dossel de galhos entrelaçados. No entanto, para o jovem príncipe, sentindo uma leve beliscada perto da nuca, notou algo diferente na inquietante proteção: uma sensação de que eles estavam sendo observados — ou mesmo, julgados.
Ele tocou no pescoço, seu olhar subindo aos céus, e descendo às áreas intransitáveis da floresta.
— Não deveríamos estar treinando em vez de desperdiçar tempo com barracas? — perguntou, sua irritação evidente enquanto sentia um arrepio na espinha. Era como se um lobo pudesse saltar para fora dos arbustos, ou então, o próprio inimigo.
Daemis deu um meio sorriso, firmando a corda em uma das estacas. — Não percebeu? Nosso treinamento já começou.
Raygan cerrou os olhos.
— Como assim?
— Em Jighal, éramos obrigados a montar acampamentos toda semana, sempre que o conflito mudava de lugar. Era parte do treinamento. — Ele puxou a corda mais uma vez, certificando-se de que a estrutura estava firme. — Da última vez, Balmont nos surpreendeu com uma chuva de flechas. Por sorte, poucos se feriram, mas… — Ele indicou o ombro direito, onde uma cicatriz desbotada atravessava a pele. — Uma delas passou de raspão aqui. Foi assustador.
Raygan franziu o cenho, pensativo. Ele desviou o olhar para os soldados e reparou no mais velho.
Halcan estava de braços cruzados, observando os rapazes com atenção. Sua expressão não demonstrava irritação, tampouco satisfação. Era mais sutil e indefinível.
Então, Raygan começou:
— Sempre imaginei que os ataques fossem mais… diplomáticos.
Daemis ergueu o olhar, confuso, antes de rir.
— Diplomáticos? Não mesmo! Balmont não sabe o que é honra.
— Não era isso que os livros diziam — disse, sua expressão escurecendo.
Daemis o estudou, ao tempo que um leve sorriso se desenhou em seus lábios.
— Seria bom se as guerras fossem como os livros que você lê, cheias de honra e finais gloriosos. — Ele puxou a corda com força, ajustando a barraca torta com um suspiro frustrado. — Nunca estive no campo de batalha, lutando, mas vi o suficiente. — Sua voz endureceu. — Soldados cobertos de sangue, trazidos às pressas para serem tratados pelas sacerdotisas… o cheiro de ferro e carne queimando nunca sai do ar. — Ele balançou a cabeça, afastando os pensamentos. — A guerra só termina quando um lado é completamente esmagado. É por isso que Kaleid e os soldados veteranos treinam sem descanso.
Raygan desviou o olhar outra vez, tentando processar o peso das palavras. Ao seu redor, os jovens trabalhavam com uma energia desorganizada, mas, no meio do caos, havia um ritmo peculiar e inspirador. Ainda assim, uma inquietação crescia no fundo de sua mente, um desconforto difícil de ignorar.
— Kaleid… ele é o irmão de Oracis, certo? — Seus olhos varreram o acampamento à procura do comandante.
Daemis parou, as mãos ainda no tecido da barraca, antes de responder:
— É, mas os dois não se falam muito. Tiveram uma briga feia antes da retirada. Ouvi dizer que Kaleid queria investigar uma vila perto da costa que divide Lorist, e Oracis achou que era arriscado demais. — Ele ajustou a lã sobre a estrutura. — Eles são bem diferentes, mas… de certa forma, dependem um do outro. Acho que é assim que funciona entre irmãos.
Raygan observou Daemis com atenção. Ele era uma figura difícil de decifrar: ora tolo, ora misterioso. Por que Halcan colocava tanta fé nele? O príncipe não conseguia enxergar a utilidade de alguém como ele em um campo de batalha. Alguém que temia a espada, enojado ao odor do sangue… Tão sensível e ingênuo.
— Você tem irmãos? — indagou de repente, surpreendendo a si com a curiosidade inesperada.
Daemis riu baixinho, entretanto, seu sorriso não chegou aos olhos.
— Tenho. Mas prefiro que pensem que sou filho único.
Raygan franziu o cenho, dando dois passos mais próximos.
— Por quê?
Daemis largou os ombros, sentando-se na neve macia. Com o olhar preso na barraca ainda torta, ele pronunciou:
— O que você faria se soubesse que sua família pode ser morta por sua causa?
A pergunta atingiu Raygan como um sopro de ar congelante em seu rosto. Ele esperou, enquanto Daemis continuava, sem erguer os olhos.
— O senhor Halcan me disse para inventar uma história: dizer que meu pai é um aleijado, minha mãe, uma simples empregada, e que eu tenho um irmãozinho que depende de mim. Tudo para que os soldados não suspeitassem de mim. Mas a verdade é... — Ele finalmente olhou para Raygan, com um pesar que nenhuma mentira podia esconder. — Eu não sei quem eles são.
O príncipe sentiu o coração disparar.
Quem era o garoto à sua frente? Para onde havia ido o tolo desajeitado com quem ele começava, estranhamente, a se familiarizar?
— E se eles forem rebeldes? — Daemis prosseguiu, a voz amarga. — Como aqueles que mataram o príncipe herdeiro?
Por um instante, Raygan sentiu um véu pesado tampar seus ouvidos. O silêncio o engoliu. Ele forçou os pulmões a se encherem de ar, em uma respiração deliberada e insuficiente para dissipar o fantasma do passado, que parecia assombrá-lo mesmo ali, tão longe de casa.
— Isso importa? — retrucou, com um tom mais ríspido do que pretendia. — Ele está morto, não?
Um mero cadáver apodrecendo debaixo da terra.
Daemis hesitou, e antes que pudesse responder, Raygan interrompeu.
— Esqueça isso. Diga-me, por qual motivo Kaleid iria sozinho para o território inimigo?
O jovem deu de ombros, colocando a mão no queixo.
— Não sei. Ouvi o senhor Halcan dizer que ele devia esperar até que um homem o ajudasse… um tal de Harwin. Ou Harvey? Hmm…
Raygan arqueou a testa, o nome soando familiar.
— Harley? O marquês de Fordwel?
Daemis franziu o nariz, um pouco confuso.
— Ford… o quê?
— Fordwel — corrigiu, irritado.
— Ah, isso. Sim, é esse o nome. Não o conheço, mas sei que ele é influente. Administra embarcações, ajuda vilas com comida, água e até dinheiro. O povo gosta dele.
Raygan tentou encontrar lógica no que via. Por que o marquês Harl, um homem outrora estimado como conselheiro do Primeiro Conselho, escolheria ajudar aos invasores de Olpheia?
— O velhote… sabe que Harl está ajudando Jighal?
Daemis balançou a cabeça e seu rosto assumiu uma expressão incerta.
É claro que não sabe! — caçoou Raygan, em sua mente.
O príncipe bufou, um som que carregava mais julgamento do que raiva.
De qualquer forma, Daemis não fazia ideia do que Aygnar — ou agora, Ray — estava pensando. Ele parecia imerso em um assunto que, embora trivial, conseguia despertar seu interesse.
Assim, levantando-se, o recruta limpou as calças, dizendo:
— Então… É aqui que vamos dormir. O que acha?
Raygan se aproximou com cautela, examinando o abrigo com ceticismo e desdém. Ele se inclinou, observando o interior modesto. O cheiro de madeira molhada misturava-se ao frio cortante que subia do chão.
— Como você consegue dormir num trapo desses? E nesse frio… — Ele chutou levemente a neve ao redor.
— Isso é simples! — expôs, agachando-se com entusiasmo. — Vou mostrar! — Ele limpou a neve debaixo da barraca com as mãos nuas, ignorando o gelo que mordia sua pele. — Primeiro, tiramos a neve. Em seguida, pegamos galhos para forrar o chão. E depois, colocamos o cobertor. — Ele ajeitou o tecido com cuidado. — Sem peles suficientes, é o melhor que podemos fazer. Os cobertores e a fogueira devem resolver o resto.
Raygan observava a demonstração, mas sua mente estava em outro lugar. Seus olhos pousaram numa carroça próxima, mal percebida até então, enquanto processava a explicação de Daemis.
— Espera… Galhos? — Ele firmou as mãos no manto, protegendo-o por completo com uma indignação quase cômica. — Eu não vou dormir em galhos!
E com um sorriso cínico, Daemis provocou:
— Você é tão bom em observar os outros, mas não consegue enxergar o que está em sua volta? — Ele apontou para as árvores ao redor. — É uma floresta. Não notou os pinheiros?
Raygan abriu a boca para responder, mas parou.
— Não vamos dormir em galhos. Vamos fazer uma cama improvisada. — Sorriu.
O peso do cobertor sobre seus ombros parecia ter aumentado, e ele olhou para Daemis, desconfiado e surpreso. Como alguém tão ingênuo podia ser tão habilidoso? O sorriso sincero dele, ainda mais irritante no frio que congelava o rosto de Raygan, bem como, uma provocação.
Ele não ia se dar por vencido, não o herdeiro do trono.
— Halcan lhe ensinou tudo isso, não foi? — inquiriu, com uma nota de sarcasmo afiada.
Aceitar ajuda era algo que Raygan desprezava, e a ideia de Daemis receber instrução parecia óbvia demais para ser ignorada.
Daemis, no entanto, respondeu com um tom firme. — Eu aprendi sozinho.
Raygan riu, indiferente. — E espera que eu acredite nisso?
Daemis deu um passo à frente, os olhos verdes fixos nos de Raygan. — É verdade. Lembra quando eu disse que o general me tratava como um estranho? Eu aprendi sozinho, observando soldados, sacerdotisas… qualquer um que me permitisse aprender.
Por um momento, Raygan se calou. Ele absorvia as palavras, porém, sua mente relutava em aceitá-las. Como alguém como ele, um príncipe, não vira o que um tolo parecia entender tão bem?
Foi quando a voz de Daemis soou novamente:
— O senhor Halcan me ajudou com algumas coisas. Mas sou péssimo em lutar — Mexeu nos cachos com timidez.
Raygan deixou escapar uma risada breve e seca. — Isso é óbvio. Sem ele, você não é ninguém. Apenas um estrangeiro.
Daemis abriu um sorriso torto, mas sua voz manteve o tom leve. — Você quer aprender a montar uma barraca?
Raygan arqueou uma sobrancelha, a ponta de seu nariz ligeiramente erguida. — Eu não preciso de ajuda.
De qualquer maneira, não era da natureza dele admitir.
— Haha, tudo bem.
Daemis estava contente em ver o semblante dele voltar ao normal. Todavia, a felicidade não durou muito tempo. No instante seguinte, a tenda desmoronou ao lado dele, provocando um salto surpreso.
Houve silêncio duradouro, e então, uma risada abafada.
Raygan riu baixinho, tentando esconder a reação. — Você é péssimo nisso, não é?
— Nunca disse que era bom. Só que sabia fazer — replicou, com o mesmo sorriso despretensioso.
Pela primeira vez em tanto tempo, Raygan não pôde conter o som do riso genuíno, baixo e discreto, mas perceptível o suficiente para que Daemis o ouvisse. Seus olhos gentis fixaram-se no garoto da alta sociedade, contemplando como sua expressão se suavizou diante dele — verdadeira e sincera.
Após isso, a manhã desenrolou-se como tantas outras.
Os garotos foram agrupados conforme a proposta de Joellis, cada um desempenhando seu papel em um balé improvisado entre o aprendizado e a adaptação num ambiente hostil. A de Joellis pairava pelo ar gelado, sem hesitação, conduzindo os meninos com uma autoridade que parecia incomum para alguém tão jovem.
E Halcan observava tudo, como um escultor examinando a pedra antes de desferir o golpe.
Os soldados veteranos mantinham-se sérios, suas expressões endurecidas e parcialmente relaxadas enquanto avaliavam os meninos. À distância, Joellis demonstrava como usar galhos para remover a neve. Pano molhado era dobrado e ajeitado com cuidado, as bases de cada barraca sendo fortalecidas contra o vento cortante. Mas enquanto Halcan admirava o sobrinho, seus olhos desviaram, quase involuntariamente, até encontrarem um par de cachos escuros que ele reconheceria em qualquer lugar.
O velho general parou por um instante, franzindo a testa. Daemis estava sozinho, trabalhando com dedicação em uma tenda que insistia em desafiar suas tentativas de erguê-la. As cordas cortavam o ar com um som agudo cada vez que ele ajustava o nó, no entanto, mesmo sua determinação parecia insuficiente.
Halcan olhou em volta, procurando pelas madeixas douradas — às vezes ruivas.
Então, de trás da armação, viu o príncipe.
Era mesmo ele?
Halcan piscou, os dedos cansados passando sobre as pálpebras como se quisesse limpar a visão de uma ilusão. Raygan estava ali, coberto por um manto pesado que lhe dava uma aparência ainda mais delicada, contudo, suas mãos…
Suas mãos estavam rubras, como se houvessem tocado diretamente na neve. E para o espanto do velho, havia um pequeno sorriso em seu rosto.
Era um sorriso sincero, que acompanhava a visão de Daemis rindo com ele, metade de sua perna presa debaixo do solo.
— Estou preso! — exclamou Daemis, tentando soltar metade da perna esquerda de um buraco oculto sob a neve. — Ugh! Eu não consigo sair!
— Espere, idiota! — Raygan aproximou-se, estendendo a mão. Ele fez força, mas sem resultado. — Merda! Você come o quê, uma vaca inteira?
Ele segurou o pulso de Daemis com firmeza, os dedos apertando a pele fria, enquanto puxava com toda a força de seu corpo. Seus pés escorregaram, e por um instante parecia que ele conseguiria resgatá-lo.
E Daemis, mais rápido do que prudente, impulsionou o próprio corpo para frente com força demais.
Raygan tropeçou, o pé preso na corda da tenda, e ambos desabaram em um emaranhado de pernas, braços e tecido, destruindo completamente a estrutura.
— Porra! — explodiu Raygan, sua voz ressoando pelo campo. Ele se contorceu para se levantar, esfregando a neve que havia grudado no manto.
Enquanto isso, Daemis rolava de rir, segurando a barriga enquanto lágrimas de riso formavam pequenas trilhas quentes em suas bochechas avermelhadas.
— Dá para parar de rir?! Droga, minha bunda está coberta de neve! — reclamou Raygan, o rosto tingido de indignação.
— Hahaha! Desculpa, eu não consigo!
— Eu vou arrancar sua língua!
Halcan observava tudo de longe, imóvel.
Sem aviso, uma memória perdida emergiu, como o calor de um fogo esquecido.
Dois irmãos… Não, dois amigos, tão diferentes, mas unidos por algo que nem o tempo, nem a guerra poderiam destruir. Um deles tinha o mesmo semblante altivo de Raygan, o outro a mesma vivacidade e ingenuidade de Daemis.
Se não fosse pela guerra — imaginou Halcan.
Seus lábios se curvaram em um sorriso melancólico.
Talvez a juventude ainda tivesse uma chance de salvar o que os mais velhos haviam destruído.
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