Volume 1
Capítulo 37: A Neve Congelante e O Fogo Ardente
ARIUCH, CAPITAL DE OLPHEIA
Em uma estação onde a neve castigava a terra e o céu, o canto dos pássaros ainda encontrava espaço para uma bela melodia matinal. O frio, embora severo, não calava suas canções, nem afastava os pensamentos do soberano, imerso em sua contemplação.
Elard girava lentamente a taça em suas mãos, admirando o rubi líquido como se fosse a primeira vez que o degustava. O brilho carmesim refletia no vidro, mas sua atenção se desviou apenas quando Saône se aproximou.
Com um leve aceno de cabeça, ele permitiu que ela se aproximasse de sua presença.
— Como posso ajudá-la? — Ele levou a taça aos lábios, deixando o vinho acariciar sua língua.
Saône avançou, seus passos tão silenciosos que poderiam ser confundidos com o suave deslizar de penas sobre o chão. Ela parou diante dele, a postura ereta e as mãos unidas, mantendo uma compostura imutável.
— Não tomarei muito do seu tempo. — Sua voz era firme, mas não hostil. — Gostaria de expressar minha gratidão por confiar Giorgya a mim.
Elard, por sua vez, não parecia tocado pelo agradecimento. Seu semblante permanecia sério, embora não estivesse indiferente.
— Tenho plena confiança de que fará um bom trabalho. — Ele pousou a taça sobre a mesa com um som seco. — A baronesa de Damesthia terá de entender que a inadimplência de seu marido não será tolerada. Muitas pessoas estão sofrendo, sendo torturadas, e até mortas. Tudo isso, pela negligência dele.
— Sem dúvida, é um problema delicado. Nunca imaginei que o barão pudesse fazer isso.
— E é por isso que não podemos confiar em qualquer um. — O canto de seus lábios se curvaram num pequeno sorriso. — Mas não é nada que você não possa resolver.
O olhar dele percorreu-a de cima a baixo, em um movimento tão rápido quanto minucioso. Ele a avaliou, desde o penteado que deixava à mostra o pescoço, até os brincos perolados e o colar que realçava sua clavícula, destacando a cor profunda de seus olhos, como cristais forjados pela neve.
Ele inclinou o torso um pouco mais adiante.
— Você sempre foi hábil em persuadir. Mesmo que eu não seja o tipo de homem a se deixar convencer facilmente.
Saône permitiu-se um leve sorriso, como se houvesse uma memória ou um sentimento perdido nas entrelinhas de um matrimônio há muito tempo esquecido. Seus olhos se encontraram, e por um instante, o silêncio entre eles parecia absorver o som distante dos pássaros cantando — uma melodia que ela costumava ouvir todas as manhãs.
Ela o observou de relance, sua postura relaxada, quase indiferente, mas ainda assim acompanhada por um tipo de presença que a incomodava. Um cheiro, familiar e nauseante, parecia pairar no ar, impregnando o ambiente com uma sensação desconfortável. Era um odor que remetia memórias que ela se esforçava para esquecer, como um eco persistente de um tempo que nunca quis recordar.
— Era isso? — ele perguntou, a dúvida disfarçada sob a superfície de uma atitude despreocupada, enquanto sua observação agora procurava algo oculto na postura imperturbável de Saône.
— Como está Raygan? — Ela desviou de assunto, sua voz suavizando.
Elard não hesitou. Seu tom era cuidadosamente controlado, impessoal.
— Halcan ainda não escreveu, mas acredito que ele esteja indo bem. — Ele se levantou, suas mãos subindo à nuca, num movimento brusco que aliviou a tensão em seu pescoço.
— Já se passou quase uma semana… — Saône suspirou, distante, perdida nas lembranças do filho, e na forma como ele franzia o cenho, um traço que a fazia sorrir involuntariamente.
Elard permaneceu resoluto, estudando a melhor maneira de atravessar o abismo entre eles. O sorriso dela era perfeito, como uma muralha resistente que ele não sabia como derrubar. Como quebrar a barreira invisível que se estendia entre eles, tornando a proximidade algo quase torturante? Ela estava ali, ao alcance de sua mão, e ainda assim, tão distante. Mas era uma chance que ele não estava disposto a deixar escapar.
— Então, olhe para mim. — Ele se aproximou lentamente, até estar o suficiente perto para que ela sentisse o calor de sua presença. — O rosto do homem que seu filho herdou.
Seu tom agora era mais delicado, ou mesmo romântico, da maneira como ele acreditava ser o melhor passo a ser dado para mudar a sensação desconfortável de vê-la longe, mesmo tão perto.
Ele deslizou as mãos pelos braços dela, com uma gentileza desconcertante, como se quisesse transmitir-lhe um calor que o corpo dela não conseguia gerar por si só. Uma pele tão linda, sem marcas. Parecia um pecado não tocá-la, e não poder sentir a respiração dela.
Mas Saône desviou o olhar, e com isso, virou-se completamente.
— Não é necessário. Preciso ir.
Elard, imóvel enquanto a fitava, percebeu o peso da frustração crescer em seu peito. Como ela conseguia afastá-lo tão bruscamente? Ele estava se esforçando. Estava tentando, e isso, de uma maneira que ele não conseguia sequer explicar, era decepcionante. O distanciamento dela, tão simples para ela, simulava uma adaga, cortando qualquer resquício de conexão que ele ainda tentava manter.
E antes que ela saísse por completo, Elard a chamou:
— Por quanto tempo pretende agir assim?
Saône parou e, com um movimento frio, olhou por sobre o ombro. Seu rosto, como sempre, inabalável.
— É um pouco difícil mudar quando não sinto que estou fazendo a coisa certa. — A voz dele era suave, com uma vulnerabilidade inesperada. Ele deu um passo à frente, e sua expressão estava aberta, sem defesas. — Fale comigo, Saône, quando não estiver fugindo.
Com um gesto delicado, mas decidido, ele pegou as mãos dela, levando-as até seu rosto, querendo sentir o toque, o contato, como se o simples gesto pudesse quebrar a barreira entre eles. Contudo, a resposta foi fria, incisiva.
— Talvez quando não estiver bebendo. — Seus dedos roçaram na barba dele, uma leve pressão contra sua carne.
Ele respirou fundo, fechando os olhos, tentando conter a frustração, mas não conseguiu evitar a resposta:
— Você sabe que é preciso bem mais que uma garrafa de vinho para me ver em uma situação tão lamentável.
Ele afundou o rosto nas mãos dela, buscando algo que não sabia bem o que era, mas precisava. O aroma das rosas que ela sempre carregava invadiu suas narinas, uma memória doce e cruel que o fazia se sentir um filhote longe de sua mãe.
— Assim como você sabe que precisará de bem mais que vergonha para fingir que esqueceu tudo que fez.
Aquelas palavras caíram pesadas sobre Elard.
Ele ficou em silêncio, imóvel, sentindo a distância entre eles crescer ainda mais. As mãos dela se afastaram de seu rosto, e com elas, o aroma doce das rosas se desfez, deixando apenas o vazio de sua falta. Ele se sentiu como se estivesse afundando em um poço sem fundo, e tudo o que ele podia fazer era observar enquanto ela se afastava.
— Me desculpe. — A confissão saiu baixinho, um sussurro que mal rompeu o silêncio. — Eu deveria ter avisado sobre a partida de Raygan, e sobre o casamento de Thayrin.
Saône, no entanto, não parecia tocada, ou talvez estivesse cansada demais para se importar.
— Você é o rei, e eu, sua consorte. Eu não devo nada a você. Agradeço por acreditar que posso mudar Giorgya, e farei o possível para acabar com a crueldade que ocorre numa cidade tão pequena e isolada.
O termo “consorte” soou frio nos ouvidos dele, quase como uma lembrança amarga de tudo o que se perdera. Uma posição que ele raramente pensava, raramente sentia.
— Você é a imperatriz. Você lidera este império ao meu lado, — ele disse, cada palavra saindo com uma convicção quase desesperada. Olhou profundamente nos olhos dela, e, como sempre, sentiu um arrepio percorrer sua espinha. — Por favor, me diga o que devo fazer para tê-la de volta.
A voz dele soava como uma súplica, e ele sabia disso. Sabia que não havia mais orgulho, apenas uma necessidade quase visceral de reverter o que tinha sido perdido.
Saône ficou um momento sem resposta, surpresa pelo que acabara de ouvir. Ele tomou sua mão novamente, com mais firmeza e com a gentileza de quem não queria assustá-la.
Ele tocou o rosto dela novamente, pressionando sua palma contra a dela, sentindo o frio de suas mãos, desejando, em silêncio, que ela pudesse transferir algo, qualquer coisa, para que ele se sentisse mais completo. E ao pensar que pudesse fazer mais, puxou o braço fino para mais perto, depositando um beijo suave em seu antebraço, quase como se estivesse esperando por uma resposta, algo que apagasse sua dor.
Era claro para Saône o que ele sentia. O hálito amargo de seus lábios, o cheiro da bebida que ainda pairava no ar. O reflexo de todos os anos em que ele se afastou, se afundou no isolamento, ignorando o que deveria ter sido seu dever. A distância… o vazio. A bebida que o fizera ser quase irreconhecível, feroz, e, pior, desprezível.
Elard havia perdido algo que ameaçava ser impossível de recuperar.
— Pare de tentar resolver um problema, esquecendo tantos outros que você causou! — Saône o empurrou, soltando sua mão. O tom da voz dela estava controlado, contudo, junto de um fogo latente. — Pare… por favor!
Ele tinha consciência do que ela dizia. Elard sentia isso em cada palavra. Um pai que envia o próprio filho para longe, enquanto há homens querendo sua morte. Um rei que negligencia sua filha, sua esposa, por anos, mergulhado na dor, na omissão. Ele se afundava cada vez mais no que não podia controlar. Mas não sabia como sair. Não sabia mais como consertar o que havia quebrado.
Um rei fraco, como sempre foi.
Porém, era fútil tentar alterar o que já estava escrito.
O monarca permaneceu imperturbável, as mãos repousando atrás das costas e os olhos fixos nela, sem emitir um único som. Sua expressão, marcada pelo desdém, era uma barreira tão intransponível quanto a dela. Quantas vezes ele tentara se aproximar, e quantas vezes ela o rejeitara?
A paciência deles era uma moeda gasta, cujos valores já haviam se perdido, ou, perto disso.
— Lembra-se do que lhe disse sobre o que a corte pensa de você?
— Uma péssima rainha, suponho.
Qual diferença faria se ela deixasse transparecer seus sentimentos? Onde, entre os olhares frios e as palavras vazias da corte, haveria espaço para a verdade dela?
— E qual é a sua posição, então? — Ele não se moveu, seu tom mais severo, como uma espada pronta para o golpe final.
— Servir ao meu rei… — ela disse, ainda com o respeito. Era uma dor que já sabia ocultar, uma dor que, com o tempo, aprendera a ignorar.
Foi então que ele a observou com uma expressão diferente. A máscara dele se quebrou por um instante. Ele abaixou a cabeça, como se uma nova reflexão o tomasse, uma reação que ela não soube interpretar.
Ainda assim, sem demora, ele falou:
— Irei a Kanaris. Para o antigo forte, onde Halcan e os meninos estão. Ficarei na Abadia de Santa Cruz, mas não será por muito tempo.
O olhar dela se ergueu, cheio de surpresa.
— Você… o quê? — Sua voz foi seguida por um leve pavor. — Seus inimigos estão lá fora, esperando qualquer chance para cortar sua cabeça!
— Não é um assunto que possa ser tratado por cartas. E deixarei você no comando.
Ela o encarou, desarranjada.
— Enlouqueceu? — ela falou, as palavras falhando ao tentar entender a lógica por trás da tal decisão. — Não se lembra da última vez em que estive em seu lugar?
— Claro que lembro. — Ele se afastou, indo até a mesa. — Você provou a todos que meu pai foi sábio ao escolhê-la para estar ao meu lado. — Ele sorriu, um sorriso frio, sem qualquer traço de afeto genuíno.
— Elard, por favor, pense bem. — Ela tentou se aproximar, mas sabia que sua preocupação não teria efeito enquanto ele estivesse imerso no mundo de papéis e decisões já tomadas.
— Você tem Marie-Charlotte e Rosalina para ajudá-la. Convide-as para tomar chá. Henryk e Levi estarão à disposição para a papelada, e Mardô para as outras questões. — Ele a olhou. — Você já fez isso antes. Vai se sair bem.
Ela notou o toque de diversão nos lábios dele, como se ele estivesse se alimentando de sua angústia.
— Não está fazendo isso para me agradar, está?
Ele manteve o sorriso, mas a resposta estava longe de ser tranquila.
— Não poderei falar com Raygan, caso seja essa sua dúvida. Serei um mensageiro, e desde que ninguém veja meu rosto, e não nos encontremos, tudo estará bem. — Ele voltou sua atenção para os relatórios, distraído. — Não se preocupe.
A rainha não compreendia. Algo nele estava estranhamente confortável, como se tudo estivesse já decidido. Foi então que, como uma luz tênue se acendendo na escuridão, as peças do quebra-cabeça confuso começaram a se encaixar. As decisões que nem mesmo os conselheiros mais próximos a ela conseguiriam mudar, agora pareciam claras como nunca.
Uma cidade isolada que, drasticamente, mudou tanto. Negligenciada, esquecida e à mercê de homens que não se importam com o lugar.
— Foi por isso que deixou Giorgya sob meus cuidados?
Ele parou, seu rosto voltando-se em sua direção.
— Você não se importa com os inocentes... — Apertou as mãos, evitando que as emoções transbordassem. — Você só quer preservar minha reputação. Acredita que eu posso resolver essa situação… Acredita... que estou em uma posição de liderar Olpheia...
Quem mais poderia ajudar Giorgya, senão a rainha?
— Sou tão indigna de estar ao seu lado, a ponto de recorrer a meios tão sujos para restaurar minha honra?
— Eu confio em você, Saône. Ahoneu está fora, e por essa razão eu…
— Não minta para mim! — interrompeu, a indignação surgindo sem aviso. — Você permitiu que a situação de Giorgya piorasse, tudo para tentar, de alguma forma, me dar uma função… Isso… — Ela engasgou, como um grito preso. — Isso é tão cruel…
Não havia nem um vestígio de remorso em sua expressão, algo que, Saône, embora conhecesse muito bem, percebeu o quão semelhantes eles eram.
Tinham o mesmo rosto quando não se importava com suas ações, e isso a assustou de um modo estranho. Um pensamento aterrador se formou em sua mente, como um presságio: seu amado filho, seguindo os mesmos passos do homem que nem mesmo ela tinha certeza se ainda amava.
— É simples de resolver — expôs ele, vazio e apático. — Deite-se na cama, abra as pernas e me dê filhos. É isso que eles querem, Saône. Herdeiros para movimentar o império. Quanto mais herdeiros, mais alianças.
— Então, por que se afastou durante todos esses anos? — A frustração explodiu. — Eu não consigo entendê-lo…
Besteira — disse ele, em pensamento, no sutil balançar da cabeça.
— Você está com medo.
— Não consegue ver? — Ela avançou, porém, manteve a distância, sem ultrapassar o sofá. — Você fez com que me vissem como uma rainha incapaz de consolar o rei! — A dor apertava sua garganta, mas ela não permitia que as lágrimas viessem.
— Ambos sabemos que isso não é verdade — ele retrucou, apoiando-se na mesa. — Ahoneu é o único que eu confio para estar no meu lugar durante minha ausência, mas ele não está aqui. Você pode fazer isso de novo, querida. Eu sei que pode. Você é inteligente, é honesta e é uma ótima rainha.
Saône exalou um longo suspiro, sentindo-se prestes a afundar num mar profundo de mágoas, tristeza e dúvidas.
Uma fantasia que ele havia criado sobre ela.
Alguém que não consiga confortá-lo, de trazer tranquilidade ao seu duro coração.
— Eu nunca serei como ela — murmurou, sem pensar. Seu corpo parecia pesado, como se toda a energia tivesse se esvaído. — Eu não...
A resposta foi direta, como uma flecha rápida e certeira.
Em algum lugar dentro dela, havia a sensação de ser traída. Ele, calado, sem reagir a sua dor. A impressão de que seu sofrimento não tocava o dele a atormentava mais do que as palavras que ele dissera.
— Cale-se — expressou, mais sombrio, quase irritado. Ele cruzou os braços e desviando o olhar, sem brilho, para a janela. — Deixarei as instruções com Mardô. Saia, por favor.
Não havia nada que pudesse ser feito.
— Sim… Majestade…
Ou, pelo menos, assim suas mentes justificaram.
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Ribeira dos Desejos.
Aos interessados, retorna em 24 de Janeiro.