Volume 1
Capítulo 36: Juramentos aos que Partiram
ARIUCH, CAPITAL DE OLPHEIA
Qual era a sensação de afundar as botas na neve, de ouvir o ranger seco de passos soterrados?
E o que dizer do vento talhante, que invadia as roupas mais grossas, ou da chuva gélida, escorrendo pelos cabelos até atingir a nuca como uma adaga líquida?
Tais pensamentos eram passageiros, descartáveis em meio à densidade opressiva do ar. Não havia espaço para devaneios quando um único propósito dominava todas as mentes e corações. Vencer a guerra.
O antigo imperador não era um homem que lidava muito bem com conflitos. Ele resolvia os problemas do império mandando homens em seu lugar, enquanto aproveitava o que sua coroa conseguia oferecer. Mas Elard não se sentia conectado com as lembranças que muitos consideram fraternas e importantes.
No aposento real, o soberano pousou a taça vazia ao lado de uma pilha desordenada de papéis. Mapas estendidos revelavam rotas já exploradas, enquanto cartas abertas juncavam a superfície da mesa. A luz fraca, filtrada pelas cortinas entreabertas, projetava sombras disformes sobre os lençóis do leito imperial.
Apesar do silêncio tirânico, a mente de Elard não conhecia paz.
Eram os gritos e ordens vindas dos comandantes. As chamas se instauravam sobre telhados e casas, destruindo tudo à sua volta em uma tempestade de fogo e água, que juntos, transformaram aquela vista de um completo pesadelo que ele não conseguia despertar.
Vozes clamavam nas profundezas de sua consciência, um coro de almas desesperadas que o assombravam mesmo na solidão. Ele era um homem que não fora moldado para testemunhar tamanha tragédia, tampouco, preparado para lidar com a perda. Ele reconhecia esta como uma fraqueza; algo que, ao contrário dele, seus subordinados não temiam, para sua própria vergonha.
Ele suspirou, profundo e cansado. Seus ombros caíram por um instante, antes de desviar o olhar para o canto do quarto. Lá, na penumbra, uma figura se mantinha imóvel, rígida como uma estátua esculpida em mármore.
— Está nervoso? — perguntou Elard, sua voz rompendo a quietude. Ele estava diante da janela fechada, observando os portões do palácio.
O ferro forjado das grades reluzia sob a neve acumulada, e os guardas, indiferentes ao frio, permaneciam vigilantes.
O homem, um jovem de postura impecável, inclinou levemente a cabeça antes de responder:
— Ter a honra de falar à Vossa Majestade sempre é motivo de apreensão. — Sua voz era controlada, mas havia uma pontada de tensão em suas palavras, no qual o brilho discreto de um anel em seu dedo indicador, inquieto, parecia amplificar.
Elard virou-se, calmo e sem pressa em direção a ele. Seus olhos analisaram o jovem, semelhante a um predador avaliando sua presa, e seu rosto permanecia imperturbável. Contudo, a intensidade de seu olhar fazia o homem imaginar-se em um duelo, onde a derrota era certa.
— Li o relatório que você escreveu — disse o rei, caminhando em direção à mesa, e seus dedos deslizando pelos entalhes ornamentados da madeira. — O valor da moeda real está aumentando, especialmente em mercados estrangeiros, correto?
— Sim, Majestade — o jovem assentiu, sua atenção, de relance, desviando para as sombras que se acumulavam nos cantos do aposento. — Um país distante demonstrou interesse em estabelecer acordos comerciais com Olpheia.
— Que tipo de acordos? — Elard inclinou-se ligeiramente, a luz esmaecida destacando os detalhes finos de suas vestes, indiferente à sensação gélida que pinicava as mãos rubras do jovem nobre.
— Joias e metais preciosos. — A resposta veio rápida, mas com cuidado. — Os poços de mineração de Olpheia estão começando a escassear. Consideramos explorar as cavernas ao norte de Lorist, que ainda não foram mapeadas.
— E o que mais?
O jovem ergueu os olhos, e o brilho dourado em suas íris refletia a mesma ganância e ambição que adornavam as paredes do recinto.
— As rotas marítimas de Fordwel foram importantes para o tráfego de embarcações. Investir em alianças marítimas e na construção de novas embarcações poderia abrir caminhos para além das terras de Leswen. Há províncias no arquipélago e regiões inexploradas em Etyllia que poderiam trazer riquezas incalculáveis.
Elard sorriu, um gesto pequeno, seguido dos braços cruzados e inclinando-se contra a mesa.
— Ahoneu o ensinou tudo isso?
O rapaz hesitou, e o sorriso que brotou em seus lábios foi metade orgulho, metade desconforto.
— Meu pai, sem dúvida, é um homem de grande inteligência. Contudo, tende a carecer de cautela quando seus planos visam mais grandiosidade do que prudência.
Elard soltou uma risada seca e se afastou da mesa, afundando-se no sofá mais próximo. Ele gesticulou ao jovem fazer o mesmo, apontando o assento à sua frente.
— Você sabe que pode falar comigo livremente. — Sua voz agora tinha um tom confortável, embora não perdesse a gravidade. — Sente-se. Quero ouvir o que lhe incomoda na ida de Ahoneu a Leswen. No relatório, notei um descontentamento em relação ao príncipe Bryce.
Henryk franziu o cenho, surpreso.
— Perdão, Majestade? Em momento algum eu…
Mas Elard foi mais ágil, com bom humor e persistência.
— “Quanto a Leswen, acredito que a melhor escolha seja evitar qualquer impertinência em relação à modéstia de Sua Alteza, e prevenir conflitos nas decisões sobre Lorist”. Você sabe o que entendi disso? — Ele manteve o sorriso, um sorriso que carregava uma ponta de ameaça. — Parece-me um conselho para que Bryce não interfira. Estou curioso sobre o que você entendeu disso.
De certo modo, o fato de o imperador ter decorado aquela frase específica o deixou ainda mais perplexo. Era como um golpe desferido na escuridão. E mesmo assim, ele não tinha permissão para tremer a voz.
— Sim, Majestade. É a melhor escolha. Leswen está em bons acordos políticos com reinos menores. Os principais territórios em conflito atualmente são Balmont, Olpheia e Jighal. — disse, confiante. — Nenhuma outra vila quer se envolver, não depois do massacre em Jighal. Por isso, a principal disputa é, certamente, entre Vossa Majestade e Dorak.
Foi uma oratória impecável; disso, Elard não tinha dúvidas. Contudo, a questão que importava permanecia suspensa no ar, sem resposta.
O imperador recostou-se no sofá, os braços repousando nos apoios de madeira talhada. Sua postura era descontraída, quase casual, mas os olhos fixos em Henryk contavam outra história. Eram como abismos insondáveis, guardando pensamentos que o jovem não se atrevia a esquadrinhar.
Um calafrio percorreu-lhe a espinha, gelando-lhe o sangue, enquanto a força silenciosa daquele olhar parecia despir sua alma.
— Por que se opõem a essa aliança? — A pergunta foi direta, como um punhal sendo cravado sem aviso.
O eco das palavras de Elard reverberou na mente de Henryk. Não havia uma resposta.
Não ainda.
“Por quê?”, a palavra se repetia como um martelo golpeando sua consciência. Ele sabia. Oh, como sabia. Mas admitir seria como expor uma ferida ainda aberta ao vento atroz do inverno.
— Eu… não entendi, Majestade. — Mentiu.
O desvio de seu olhar para o chão denunciou sua hesitação, mas ele logo o ergueu, forçando-se a enfrentar o olhar do imperador. No entanto, Elard não parecia enganado.
Então, Elard falou novamente, sua voz baixa e solene.
— Você jurou que a protegeria?
A declaração fez o coração de Henryk parar por um instante. O silêncio caiu pesado entre eles, mas os olhos escuros do imperador continuaram a perfurá-lo, exigindo uma resposta.
Elard prosseguiu, sua voz firme, porém, quase melancólica:
— Lembro-me bem de você e Leion, sempre envolvidos em juramentos e desafios de lealdade, como se essas brincadeiras definissem a verdadeira essência de um homem; palavras sobre honra e outras tolices. — Seus olhos se fixaram nele, e sua expressão desfez-se em uma máscara apática, quase desdenhosa, mas curiosamente instigante. — No entanto, foi a Thayrin que você prometeu permanecer ao lado, mesmo que tivesse outros planos.
Foram os planos de partir e explorar o mundo além dos limites que ambos conheciam, deixando-a para trás, sozinha, sem um único aviso. Era isso que a face do monarca lhe dizia, antes mesmo que qualquer palavra fosse dita.
E, claro, Henryk estava ciente de sua traição. Ele apertou as mãos entrelaçadas, e embora tenha respirado fundo, ele manteve a voz constante, dizendo:
— Eu jurei lealdade a um amigo. Ele me fez prometer que estaria ao lado de Thayrin mas… durante esses últimos anos, estive longe. Quando voltei, me deparei com uma princesa completamente diferente da garotinha que conheci — expôs ele, sincero. Ele parou, lutando para organizar os pensamentos. — A princesa mudou, mas minha promessa não. E para me redimir, acredito que o príncipe Bryce não seja uma boa escolha.
Elard inclinou levemente a cabeça, arqueando uma sobrancelha.
— Thayrin? — disse, em um tom de curiosidade, misturado a um leve escárnio.
— Quero dizer, Sua Alteza, a princesa… — Henryk remexeu-se no assento. Uma sensação de desconforto o impedia de relaxar, mantendo suas costas afastadas do acolchoado do sofá. Convidativo, mas traiçoeiramente inadequado.
— Estou cumprindo minha promessa, Majestade — retomou, mais calmo. — Contudo, quando a princesa se casar, não será mais minha responsabilidade.
De repente, houve uma risada, que ecoou pelo aposento, inesperada e desconcertando Henryk.
— Majestade? — ele perguntou, atordoado.
— Sua expressão foi um tanto divertida. Sei muito bem o que meu filho lhe fez jurar, Henryk. Mas você não precisa se preocupar mais. Já está decidido. Thayrin se casará com Bryce. — Ele deixou o corpo ceder um pouco mais, sentindo o conforto do sofá que, com facilidade, poderia rivalizar com a maciez de sua cama.
Soava como uma ordem, mas Henryk não conseguia aceitar. A lembrança de Leion era uma presença tão forte quanto a voz do próprio imperador.
— Sua Majestade tem… certeza? — Ele arriscou, sabendo que pisava em terreno perigoso. — Perdão se estou sendo intrometido, mas conheço Bryce. Estudamos juntos na academia de Leswen, perto da catedral. Muitas vezes, eu o vi indo a bordéis e envolvendo-se em orgias… — Ele hesitou, buscando as palavras certas. — Ele não é um homem adequado para a princesa.
Era uma atitude louvável. Elard reconhecia isso, embora não deixasse de ser intrigante que alguém desse tanto peso a um juramento feito por duas crianças há tanto tempo.
— Por que se importa tanto, rapaz? — A curiosidade o consumia. Quem, afinal, era Leion para ele? Talvez jamais encontrasse uma resposta verdadeira para essa questão, mas, misteriosamente, Henryk espelhava a essência de seu filho.
Era uma presença quase perfeita, como um eco distante em suas memórias nebulosas, quando se lembrava dos dois juntos.
Inseparáveis.
Ao ouvi-lo, Henryk sentiu o peso de um fardo esmagar seus ombros. Ele se perguntou, num misto de dúvida e arrependimento, se estava atribuindo importância demais a algo trivial, ou se aquela culpa insuportável era a punição que secretamente buscava.
A única promessa que não conseguiu cumprir foi proteger sua irmã.
Ele inspirou, os lábios se entreabrindo para responder, mas a expressão do imperador o deteve. Ele hesitou, e não disse nada.
Era o medo de encarar a dor da perda, de lembrar como foi ver alguém tão importante desaparecer na escuridão. O medo de nunca mais ouvir o tom suave daquela voz repleta de vida.
Ele temia esquecer os sonhos e promessas que haviam partilhado quando jovens.
A imagem de Leion tomou forma em sua mente, tão vívida que a lembrança do juramento que fizera voltou a latejar em seu peito — uma promessa que, para Henryk, era mais do que fúteis palavras.
— Farei o possível para encontrar um bom partido para a princesa. — Henryk apertou os punhos nos joelhos. — Alguém nobre, de título, que seja digno e… alguém que Leion aprovaria.
Era como reviver o passado.
“Me prometa que você vai fazer dela a mulher mais feliz desse império! Prometa!” — disse Leion, na mente de Henryk, nos corredores do palácio e banhado pela luz do céu de verão brilhando sobre os fios platinados.
“Eu prometo… Mas por que você está me dizendo isso? Ela já é feliz com você.”
“Porque ela nunca vai ser feliz com um irmão bastardo. E você é o único que não me odeia aqui, haha! Eu confio em você, Henry, é por isso que somos amigos.”
Idiota… — pensou Henryk, num pequeno sorriso afável.
Por um momento, o rei permaneceu em silêncio, medindo o jovem à sua frente.
— Você tem dois meses — articulou. Um pouco indiferente, mas satisfeito.
— Sim, Majestade. — Henryk se levantou, seus olhos voltando ao antigo brilho que refletia no anel que adornava seu dedo.
Quando ele se virou para sair, a voz do rei o chamou, parando-o na soleira da porta.
— Ah, só mais uma coisa: você foi um grande amigo. — Elard o observava com um olhar distante, quase nostálgico. — Tenha isso em mente. E, por gentileza, pegue aquela garrafa para mim.
Como lhe fora ordenado, Henryk obedeceu. E ainda assim, as sardas espalhadas pelo rosto dele pareciam dançar sobre suas bochechas enquanto um sorriso singelo, quase tímido, se formou em seus lábios.
— Obrigado, Majestade.
Elard acenou, seus dedos encontrando a taça mais uma vez.
— Estou confiando em você, jovem Baylam.
Henryk inclinou a cabeça em uma última reverência antes de partir. O som de seus passos ressoava pelos corredores vazios, levando consigo um pouco da confiança que ele esperava de seu soberano.
Enquanto isso, sozinho, Elard exalou um longo suspiro. Seus ombros, antes erguidos como pilares de uma fortaleza, cederam ao cansaço que somente a solidão lhe permitia mostrar.
Seu olhar suavizou-se ao pousar sobre a taça de vinho. Ele a ergueu com dedos firmes, girando o líquido escuro que capturava a luz que invadia pela grande janela. Entretanto, ele não levou a bebida aos lábios.
Em vez disso, sua atenção se perdeu no vazio, atravessando o véu do presente em busca de memórias perdidas.
O que eu estava fazendo? — Foi uma primeira indagação. Por que o príncipe Bryce, Ahoneu? — Isso era uma proteção à honra de Thayrin? Bem, era difícil pensar nisso.
Antes que pudesse afundar em um mar de lembranças, um sussurro ecoou na distância.
A voz de Henryk… não, não apenas a dele.
Talvez…? — Ele franziu a testa e se endireitou no sofá.
Logo em seguida, duas batidas na porta.
— Entre.
A porta rangeu.
O imperador manteve o olhar na pintura viva, admirando os traços que a moldavam com um fascínio incomum, cuja perfeição era incomparável.
Tão pura como o ar que respirava; tão bela quanto as flores do jardim.
— Minha rainha — cumprimentou, erguendo a taça.
— Majestade. — Sua voz, doce como um rio murmurante, quebrou o silêncio enquanto ela inclinava a cabeça em uma saudação respeitosa.
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