Volume 1
Capítulo 35: Marcha sobre a Neve
ACAMPAMENTO DE KANARIS
A alvorada rasgava a escuridão da floresta com um pálido reflexo prateado, enquanto o inverno estendia suas garras gélidas sobre cada ser que ousava existir sob as copas despidas das árvores. Cervos, lobos, coelhos e até mesmo as aves que se escondiam nas fissuras das rochas ou sob galhos retorcidos não escapavam à tirania da estação. A cada passo, o som da neve esmagada ecoava na brisa, e o gelo ardia nas penas e pelagens, congelando o sopro da respiração.
Os jovens, mal saídos da adolescência, aglomeravam-se como corvos em volta do que restava do muro de pedras desgastadas. Suas mãos, rubras e enrijecidas, buscavam calor nas dobras das capas surradas, e os olhos, semicerrados contra o vento, vagavam por entre as silhuetas cinzentas e brancas da paisagem.
O antigo forte, agora uma ruína, não passava de um relicário envelhecido.
Em um passo de cada vez, os garotos continuavam a marcha.
Enquanto isso, na cabana, Halcan se inclinava sobre uma mesa toscamente entalhada, suas mãos traçando os contornos das cartas e relatórios dispostos diante dele. Papéis manchados pelo uso e pelo tempo contavam sobre novas terras, antes cobertas por um manto que nem mesmo o sol conseguia atravessar. Contudo, o que mais pesava sobre o general não era o frio que afligia seus homens em Jighal. Era o tempo. Tempo que escoava sem piedade, e que logo chamaria aqueles jovens a abandonarem espadas leves do treino por armas de verdade.
Ao lado, Oracis permanecia à sua esquerda, os dedos longos e calejados deslizando por um desenho de mapa aberto. Com o olhar afiado, movia peças de pedra sobre a superfície amarelada, como se participasse de um xadrez invisível. Vilas e trilhas sinuosas estavam marcadas; Jighal, em especial, ostentava uma pequena torre entalhada em âmbar.
— O que ele disse? — A voz do comandante, baixa e arranhada, cortou o silêncio como o crepitar de um galho seco na noite.
Halcan ergueu o olhar, mas não abandonou o papel surrado que lia.
— Kaleid atravessou a fronteira.
A mão de Oracis hesitou por um instante antes de pousar um cavalo esculpido em pedra escura sobre o ponto exato do mapa que demarcava “Jighal”.
— Com quantos homens? — questionou, a testa franzida em uma preocupação contida.
Halcan passou os olhos mais uma vez pelas palavras escritas. Ele leu em voz alta:
— “Devido às circunstâncias do tempo, tive que parar a carroça e me proteger do frio. Coletei gravetos para uma fogueira improvisada. Pensei que fosse rápido, mas o vento forte me atrasou. Demorei cerca de três minutos, acredita nisso? Minhas luvas estão desgastadas; usei-as para atiçar o fogo, e devido a isso, a viagem durará mais dias do que imaginei. Estou morrendo de frio, ou quase.”
Oracis deixou escapar um leve sorriso, um brilho de astúcia reluzindo em seu olhar.
— Três semanas para atravessar e se abrigar à companhia de cinco homens? O que ele andou fazendo para demorar tanto? — Ele soprou o ar pelo nariz, quase em um riso. — Três soldados e dois espiões. Inteligente, Kaleid… Muito inteligente.
Halcan tamborilou os dedos na madeira.
— Está certo disso? Acredito que ele esteja preso em uma vila.
Oracis deu de ombros.
— Meu irmão saberá o que fazer. — Com um gesto decidido, ele empurrou uma torre esculpida, atravessando o mar que separava Olpheia de Lorist, até pousá-la sobre a margem de duas pequenas cidades de Balmont, próximas ao rio que cortava Lorist, principalmente a região que envolvia Jighal. — Ele foi ensinado pelo melhor professor que já tivemos.
Por um instante, Halcan permitiu que as palavras ecoassem em sua mente, e com um gesto lento, ele pegou uma peça que representava um bispo e a colocou ao lado do rei, como uma sentinela em vigília. — Tenho certeza de que ele ficará bem.
Minutos depois, a fila de rapazes se estendia ao longo dos muros, todos carregando pesadas bolsas de couro sobre os ombros. O ar frio mordiscava seus rostos ao se prepararem para adentrar a densa escuridão da floresta despida de folhas, cujos galhos retorcidos ainda assim se erguiam como lanças contra o céu.
Botas afundavam suavemente na neve que ainda cobria o acampamento, e um a um, eles passaram pelos grandes portões, desaparecendo na neblina pálida que flutuava rente ao solo.
Ayanna observava tudo pela janela, o vidro frio sob seus pequenos dedos. Do interior da cabana, aquecida pela lareira crepitante, os olhos dela seguiam o movimento ordenado da fileira que marchava rumo ao desconhecido.
— Por que eu não posso ir com eles? — perguntou, sem desviar o olhar. Em sua mente, já se via caminhando ao lado dos rapazes, os pés pequenos imitando seus passos largos. — Eu também deveria ter trazido botas e roupas pesadas?
— A senhorita é uma dama — respondeu Circaz, recostado ao batente da porta, com os braços cruzados. Seus olhos, contudo, estavam fixos nos jovens. — Damas não afundam seus delicados pés na neve ou na lama. Esse é o dever dos homens.
Ayanna franziu a testa e deslizou a palma da mão pelo vidro embaçado.
— Mas as mulheres também ajudam os homens! Mamãe sempre disse que as sacerdotisas fazem isso… Elas salvam vidas.
Circaz permitiu que um sorrisinho escapasse, tão sutil quanto a brisa que esgueirava pela fresta da janela.
— Mulheres salvam os homens todos os dias, de formas que eles nem sempre percebem. — Ele se afastou da porta e ajeitou o xale sobre os ombros da garota. — O mínimo que podemos fazer é protegê-las.
Ayanna franziu o cenho, sua atenção alcançando a figura de seu irmão, cujas madeixas escuras e postura resoluta o faziam parecer já um dos soldados que os acompanhavam. Será que um dia terei a chance de estar ao lado dele? Eu poderia ajudá-lo, cuidar de suas feridas e arranhões como a mamãe faz com o papai quando ele volta da vila.
Circaz pousou o olhar sobre ela, os olhos reluzindo uma ternura que ele raramente permitia transparecer. Diante dele, a menina, pequena em altura, encarava o mundo com sonhos maiores que a própria estatura. Desde nova, o homem percebeu que ela tinha uma força serena, tão inabalável quanto a de qualquer criança, mas essa força refletia a presença de seu mestre — um homem íntegro, de alma pura e coração repleto de fé e compaixão que ele admirava.
Quantas vezes você testemunhou o amor entre seus pais? E quantas vezes, desejou ser como eles? — Circaz ponderou.
De onde vem essa vontade tão grande de ajudar os outros, pequena? — Ele se inclinou, sem pressa. Dois passos curtos o levaram até ela.
— Quem sabe… quando for mais velha? — Sua voz soou baixa, quase como se falasse consigo mesmo, enquanto seus dedos deslizavam suavemente sobre os cabelos dela. — Mas para isso, você deve estudar. — Ele se afastou, deixando a luz do raiar do sol recair sobre a espada embainhada que pendia em sua cintura, antes de pegar um livro no canto do sofá. — Que tal começarmos agora?
Ayanna ergueu a cabeça, animada. — Vai me ensinar a dançar? Papai me ensinou alguns passos, olha!
Ela até tentou reproduzir a valsa como as damas em grandes eventos costumavam fazer, mas suas sapatilhas não seguiam o ritmo com que seus braços animados se moviam alegremente. — Joe me prometeu que, depois que voltasse da expedição, ele ia me ensinar mais passos!
Circaz riu baixo, balançando a cabeça. — Primeiro, aulas de etiqueta. Se você quer ajudar seu irmão, é melhor praticar o equilíbrio. — Ele tocou levemente o livro sobre a cabeça dela. — Está pronta?
— Claro que estou!
Circaz apenas sorriu, afastando-se um pouco para observá-la melhor. — Muito bem, ao trabalho!
O equilíbrio era a essência do mundo, como a igreja costumava ensinar.
Bem e mal estavam destinados a travar suas batalhas eternas. Céu e inferno competiam por almas, e os humanos caminhavam na fina linha entre ambos. Alguns diziam que o homem nascia mal, já outros, acreditavam que a corrupção vinha do mundo que o rodeava.
No fim, isso pouco importava, pois sempre havia aqueles que escolhiam o que queriam ser, independentemente de seu nascimento.
Jovens que decidiam lutar, mesmo quando o destino tentava desviá-los. Rapazes como Aygnar, do lado de fora da cabana, que fitava a janela com olhos encovados pela falta de sono.
O príncipe observava a garotinha equilibrar o livro. Desajeitada em seus primeiros passos, mas que, no decorrer do caminho, manteve a postura.
De qualquer maneira, sua mente vagava ao momento quando teria a chance de ver a cabana vazia.
Sem vozes, sem interrupções, ou ratos para atrapalhar seus planos.
No entanto, a paz não duraria.
— Aygnar! — A voz de Daemis rompeu seus pensamentos. Ele se aproximou, ajustando a bolsa nos ombros. — O senhor Halcan está nos esperando. Estamos atrasados! Lupin não vai gostar de nos ver aqui! — Ele tocou nas próprias bochechas, tentando aquecê-las, até reparar na expressão pensativa do amigo.
— O que está fazendo?
Raygan não respondeu. Sua atenção estava na residência e na silhueta do cavaleiro, visível de relance através do vidro
Daemis seguiu o olhar dele, mas não viu nada além das sombras.
— Você quer falar com aquele homem? — perguntou, confuso.
Raygan apertou a tira da bolsa contra o ombro, o tecido rangendo levemente sob a pressão de seus dedos.
— Não é da sua conta. — A voz dele era um estalo frio, como o gelo que se formava nos galhos.
Daemis, um passo atrás, reconheceu a resposta — semelhante a tantas outras que já ouvira da mesma pessoa.
Nos dias anteriores, Daemis percebeu um padrão de Aygnar. Sempre com um livro nas mãos, ele se acomodava no armário baixo, com o olhar fixo na janela, buscando algo ou alguém que somente ele conseguia ver.
Era uma constância importuna, parecida com um ritual silencioso que se repetia dia após dia. Daemis havia percebido essa estranha rotina desde a casa de Maycon, no entanto, o jovem recruta não conseguia decifrar o motivo por trás disso — especialmente quando Aygnar o afastava com uma frieza que beirava o desprezo.
Cinco dias se passaram assim, Daemis observando das sombras, invisível em sua vigilância. No entanto, não era o mistério do comportamento que mais o intrigava, mas a inquietação que surgia dentro dele.
Por qual motivo ele nunca conseguia dormir depois que Aygnar se recolhia? Por que, noite após noite, as olheiras de Aygnar cresciam?
O ponto final veio quando o viu — sem ser visto — conversando em segredo com o general junto ao poço, as palavras trocadas entre eles abafadas pela brisa noturna.
Ele me despreza? — Daemis se perguntou, o pensamento latejando na mente. Talvez porque eu não seja nobre? Ou… porque sou de Jighal… — Sem se dar conta, ele comprimiu os lábios, o medo crescendo em seu peito — medo de que, mais uma vez, o sangue que corria em suas veias o tornasse diferente, incapaz de ser como os outros garotos ao seu redor.
Raygan ergueu uma sobrancelha, intrigado com a expressão súbita que cruzou o rosto de Daemis. Para o jovem príncipe, todavia, Daemis não passava de um vira-lata persistente — irritante, mas de certa forma útil.
Apesar de seus próprios conflitos internos, Daemis não deixou de perceber o tom arroxeado que se espalhava no rosto do amigo.
O frio não faria isso com alguém de pele clara… faria?
Ele estudou o rosto de Raygan por um instante, mas tudo o que recebeu em resposta foi um desvio de olhar — um gesto silencioso que o advertia a não fazer perguntas.
Sem questionamentos, sem preocupações.
Apenas um caminho pacato estendendo-se além dos antigos muros do forte, que a cada pegada deixada na neve, se desvanecia na bruma do inverno.
Adiante, entre os primeiros membros da fila, a neve cedia sob os passos de Joellis, no entanto, ele mantinha a mesma expressão impassível, como se pudesse conter as dúvidas que fervilhavam sob sua pele fria. Os jovens avançaram, uns em silêncio, e outros em risos, um pouco afastados dos outros rapazes que seguiam em pares ou dispersos, enquanto um punhado de soldados os escoltava. A presença deles era discreta, mas constante — criaturas revestidas de aço e capas que pendiam até seus tornozelos, pairando na orla congelada da floresta.
É necessário tanto cuidado para um simples treino? — Joellis não sabia dizer. A pergunta grudou-se à sua mente como uma farpa que não conseguia encontrar.
Seriam eles o futuro do império, ou apenas um entre eles estava destinado a esse fardo?
Quando se virou para observar a retaguarda da fila, seus olhos vagaram entre as figuras dispersas, mas aquele a quem procurava não estava ali.
A lembrança do rosto dele — frio e impenetrável — aflorou sem convite. Havia algo no olhar do príncipe, uma chama voraz e perigosa, como a de um animal selvagem acorrentado que aprendeu a não temer a mão que o alimentava.
Joellis recordava com clareza o candelabro firme em sua mão, pronto para machucar Isaac.
Ele não hesitou, como se ferir alguém fosse tão simples quanto pisar em um galho seco, e isso o incomodava, inexplicavelmente. Joellis respirou fundo, inquieto sobre o rumo que seus pensamentos estavam levando-o.
Porém, a voz grave e familiar de Halcan o chamou.
— Qual é o problema?
Joellis ergueu o olhar. Enquanto isso, Halcan, imponente como sempre, caminhava à frente, a neve enregelando a bainha de sua capa.
— Não, senhor — respondeu rápido demais, sentindo o peso das palavras em sua língua.
Halcan diminuiu o passo, nivelando-se com ele. Os olhos do general, duros como pedra, o sondaram por um breve instante antes de se fixarem na trilha adiante.
— Não abaixe a cabeça. — Sua voz soou como uma ordem. — Você está à frente da fila. Mostre a esses jovens como se avança na neve. Circaz o ensinou bem, e seu pai o ensinou melhor ainda. Lidere-os.
Joellis piscou, confuso.
— Eu? Mas… eu não sou um recruta.
O sorriso de Halcan foi breve, mas firme — um lampejo de confiança suficiente para encorajá-lo.
— Estou cansado! Um velho soldado como eu também merece descansar. Por enquanto, você será minha voz.
Um calor inesperado se espalhou pelo peito de Joellis, afastando o frio que mordiscava seus ombros.
— Não está fazendo isso só porque sou seu sobrinho-neto, está?
O general o fitou por um instante, a dúvida pairando na feição e nas bochechas avermelhadas. Para ele, sangue partilhado era um detalhe ínfimo diante do que ele já havia provado. Um garoto que nunca fez questão de esconder que tentava seguir os passos do homem que o criou.
— Se você deseja um dia tornar-se cavaleiro real, erga-se e honre aqueles que acreditam em você. Prove, desde agora, que está à altura do desafio. Não pedi aos seus pais para que você se escondesse, por isso sua irmã e Circaz estão conosco.
Joellis encarou o rosto do velho, ainda mais confuso, enquanto as palavras de Halcan afundavam em sua mente como pedras em um lago.
— Mas… por que trouxe minha irmã e Circaz?
Halcan esboçou um sorriso discreto. Ele pousou a mão calejada no ombro de Joellis, sacudindo levemente os flocos de neve que se acumulavam.
— Porque, embora você ainda não tenha percebido, ela é sua inspiração. — Sua voz suavizou. — Eu vejo como ela o admira, filho. E é por isso que você deve protegê-la, assim como ela está disposta a protegê-lo.
Joellis permaneceu em silêncio. Ele ergueu os olhos para o velho, aquela figura que, por mais severa que fosse, sempre emanava uma confiança inabalável
Uma postura que Joellis desejava merecer.
Em seguida, Halcan apertou levemente o ombro do garoto, sua expressão assumindo um tom mais grave.
— Fique forte por ela, Joellis. E fique forte por você mesmo. Pelo menos, é isso que os irmãos deveriam fazer.
As palavras de Halcan ressoaram no coração de Joellis, aninhando-se em um lugar onde o medo cedia espaço à esperança.
Joellis ergueu o queixo, o peito inflando com um orgulho recém-descoberto.
— Farei isso, senhor! — declarou, a voz firme, como se a neve ao seu redor fosse incapaz de apagar a chama recém-acesa dentro dele.
Halcan assentiu, satisfeito, enquanto um sorriso quase imperceptível curvava seus lábios. Havia força naquele garoto, uma força bruta, mas promissora — suficiente para mover montanhas. Ou assim ele ousava acreditar.
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