Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 33: Um Leão. Uma Rosa

APOSENTO REAL DO IMPERADOR, PALÁCIO OLPHEIA

 


As risadas cessaram abruptamente, como se o ar houvesse sido sugado do quarto, deixando apenas um vácuo inquietante.

O silêncio se instalou, pesado, até que uma voz serena rompeu o vazio.

“Apenas você e eu.”

Elard apertou os dedos ao redor da garrafa, sentindo o vidro frio contra sua pele. No escuro, ele não podia ver onde o restante do líquido havia sido derramado, mas o vento o guiava, talvez, até o vaso de porcelana do jardim, a poucos passos de onde ele estava.

Parecia que o vinho possuía um poder que ia além de entorpecer seus sentidos. Era como se, através dele, Elard pudesse ouvir ecos de conversas perdidas no emaranhado de memórias que, há muito, ele desejava esquecer.

— Já lhe perguntaram o que faria para manter o poder? — A voz continuava: — Mentiria? Roubaria? Mataria para permanecer ao meu lado?

Elard não respondeu; um mero espectador de uma conversa que ouvira quando era mais jovem.

— Isso realmente importa? — indagou outra voz, fria. — Algumas pessoas mentem, roubam e matam porque é divertido para elas.

— Seja qual for sua escolha, você é meu subordinado. Lembre-se que o lugar de Ghaeli é no trono. Ele é o verdadeiro rei.

As lembranças o arrastavam pela escuridão de sua mente. Envolto em uma brisa confortável, Elard permitiu que seus sentidos se concentrassem no som suave das folhas sendo acariciadas pelo vento. Seus olhos, entretanto, estavam vazios, sombrios como o próprio céu coberto de nuvens, sem qualquer vestígio de brilho ou esperança.

“Voe.”

A palavra ressoou como uma ordem, penetrando as trevas de sua mente.

“Voe, Ghaeli.”

E então, como um relâmpago rasgando o céu em uma tempestade, a voz explodiu em um grito ensurdecedor.

“ASSASSINO!”

— Ugh! — O grunhido escapou de sua garganta, enquanto sua mão alcançou a têmpora. A dor aguda atravessou sua cabeça. A pressão era quase insuportável, mas ele a reconheceu pelo que era: cansaço. Exaustão.

Com esforço, e ignorando a pulsação dolorosa, Elard posicionou a garrafa de vinho sobre a mesa. Fechou as janelas, selando o quarto contra o frio, e caminhou até a beira da cama, onde as grandes cortinas vermelhas pendiam pesadamente.

Então, o som de duas batidas suaves na porta quebrou o silêncio.

Toc, toc.

— Entre.

Da entrada, revelou-se uma cascata de cachos vermelhos, ondulando como um mar de fogo rebelde sobre os ombros da versão mais jovem, mais feroz, e, sem dúvida, mais problemática de sua esposa.

— Thayrin…? — falou, surpreso pela visita sem hora marcada.

Ela permaneceu na porta, com os olhos gelados, perfurando-o como lâminas de gelo puro.

— Não consigo dormir — disse ela, sem rodeios. — Minha mãe já está dormindo, e eu não tive coragem de acordá-la, não depois do que você fez.

Ela era afiada.

— Você recorre ao seu irmão quando isso acontece? — perguntou ele, em tom provocativo, seus lábios curvando-se levemente num sorriso.

— Só quando o encontro — respondeu Thayrin, com uma calma forçada, caminhando até o sofá em passos lentos. — Syfer costumava encontrá-lo adormecido na biblioteca durante a patrulha.

— Syfer?

— Ele é o noivo de Nadye. — Ela sentou no sofá, no acolchoado confortável. — Ele parece um homem educado, mas tem um conhecimento vergonhosamente limitado sobre botânica. Quem não sabe que flores precisam de sol para sobreviver!

A irritação era clara em sua voz, além do incômodo de uma noite de insônia. Ela parecia mais frustrada consigo mesma por estar ali do que com qualquer outra coisa. Elard observou-a atentamente, ainda relaxado na cama. Sua expressão estava séria, o que não era incomum. Mesmo assim,  sua postura retraída sugeria que ela não queria estar ali, mas se sentia compelida a ficar.

— Além da aparência — iniciou ele, meditando sobre suas palavras —, você herdou a personalidade de sua mãe.

A impressão era de que seu pai desejava amenizar uma barreira invisível entre eles.

— Usará elogios para escapar do assunto? — retrucou, sua voz ganhando força, como o aço de uma lâmina prestes a cortar. — Da sua covardia? Expulsando seu próprio filho de casa, pela segunda vez?

Elard permaneceu em silêncio, seus olhos que espelhavam brasas adormecidas, fitando o vazio do aposento.

Thayrin esperava uma resposta, mas temia que ela nunca viesse. No fundo, queria que ele admitisse. O luto dominou-o tanto que ele extravasou sua raiva, despejando sua dor em um garoto que só podia aceitar seu destino.

Assim, poderia odiá-lo como Raygan já fazia – com frieza, sem resquícios de dor ou arrependimento.

Ela queria odiá-lo, por tudo. 

O ar no quarto era espesso, quase palpável, como a tensão que precede uma tempestade. Quando Elard finalmente falou, sua voz soou grave, porém deliberadamente lenta.

― Se você está certa de que minha ação foi inaceitável, por qual razão persiste em tentar demonstrar que estou equivocado?

As palavras saíram como um baque. Ele não se movia, seu olhar sem emoção fixo nela. Ele pensou em testá-la. Desafiá-la a questionar a respeito dele. Fazê-la duvidar de suas ações.

― Se pensa que vai me fazer mudar de ideia, seus esforços serão inúteis.

Thayrin permaneceu muda. Era difícil acreditar que o homem largado diante dela, tão distante e desleixado, pudesse ser o mesmo que seu falecido irmão admirava. Um rei que sabia governar os outros, mas que tropeçava em suas próprias emoções, jogando culpas em quem nada mais fizera além de herdar um nome, uma coroa. Um título vazio.

Ela buscava uma resposta que parecia escapar de seus dedos, como areia ao vento.

Por outro lado, ao notar sua agonia, Elard soltou um suspiro pesado. Ele bateu levemente na beirada da cama, um gesto que não refletia a autoridade do novo rei à qual ela estava acostumada.

— O quê? — Estava irritada, embora soubesse exatamente o que ele queria. 

— Não seja teimosa, Thayrin — repetiu o gesto. — Sente-se. 

Hesitante, mas sem desviar o olhar, Thayrin finalmente cedeu, atravessando o aposento até se sentar ao lado dele. 

— Não pense que estou aqui para perdoá-lo — disse, seus dedos roçando o tecido do lençol, quente e confortável para a temporada do ano.

— Eu sei. — Os olhos de Elard se voltaram para as cortinas rubras, o pesado tecido ondulando levemente na brisa. — Mas, ainda assim, você está aqui.

Thayrin apertou os lábios. As palavras presas, recusando-se a escapar. 

— Estou cansada — expôs, sua voz num sussurro arrastado pelo vento. 

— Então volte para seus aposentos e descanse — respondeu ele, sem emoção.

A solução óbvia para um problema trivial. “Não consegue dormir? Apenas feche os olhos e durma.”

— Eu disse que não consigo dormir! — Sua insatisfação era evidente, a testa vincada, e os olhos que se detiveram rapidamente na taça vazia sobre a mesa. — Parece que alguém aproveitou bem a noite — provocou, sua tentativa de feri-lo vacilante. — Imagino que tenha sido uma noite agradável, mesmo que eu não veja nenhuma mulher escondida aqui. 

Elard demorou a responder. Ele entendia que tal reação era um mero disfarce para ocultar o que ela realmente sentia: desgosto, raiva e repulsa. Não muito diferente da estratégia de Raygan, que utilizava de métodos mais audaciosos para conquistar o que queria. Mas a ideia de que ela poderia acreditar que ele trairia sua esposa, a mulher mais linda de todo o império, o incomodava profundamente.

— Não há mulher que eu deseje além de sua mãe — disse ele, com uma sinceridade que a pegou de surpresa. — Embora meus esforços para reconquistá-la tenham sido facilmente repelidos. — Havia um toque amargo, o gosto da derrota ainda fresco de tentativas fracassadas em lembrá-la que ele ainda era um homem saudável.

— Bem…, não é isso que a corte pensa — ela retrucou, desviando o olhar. — Dizem que minha mãe não está cumprindo seus deveres, e que o senhor tem buscado prazer com as empregadas. Que Raygan, quando crescer, causará problemas para o reino. Que eu… — continuou, com os dedos entrelaçados no colo. — Não estou servindo ao império como uma verdadeira princesa. Apertou as mãos. — Eu os odeio, todos eles! Fingem que não veem, mas estão à espreita, esperando para nos destruir.

O ruído suave do vento na sacada externa ecoou.

Elard era incapaz de compreender a fonte do tal desconforto. Sem qualquer dificuldade, ele poderia enumerar todas as ocasiões em que a corte teria que se curvar e rogar pelo seu perdão. Tudo que precisava era de uma resposta.

Uma escolha.

— Eu deveria matá-los? — questionou, friamente.

Thayrin olhou para ele, surpresa, como se tivesse recebido um golpe no peito. A sugestão ficou suspensa entre eles. Independentemente de sua decisão, ele parecia disposto a aceitá-la como uma resposta digna de um conselheiro real.

— Não… isso não está certo — disse, como o eco de uma convicção que, apesar de frágil, não poderia ser ignorada. 

Elard inclinou a cabeça, seu olhar distante.

— Então, o que você sugere? — Ele cruzou os braços. — Que devo simplesmente permitir que continuem cochichando pelos corredores, tramando contra nós?

— Eles esperam que o senhor faça o que for necessário para assegurar a vitória de Olpheia. Que destrua Lorist e afirme nosso poder sobre Balmont.

No entanto, Elard, com a expressão tranquila, retorquiu:

— E isso é o que você deseja?

Eu? — Ela dirigiu o olhar para ele, que por um segundo, fez seu corpo arrepiar.

A sensação do frio não se comparava à frieza em seu rosto. De alguma forma, não pensaria duas vezes em matar, se assim fosse seu único desejo.

A jovem abaixou a cabeça, enquanto as chamas nas paredes lançavam seu brilho inquietante.

Sangue derramado. Vidas perdidas. Riqueza adquirida. E, no final, o domínio sobre todas as terras.

— Nadye ouviu uma das criadas mencionar que você está organizando uma reunião com o rei de Balmont. Isso parece uma loucura! — ela expressou, perplexa. — Mesmo que você tenha aversão ao meu irmão, não é adequado que ele assuma sua posição tão precocemente. Por favor, reconsidere essa ideia!

Elard ergueu uma sobrancelha, um tanto atônito pela “confiança” que sua filha depositava na força de seu pai.

Não encontrarei minha morte tão prontamente! E que absurdo é esse de aversão? — Elard fez uma careta de dedém. 

— Eu não odeio Raygan — declarou, mais uma vez defendendo-se de tal acusação infundada. — Por qual motivo estão tentando convencer-me de que cometi um pecado imperdoável?

Thayrin conscientemente evitou lançar o olhar na direção das volumosas cortinas.

Está mentindo? — Seus olhos desconfiados estavam fixados nele.

— Reconheço que sua intenção era protegê-lo, no entanto, por que não se fez presente quando ele mais precisava? Leion estaria desapontado se descobrisse o que ocorreu com seu irmão mais novo. Será que é esse o motivo pelo qual o mantém escondido por trás dessas cortinas? Está com medo de ser julgado por ele?

De um minuto ao outro, sentiu-se em um jogo, mas agora, era ela que fazia as perguntas.

— Haha! — Um riso se esgueirou por entre seus lábios, orgulhoso e satisfeito. — Se Leion soubesse o que fiz, ele me odiaria.

— Odiá-lo? Nosso Leion? — Thayrin franziu as sobrancelhas, a incredulidade estampada no rosto. — Absolutamente não! Leion não era desse tipo! Ele nunca conseguiria odiar alguém. — Ela encostou a cabeça delicadamente no ombro do pai. — E eu também não guardo nenhum rancor.

Os lábios de Elard se curvaram em um pequeno sorriso, quase imperceptível.

— Verdade?

Thayrin assentiu com um leve movimento de cabeça.

— No fundo, Raygan também não o odeia — afirmou, seus dedos deslizando pelo contorno do anel que adornava a mão dele. — Ele está machucado. Se ele pudesse expressar seus sentimentos, ou ao menos pudéssemos entender o que ele passou no convento… — Seus olhos vacilaram por um tempo. — Talvez pudéssemos voltar a ser uma família feliz, como éramos antes.

Elard se manteve estático, com o olhar preso nas cortinas volumosas que adornavam as paredes, como se tentasse vislumbrar o que se escondia por trás delas.

— Alguma vez você se sentiu insuficiente?

Ela piscou, processando.

— Por que me pergunta isso?

— Responda. — Ele gentilmente tocou seu ombro, ainda que fosse uma ordem. — Eu sou seu pai. Diga-me e confirme se, em algum momento, você se sentiu menosprezada por ser a única mulher nascida na família Ehnov.

A jovem paralisou, e seus olhos, instintivamente, umedeceram-se em lágrimas antes que ela pudesse contê-las. Foi algo repentino; uma avalanche de recordações e comentários, todos relacionados a ela, sobre sua posição. O futuro dela como a primeira de seu nome.

De todo modo, ela respirou fundo, dizendo: — Não, senhor… 

Elard liberou seu fôlego em um suspiro resignado, e sua mão deslizou pelos cachos dela, entrelaçando-se neles num toque aprazível.

— Excelente. — Seus olhos, outrora severos, tornaram-se mais gentis. — Quero que saiba que você está prometida a um homem digno de estar ao seu lado. Ele a fará rainha de seu reino. Será amada e venerada por seus súditos, mas, acima de tudo, mostrará ao mundo que você é minha filha, a primeira princesa da Casa Ehnov.

Ele deu um sorriso e, para Thayrin, foi o bastante para dissipar toda a angústia em seu ser. Um gesto singelo que irradiava o calor dos sorrisos de seus irmãos e a sensação da presença deles ao seu lado.

— Agora vá. Volte para seus aposentos — mandou, mas com uma nota de ternura.

Como ordenado, Thayrin ergueu-se da cama. Contudo, quando Elard menos esperava, viu-a dar um passo à frente, envolvendo-o em um breve, porém sincero abraço.

— Obrigada — disse, baixinho, sem olhar para trás e prosseguindo apressada.

Ao ouvir o som do trinco da porta se fechando atrás dela, ele permaneceu imóvel, envolto na quietude do aposento, perdido em um mar de pensamentos. Numa ação quase automática, seus pés conduziram-no para as cortinas.

Seus dedos deslizaram pelo tecido espesso, apreciando sua textura. Com um movimento preciso, ele afastou-as, e diante de seus olhos, revelou-se uma pintura majestosa, emoldurada em dourado que brilhava sob a luz das lamparinas. A obra de arte retratava um vasto e incerto horizonte de um futuro indefinido refletido nos olhos de um jovem.

Ele se deixou cair aos poucos sobre a cama.

— Você acredita nisso, que eu odeio seu irmão? — comentou, como se estivesse falando com alguém presente. — Acredita que eu trairia sua mãe outra vez? Que eu, de todas as pessoas, me apresentaria diante daquele bastardo? Que bobagem! — Fez uma risada seca.

Ele esperou, silenciosamente, por um milagre de ouvir sua voz.

A voz doce, alegre e sorridente.

Foi em vão.

— O que você diria se soubesse o que fiz? Você me perdoaria se soubesse quantas vidas tirei por você?

Silêncio.

 — Mulheres…, crianças… — sua voz falhou, enquanto seus olhos rogavam, sem sucesso, que esse sentimento desaparecesse.

Ele se curvou ligeiramente, suas mãos entrelaçadas apoiando a testa; uma sensação dolorosa que o consumia de dentro para fora.

Mas, como em todas as outras vezes, não houve resposta. 

— Hah… — suspirou.

Era apenas ele,

O quadro,

E o silêncio esmagador da noite.


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Ribeira dos Desejos.

Nota da autora:

Este capítulo futuramente terá uma ilustração!



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