Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 32: Voe. Apenas voe

RODAS SOBRE A NEVE, CARRUAGEM DO DUQUE

 

Há muito tempo, pessoas dedicaram suas vidas a contar histórias. Linhagens foram narradas desde que as terras dispersas do império foram unidas. Eventos de séculos passados foram transmitidos tanto pela palavra falada, quanto em tinta nas folhas amareladas dos jornais de notícia.

Seja qual fosse o método, sempre havia mais de uma versão do mesmo fato.

A lua já havia nascido, lançando seu brilho prateado sobre a terra, enquanto o vento percorria entre as árvores. Rajadas de neve se acumulavam sobre as folhas caídas no caminho por onde uma carruagem rolava firmemente. Os dois cavalos, conduzidos por um cocheiro silencioso, marchavam para frente quando Ahoneu, com os óculos firmes no nariz, examinava um documento sob a luz trêmula da lanterna erguida pelo noviço que o acompanhava na longa jornada.

― Você poderia levantá-la um pouco mais alto? Sim, assim mesmo ― murmurou Ahoneu. Ele estudava o jornal; um boletim de notícias com o selo imperial.

― O que o senhor está lendo? ― perguntou o jovem.

― Sobre Lorist. O comandante Kaleid está fazendo um ótimo trabalho, cortando as árvores ao redor do campo do acampamento para ganhar visibilidade. É sensato preparar-se para uma emboscada, mesmo durante uma trégua. ― Ahoneu permitiu-se fazer um leve sorriso. ― Um pouco dissimulado, mas inteligente mesmo assim.

O noviço inclinou a cabeça. ― O que você pode me dizer sobre Jighal? Perdoe-me, eu não sei muito sobre as terras fora de Olpheia.

Ahoneu levantou o olhar, os olhos brilhando por cima da armação dos óculos enquanto observava a paisagem invernal.

― Jighal continua sob controle Olpheiano. As sacerdotisas e recrutas transformaram-na em um refúgio para os feridos ― explicou, sua voz firme.

― Não é um pouco longe de onde as batalhas estão acontecendo? Ouvi dizer que o acampamento em Elfrid foi destruído.

O olhar de Ahoneu se aguçou, seu tom se tornando mais prudente. ― As batalhas acontecem perto da fronteira de Elfrid. Há um rio que corta a região, e uma floresta densa impede nossas tropas de avançarem. Sabemos pouco do que há além dessas árvores, então é provável que o inimigo esteja nos esperando com arqueiros, ou pior — um bando de bárbaros, prontos para atacar. As forças de Balmont têm a vantagem do terreno, conhecendo cada caverna, fontes escondidas e refúgio.

― Então por que as notícias dizem o contrário? A última vez que li, Olpheia havia conquistado outro território de Lorist.

O leve sorriso puxou o canto dos lábios de Ahoneu. ―  Seria bom se o povo soubesse que o grande império de Olpheia luta contra um pequeno reino, que sobrevive de gado e um sistema de troca tão antigo quanto as pedras sob nossos pés? Jighal era deles, e tomá-la desequilibrou a balança a nosso favor.

― Uma troca justa de interesses… ― arriscou o jovem, olhando de soslaio.

― Prefiro chamar de “trunfo”. Em guerras, há riscos, apostas e a incerteza da vitória ― respondeu Ahoneu, seus dedos traçando distraidamente as bordas do papel. ― Jighal lutou bravamente, resistindo por dez longos anos com a ajuda de Balmont. Mas no final, não foi o suficiente. Após o ataque surpresa de Olpheia, eles estavam enfraquecidos, e sem escolha a não ser abaixar as armas. Agora, Jighal serve como uma base militar muito importante para nós.

Enquanto Ahoneu falava, um olhar distante surgiu em seus olhos, como se ele estivesse revivendo as batalhas do passado — um passado que, de alguma forma estranha, parecia gratificá-lo.

― Caso Balmont considere nos atacar durante a trégua, levaremos Jighal conosco ―  continuou. ― Muitas de suas famílias migraram para a pequena aldeia, e conhecendo-os, não lutariam contra seu próprio povo.

As sobrancelhas do noviço ergueram-se levemente, a curiosidade o levando a perguntar outra vez:

― O senhor parece saber muito sobre guerras. Já esteve em muitas batalhas?

O interesse dele não passou despercebido pelo olhar afiado de Ahoneu.

― Curiosidade, meu querido, pode ser uma coisa perigosa. ― As bordas de seus olhos enrugando-se em diversão. ― Conheço muitos segredos, e escolhi meus aliados cuidadosamente. Bem, normalmente, quando alguém faz muitas perguntas, há um motivo oculto por trás. Você não me parece uma pessoa que gosta de bisbilhotar o passado de um ex-comandante. ― Sorriu, a luz bruxuleante da lâmpada dançando em seus olhos. ― Estou enganado?

― M-me perdoe… ― o jovem gaguejou, desviando o olhar no mesmo instante. ― Estou sendo inconveniente. 

Isso não importa, de qualquer maneira ― pensou o duque, desinteressado.

― Você sabe onde estamos? ―  inquiriu o duque, dobrando o papel e colocando-o no bolso interno do jaleco.

― Passamos por Giorgya há meia hora.

― Ah, sim. ― Ele relaxou os ombros. ― Um lugar fechado, isolado em seu próprio mundo.

O noviço hesitou antes de falar. ― O senhor ouviu os rumores? Que um nobre foi morto…

― Haha! Trágico, não é? Aquele lugar está abandonado à própria sorte. Nem Lowrie conseguiu mantê-lo sob controle.

― O Barão de Damesthia?

Ahoneu ajeitou-se no acolchoado do assento, o brilho tênue da lamparina projetando sombras suaves sobre seu semblante impassível. ― Sim, este mesmo. Mas ele e os outros são irrelevantes para nós.

O jovem, sentado à sua frente, franziu as sobrancelhas, perdido em seus pensamentos. Como poderia, uma terra tão pequena, causar tanto caos?

 E Ahoneu, notando tal reação, perguntou:

― Seu nome é Normalek, certo? ― Ele tocou no bolso das calças.

― Sim, senhor ― respondeu o rapaz, endireitando-se, sentindo o peso da atenção de Ahoneu sobre si.

― Diga-me, Normalek ― prosseguiu ele, enquanto deslizava os dedos sobre a pequena caixa de cigarro. ― Por que estamos indo a Leswen?

― Para formar uma aliança entre a princesa Thayrin e o príncipe Bryce ― expôs, prontamente.

Ahoneu assentiu, satisfeito.

― Exato. Mas…, você realmente acredita que é minha obrigação casá-la com ele?

Normalek hesitou, lançando um olhar para os cigarros perfeitamente enfileirados. ― Bem, sim. Vossa Excelência é o primeiro-ministro. Há outra razão?

Ahoneu riu suavemente, um som que ressoou mais como uma advertência discreta. ― Com licença. ― Ele abriu o compartimento da lamparina. ― Você se importa se eu…? ― Colocou o cigarro aceso na direção da boca. O noviço recusou com um leve aceno de cabeça.

― Não, senhor.

Ahoneu, com o cigarro na boca, conferiu as horas no relógio.

― Muito bem. É preciso entender que nem sempre nossos planos se desenrolam como queremos. Planejamos, calculamos, e ainda assim, o destino muitas vezes nos trai.

Normalek manteve o olhar fixo nele, durante o tempo em que o homem dava a primeira tragada.

― Às vezes, é necessário agir quando os outros menos esperam. Formar alianças é fundamental para manter o poder, especialmente com aqueles de sua própria família. Em uma dinastia, não muito distante do que vivemos hoje, era comum manter o sangue da realeza puro. No entanto, para adquirir mais terras, casamentos arranjados foram utilizados para alcançar esse objetivo.

― Ah… Eu… Espere. ― Normalek interveio, incerto. ― O imperador não está ciente dessa união? 

Você já ouviu falar sobre a necessidade de agir sorrateiramente? ― Ahoneu fez um curto suspiro, desapontado. Ele soltou a fumaça que se dissipou pelo teto do veículo. ― Pelo contrário, ele concordou. Mas você… vê problema algum com isso?

― Problema? Não consigo imaginar. Mas, o senhor tem outras intenções com esse casamento?

A pergunta pairou no ar. Ahoneu fez uma pausa, seus olhos, agora estreitados, fixaram-se intensamente no noviço.

― Você é um rapaz curioso ― disse, um sorriso suave curvando seus lábios, embora seus olhos não refletissem a mesma gentileza.

― E-Eu… Não foi minha intenção… perdão. ― Normalek desviou o rosto.

O duque recostou-se mais e observou as árvores que se moviam como borrões.

― A igreja continua evitando qualquer menção à guerra, ou outro assunto envolvendo a família imperial. Não o culpo por querer entender as motivações de Olpheia em uma disputa que, à primeira vista, parece sem sentido.

― Sem sentido?! ― Normalek o interrompeu, sua voz em tom de surpresa. ― Posso não conhecer muito sobre conflitos, mas entendo as motivações de sua majestade, o imperador!

― E você não acredita que Olpheia seja culpada? ― O questionamento foi cortante, entretanto, sua expressão manteve-se imperturbável, buscando uma resposta nos olhos que refletiam a luz vacilante da lamparina, que lançava sombras densas sobre o rosto do jovem.

― De maneira alguma! Estamos apenas nos defendendo! ― disse, seguro. ― Eu era apenas um menino quando tudo aconteceu, e hoje entendo a razão deles serem os inimigos do império.

― É nisso que você acredita, a Igreja, ou outra pessoa? ― Tragou novamente.

Os dois se encararam em silêncio.

O ar tornou-se pesado, impregnado pelo cheiro enjoativo do cigarro. Outro alguém? Para o noviço, o que mais o incomodava era a sensação de que uma palavra poderia selar seu destino ali mesmo.

― Olpheia vencerá ― afirmou, embora seu olhar não revelasse tanta confiança. ― É nisso que o nosso povo acredita.

Ahoneu observou-o por alguns segundos, analisando sua postura. Ele era membro da Igreja, selecionado por ninguém menos que seu próprio filho. O rapaz possuía uma fala hesitante e parecia não estar ciente da verdadeira natureza do ambiente que o envolvia.

As pessoas eram simples de entender, e não existe regra que proíba alguém de estar sempre um passo à frente dos demais. A maneira como alguém fala, seus gestos, postura e até mesmo a direção do olhar durante uma conversa comunica muito sobre a pessoa.

Com um sorriso sarcástico, Ahoneu deu uma tragada, enquanto a pequena chama se refletia no vidro da carruagem.

― Sim, eu também ― disse, sua voz agora mais grave, mas que continha uma calma inquietante. Ele soltou a fumaça, atraído pela paisagem quase morta à sua volta. ― Apague a luz. Será uma longa viagem.

O inverno avançava implacável, cobrindo as terras com sua gélida promessa de um frio que não perdoaria nem homem, animais, ou bestas. As florestas e os campos intocados pelo homem já sofriam com a chegada dele. Na capital, os ventos cortantes silvavam entre as ruas, obrigando os cidadãos a se abrigar. Pais e mães envolviam seus filhos em grossas mantas, enquanto aqueles de coração mais nobre ofereciam um mínimo de conforto aos animais sem dono com tigelas de leite quente.

No interior do palácio, Elard caminhava pelos corredores iluminados, seus passos firmes, acompanhado por três membros do Primeiro Conselho. Próximo a eles, o som abafado de risadas ecoava pela grande sala de banquete. Lá, os cortesãos se divertiam com a vulgaridade dos bobos da corte, que, no palco improvisado, faziam piadas e gracejos às custas da primeira imperatriz.

Uma das atrizes simulava gestos indecorosos, à medida que seu parceiro imitava um corcunda que a auxiliava a arrancar gargalhadas dos senhores e senhoras, cujas taças transbordavam com vinho.

Elard, no entanto, permanecia alheio à frivolidade, sua expressão indiferente. Sem perder o foco, virou-se para seus conselheiros e ordenou com a voz cheia de autoridade: 

― Separem os relatórios em três pilhas. Quero os de Lorist em minha mesa pela manhã, os de impostos para Lorde Henryk, e os de Kanaris entregues à imperatriz.

Um dos conselheiros, mais ousado, arqueou a sobrancelha em surpresa, arriscando questionar.

― A imperatriz, Vossa Majestade?

Elard lançou-lhe um olhar gélido, e respondeu:

― Avise uma de suas damas que, a partir de amanhã, ela será responsável por revisar os relatórios relacionados aos eventos em Giorgya e ao acampamento em Kanaris. O general Halcan já foi instruído a detalhar os acontecimentos do treinamento, assim como qualquer atividade de espionagem nas fronteiras.

―, Mas isso ainda é mera especulação ― outro interveio, a voz cautelosa. ― Não seria mais prudente deixar o senhor Oracis conduzir essa investigação?

A resposta de Elard foi imediata e cortante.

― Está duvidando da competência de sua rainha?

― N-Não, de forma alguma! ― O conselheiro recuou, inclinando a cabeça em submissão. ― Apenas me preocupo de que tal responsabilidade possa sobrecarregá-la.

― Faça o que lhe foi ordenado ― Elard disse, encerrando a questão. ― E certifiquem-se de que todos os documentos relacionados à Leswen cheguem à minha mesa nos próximos dias. Mardô será o responsável por organizar a papelada na ausência de Ahoneu.

Os conselheiros, em seus mantos de pele e brocados luxuosos, inclinaram-se em reverência antes de serem dispensados com um gesto. Eles se retiraram, mas não sem que um deles, o mais atrevido, sussurrasse com desprezo:

― A única obrigação dela é abrir as pernas para ele, e nem isso faz direito. Tsk.

Administrar Giorgya era uma tarefa digna de um nobre responsável. Um indivíduo qualificado; um homem.

Mardô ouviu o comentário, mas, mantendo-se a três passos de distância, nada disse. Em sua visão, Elard não pareceu notar o insulto velado, ou talvez simplesmente não tenha se importado. 

― Como ela está? ― A voz de Elard quebrou o silêncio enquanto eles caminhavam.

Mardô pensou por um momento antes de responder.

― As empregadas afirmam que ela está bem. O lençol, pela manhã, estava manchado.

― Como de costume, uma semana antes da virada do mês ― ele comentou.

O mordomo arqueou a testa, porque, até então, tal informação era restrita às empregadas mais confiáveis da rainha. Assim, ao chegarem aos aposentos do monarca, Elard, sem perder tempo, dirigiu-se diretamente à mesa, servindo-se de uma taça de vinho.

Seu suspiro pesado ecoou no aposento silencioso enquanto ele inclinava a cabeça, apoiando-se com uma das mãos.

― Por quanto tempo mais ela planeja me ignorar? ― Ele murmurou, dando um gole tão longo que esvaziou metade de sua taça.

Mardô, com as mãos cruzadas atrás das costas e o rosto marcado pela idade, respondeu em tom leve:

― Devo chamá-la?

― Não. ― Elard pousou a taça com um baque suave. ― Ela não está interessada em me ver.

― Presumo que a noite anterior não correspondeu às suas expectativas ― expressou Mardô, porém, sua brincadeira foi acolhida pelo silêncio costumeiro.

― Estou exausto ― declarou Elard, sua voz mais suave, porém cansada enquanto organizava os documentos espalhados em sua mesa. ― Você está liberado.

Mardô fez uma reverência discreta antes de se retirar, fechando a porta com um clique suave. Elard, ao ouvir o som do ferrolho, dirigiu-se à cama, jogando-se na ponta, as pernas ainda pendendo para fora. Ele cobriu os olhos com o antebraço, tentando encontrar algum alívio na momentânea escuridão.

As risadas ainda ecoavam ao longe. Provavelmente, era o eco de uma mente cansada, ou ele estava perto demais da sala de festa.

Ao olhar para o lado, ele fitou a taça, e o que restara do vinho.

Suas memórias vagavam entre a sensação de sentir o cansaço consumi-lo, assim como a de ver as figuras distorcidas na sala de reunião. Ele não sabia distinguir se sua sobriedade estava na melhor das condições, mas tais manchas no rosto dos conselheiros eram inevitáveis.

A impressão era de estar sendo vigiado, seus passos monitorados, nada diferente daquela época.

“Você é fraco.” — Uma voz distorcida, criada por sua própria mente, falou.

Ele ignorou, sentando-se na beira do colchão, e mais uma vez, as risadas reverberaram perto do cômodo.

Elard levantou da cama, pegando a garrafa de vinho e virando-a contra seus lábios quando, de repente, seus olhos notaram as grandes cortinas vermelhas na parede do lugar. 

“Covarde.” —  A voz persistia.

O ar gelado brincou em suas bochechas, pois naquela noite, o céu parecia brilhar mais do que o costume.

A janela encontrava-se aberta, e Elard, com passos cautelosos, aproximou-se. Ele posicionou sua mão esquerda sobre a pedra fria dos balaústres, enquanto a outra segurava firmemente a garrafa de vinho. Seus cabelos ondulavam ao vento, porém, seu corpo permanecia indiferente ao desconforto dos criados que passavam bem abaixo dele. Seus braços já estavam acostumados à sensação do tempo frio.

Era uma altura consideravelmente elevada. O terceiro andar do imponente palácio, onde qualquer um que…

“Usurpador.”

Com os olhos inexpressivos, Elard observou o gramado, acomodado no parapeito. Embora o vento parecesse empurrar seu corpo para dentro do quarto, ele delicadamente inclinou-se para fora, derramando o restante do vinho sobre o solo.

Perguntando-se, sem perceber, como era a sensação de flutuar por alguns segundos, antes de tocar no chão, voar naquele vento gélido e esquecer todos os problemas e dores. Talvez, até mesmo deixar de ver tantas manchas escuras que pareciam cercá-lo mais do que no passado.

Como era, por um momento, não ser o imperador.

“Assassino do próprio irmão.”


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Ribeira dos Desejos.

Nota da autora:

Boa tarde, pessoal! Perdão por atrasar o capítulo, ou se tiver alguns errinhos. Estou fazendo uma ilustração para postar no artigo de PdO no site, então não tive tempo para fazer uma revisão minunciosa. Futuramente, estarei postando uma ilustração deste capítulo quando o artigo for postado, então, não se esqueçam de conferir!

Obrigada pela atenção, e se cuidem! S2

Rhainah.



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