Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 31: Estrelas Fugitivas

PALÁCIO DO LEÃO DOURADO, ARIUCH


A mesma sensação no estômago há sete anos. Os dedos cravados nas palmas das mãos fechados sempre que os olhos sombrios do imperador, sem qualquer emoção, o atravessavam de cima a baixo. Indiferença, raiva, desgosto – muitas palavras que significam um único sentimento: desprezo.

No entanto, Thayrin não merecia aquilo.

Raygan lembrava-se vividamente de suas andanças pelos corredores imponentes do palácio, onde o eco suave de uma melodia sempre o chamava. Um som doce que alcançava todos que quisessem parar e ouvir. E, como um rato curioso, o jovem príncipe observou em segredo. Próximo a um piano branco, estava ela, a jovem Thayrin, o corpo pequeno e gracioso, movendo-se com o ritmo da partitura. Seus braços deslizavam com maestria sobre o violino, a testa brilhante com gotas de suor enquanto lutava para capturar as notas mais velozes.

Ela era perfeita.

Um brilho invadiu os olhos de Raygan ao ver o feixe dourado da luz atravessar as grandes janelas, tingindo o bordado e a seda do vestido cor de rosa-claro de Thayrin. O movimento e o acorde pareciam uma dança, uma batalha entre precisão e arte, até que, num descuido fugaz, seu dedo tropeçou sobre a corda errada.

O som dissonante quebrou a perfeição.

A mulher que a vigiava do outro lado da sala avançou, o vestido longo e escuro varrendo o chão, imitando uma mancha escura que a seguia. O coque em seu cabelo estava impecável, e seus passos com um peso de autoridade fria e indiscutível. Ela se colocou diante de Thayrin, observando-a antes de arrancar o violino de suas pequenas mãos.

— Poderia ter sido perfeito, princesa — disse a mulher, a voz gélida. O violino foi entregue a um servo, que aguardava obedientemente.

— M-Mas… eu sempre erro nessa parte… — Thayrin gaguejou, a voz frágil como uma taça de vidro. — Eu me esforcei… avancei tanto…

— Não é suficiente — cortou a mulher. Um chicote. — Seu pai me trouxe aqui para que você alcance a perfeição. A madame Charlotte foi branda demais nas aulas de etiqueta. Agora, sou eu quem cuida da sua educação.

O silêncio se estendeu como uma corda tensa até que uma terceira voz soou ao longe. — Madame Louise, sua majestade, a rainha, está chamando — disse Mardô, surgindo por uma das portas laterais.

Madame Louise fez uma pequena reverência antes de se afastar, mas não sem antes lançar um último olhar penetrante à jovem princesa. — Leia a partitura novamente, e certifique-se de que esteja perfeito. Seu irmão não merece uma irmã tão desleixada.

— Sim…, madame — murmurou Thayrin. Ela tremeu, sem perceber a força de suas mãos desferida no vestido.

Raygan, do corredor, observava. No salão imenso e solitário, sua irmã se esforçava para viver à altura do título que uma princesa exigia. Ela era a primeira da linhagem Ehnov, a vergonha da geração marcada por guerreiros fortes e inteligentes. Grandes estrategistas do império.

Ela precisava ser perfeita!

Mas a perfeição, o pequeno Raygan sabia, era um veneno.

Thayrin, com os punhos fechados de fúria contra o tecido, avançou em direção ao piano. Suas mãos tremiam quando arrancou as partituras da estante, rasgando-as desesperadamente. Os pedaços de papel caíram como folhas mortas, espalhando-se pelo chão de mármore. Apesar de ser um dos cômodos mais preservados do palácio, ela pisoteou-o, esmagando papel sob os pés, numa tentativa frustrada de reprimir o grito abafado por suas pequenas mãos.

De outro ângulo, Mardô a fitou de sua posição respeitosa, sem dizer uma palavra, acostumado à ação, mas… de certo modo, parecia triste.

Raygan, espiando pela porta entreaberta, congelou ao vê-la. Ele pensou em se aproximar, talvez dizer algo, mas seus pés permaneceram enraizados no chão. Foi quando ouviu passos leves se aproximarem. Seus olhos se ergueram rapidamente e encontraram a figura esguia à sua frente.

O colete perfeitamente ajustado ao peito, o relógio de bolso reluzindo à luz, e a pedra cintilante presa ao lenço envolto do pescoço. Mas eram os olhos — azuis-turquesa, semicerrados em um sorriso que escondia mais do que revelava — que prenderam a atenção de Raygan.

— Olá, jovem príncipe — saudou o homem, com um sorriso de canto, seu olhar afiado. — Onde está seu guarda pessoal?

Raygan hesitou por um momento, antes de abaixar ligeiramente a cabeça. — Meu pai ordenou sua execução.

— Hm? Por quê?

— Eu não sei — confessou Raygan, a cabeça inclinando-se mais.

O olhar do sujeito, de repente, adquiriu um brilho frio. Ele se aproximou um pouco mais do menino indefeso, que evitava encará-lo.

— Lembre-se de sua posição. Um príncipe jamais abaixa a cabeça para ninguém, nem mesmo para o imperador.

Houve uma leve sensação de formigamento nas orelhas do garoto.

— Nem mesmo para meu pai?

Três segundos se passaram. Silêncio.

— Nem mesmo para seu pai, Alteza. — Sorriu, seus cabelos alinhados ofuscados pela luminosidade das janelas.

As memórias balançavam-se na mente de Raygan, como um mar agitado.

Eu sou um príncipe! — pensou ele, a fúria borbulhando em suas mãos. Que se dane esse plano idiota!

Ninguém… Ninguém fala da minha irmã!

Num movimento brusco, ele abaixou-se, pegando uma pedra meio enterrada sob a neve. Virando-se com rapidez, Raygan ergueu o braço, pronto para lançar o projétil contra aquele que ousara falar tais blasfêmias. Mas antes que pudesse agir, sentiu seu pulso sendo agarrado.

Daemis, com olhos arregalados de surpresa, segurava-o firmemente.

— A-Aygnar? — Sua voz falhou. — O que você está fazendo?

Raygan tentou se soltar, seu olhar ardendo de raiva.

— Me solte, fedelho! — sibilou ao tentar puxar o braço. Mas a força de Daemis manteve seu punho preso.

— Eu ligo se você me insultar! — Seus olhos gentis foram convertidos em uma expressão séria. — Quantos nomes você acha que já ouvi apenas por ser um estrangeiro? Eu não sei o que aconteceu para você agir assim, mas olhe.

Ele apontou discretamente para Halcan, que os observava de perto. A mão do velho estava pousada no cabo da espada.

— Se você fizer isso, Halcan não poderá ajudá-lo — alertou em um tom baixo, num sussurro. — Você acredita que pode lidar com uma briga sozinho?

— Você não sabe quem eu sou! — disparou Raygan, soltando-se do aperto com um puxão abrupto.

— E você não os conhece! — rebateu Daemis, o cenho levemente franzido. — Aygnar, me escute, por favor.

O nome ecoou na mente de Raygan como um lampejo, no entanto, distorcido.

Aygnar? — ele perguntou por um segundo.

Não, estava errado. Aygnar não tomaria essa atitude.

Raygan largou a pedra. Seu rosto, outrora aborrecido, transformou-se em sobrancelhas inclinadas para baixo e um olhar de desprezo. Então, sem dizer mais nada, ele moveu-se furtivamente para fora da vista de todos.

— Aonde você vai? — inquiriu, preocupado.

— Cala essa boca — cortou Raygan. Ele desapareceu na escuridão que envolvia as laterais dos chalés.

Quando os sussurros inquietos começaram a aumentar, Oracis irrompeu:

— Isso não é da conta de vocês! — rugiu, dissipando o burburinho. — Esqueçam suas vidas fora de Kanaris! Amanhã, todos estarão de pé antes do amanhecer. A primeira lista de tarefas será feita, e sugiro que aproveitem esta noite para descansar. Porque amanhã, farei com que desejem estar limpando as fezes dos cavalos nos estábulos.

O sorriso de Oracis era frio, quase cruel, como se ele tivesse aguardado por muito tempo para transformar a vida dos garotos em um pesadelo.

O silêncio desceu novamente sobre o campo, denso como uma névoa noturna. As chamas no centro do acampamento dançavam solitárias, crepitando de maneira irregular, enquanto os pequenos grupos de jovens se reuniam ao redor do fogo. Eles seguravam canecas de leite quente oferecidas pelos servos que lá residiam, cujo vapor subia lentamente ao encontro do céu escuro. Risadas tímidas brotavam, mas logo se perdiam no vento que soprava nas copas das árvores. Outros, mais cautelosos, preferem a solidão, observando de longe o balançar das folhas e o brilho ocasional do luar que se infiltram pelas sombras.

Os soldados dispostos em cada canto mantinham vigília. 

Daemis, portanto, via os garotos se divertindo, alguns fazendo novas amizades, e outros se abrigando na calidez dos dormitórios, suas silhuetas recortadas contra as janelas embaçadas pelo vapor. Mas entre eles, apenas um chamou sua atenção: Aygnar.

Aygnar estava sozinho, sentado em um tijolo de pedra ao lado da parede de madeira do chalé, afastado dos demais. Seus braços estavam dobrados sobre os joelhos, e seu corpo curvado, pensativo.

O jovem recruta soltou um longo suspiro, que se perdeu no ar gélido. Muitos acontecimentos em um único dia. Era um pouco cômico. Ainda assim, ele coçou a cabeça, e seus abafados pela neve, atingiram os ouvidos de Raygan.

— Está com frio? — inquiriu Daemis. Era para quebrar o gelo, tanto literal quanto figurativo.

Raygan, porém, manteve os lábios firmemente selados. O frio começava a tingir suas mãos de um vermelho pálido, e suas bochechas estavam congeladas, o nariz prestes a escorrer. Daemis notou os sinais e, com um gesto quase casual, tirou as luvas do bolso das calças protegidas pelo manto, colocando-as ao lado do príncipe. Sentou-se ao lado dele, sem se importar com o toque gelado da neve em suas calças.

— Talvez fiquem grandes em você, mas vão esquentar suas mãos. — Ele tinha um sorriso leve, gentil.

Raygan, indiferente à oferta, virou o rosto. Por que alguém, especialmente um estrangeiro de um território inimigo, se importaria com ele? Gentileza? Vindo de um estranho? Com certeza era uma piada.

— O céu está bonito esta noite — continuou, inclinando-se para trás. Ele apoiou as mãos nos flocos de gelo para observar melhor os pontos cintilantes. — Parece que as estrelas estão se movendo.

Apesar de seu desinteresse inicial, Raygan lançou um olhar ao céu. As estrelas pareciam deslizar calmamente, como se fugissem do lugar. Por um momento, ele se perdeu na imensidão à sua frente. Se as estrelas pudessem escutar seus pensamentos, talvez fossem incapazes de explicar o que significaria ser livre.

— Você realmente ia jogar aquela pedra em alguém? — questionou Daemis, a expressão suave adquirindo a incerteza.

O comentário atingiu Raygan como uma flecha. Eu…? Não importava se a resposta fosse sim ou não, ele sabia que havia uma razão por trás, defender a honra de Thayrin. Sempre foi assim.

— Não é da sua conta — respondeu, ríspido.

As luvas continuavam no chão, cobertas por uma fina camada de neve.

— Um amigo não deveria se preocupar com outro?

“Amigos”.

Apenas dois dias passaram desde que se encontraram. Dois dias desde que tinham se encontrado pela primeira vez. Como ele podia confiar tão facilmente em alguém que mal conhecia? A ideia é absurda.

— Já disse que não quero amigos — expôs Raygan, convencido.

Daemis permaneceu inerte, seus olhos perscrutando o príncipe. Em Lorist, era comum ver homens cobertos de armaduras, prontos para o combate, mas o jovem à sua frente era novo demais para usar um peitoral de aço — e um tão pesado quanto os que ele polia.

— Você disse que queria me ver tentar — falou Daemis, numa mistura de curiosidade e dúvida.

As palavras pairaram no ar frio, suspensas como o hálito que escapava de suas bocas. O jovem príncipe não esperava que o recruta levasse o seu comentário a sério.

Amigos? — Raygan bufou. Calado, ele desviou o olhar para o agrupamento de árvores nuas, cujos galhos finos e retorcidos se erguiam contra o céu, escuro e pontilhado de estrelas. Seu corpo estava rígido, cada músculo tensionado, refletindo a confusão em sua mente.

Era incerto, relutante. As pessoas não são confiáveis. Raygan notou um pequeno corte na lateral da mão esquerda, até então despercebido.

— Halcan mandou você agir assim? — perguntou, distraído, examinando o machucado.

— Perdão? — Daemis inclinou a cabeça, confuso. — Por que ele pediria algo do tipo?

Raygan fechou os olhos por um instante. Tantas perguntas… poucas respostas. Para quem pensava rápido, como ele, a sensação de antecipar respostas que surgiam sem esforço era, no mínimo, entediante. Os cenários eram fáceis de prever: generosidade, curiosidade…, espionagem.

Halcan era gentil, disso não havia dúvidas. Talvez fosse um argumento razoável. Enviar o garoto, a quem ele tratava como um filho, fazia sentido.

Curiosidade? Talvez. Mas curiosidade… sobre o quê?

Espionagem? Não. Apenas um tolo seria enganado duas vezes pelo mesmo grupo de garotos e sentimentos de culpa.

A primeira opção era a mais óbvia, no entanto, antes que concluísse sua linha de raciocínio, o som distante dos portões do acampamento reverberou, interrompendo seus pensamentos. Um vento forte agitou seus cabelos, e, ao longe, ele captou o barulho abafado. Endireitou-se, atento. De onde vinha o ruído?

— O que foi? — indagou Daemis, seguindo o olhar dele, já colocando as luvas que serviram apenas para acumular neve.

Raygan se levantou. Algo estava se movia no centro do lugar. Sim, ele estava certo — cascos de cavalos ecoavam pelo chão coberto por neve e lama. Era uma carruagem adornada com símbolos que o garoto conhecia. Adornos feitos à mão, somente para a nobreza, atravessaram os portões.

O príncipe, assim como os outros jovens curiosos, observou a carruagem parar, e dentro dela desceu um homem envolto em uma manta de um azul que se fundia à escuridão. Ele examinou o local antes de convocar um soldado para se encontrar com Oracis, que esperava na porta da cabana do general.

Raygan viu o homem se aproximar e, em seguida, um jovem desceu o único degrau da carruagem. As bochechas pálidas do recém-chegado estavam rubras pelo frio, seus olhos lembravam violetas de inverno, e os cabelos, negros e finos como seda, contrastavam com o restante de sua aparência e roupas delicadas, protegidas do frio.

O filho de nobre. Todos os jovens presentes pensaram, quase instintivamente.

Mas não era apenas ele.

Quando a mão enluvada de uma menina tocou a do garoto, Raygan sentiu o ar embargar-se. Uma figura pequena. Ela usava um véu que ocultava o cabelo, suas bochechas redondas e rosadas, cílios brancos como a própria lua,  desceu da carruagem. 

A lembrança o atingiu com força, e ele girou nos calcanhares, afastando-se. Ele estava fugindo.

Daemis limpava a neve do manto quando o viu distanciar-se.

— Aygnar? Aonde vai? Aygnar! — chamou, mas Raygan já se afastava, seus passos rápidos em direção ao chalé.

Entretanto, antes de cruzar a porta, ele lançou um último olhar sobre o grupo, seus olhos fixados na dupla que adentrava a cabana de Halcan.

Eram eles, o príncipe tinha certeza. Os irmãos que conheciam a sua fraqueza, o ponto fraco de quando as emoções estavam fora do controle.


Capítulo novo toda semana! 

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