Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 30: Os Escolhidos

ACAMPAMENTO, KANARIS


Entre os sons da floresta, o uivo do vento flutuava pelos chalés, como folhas levadas ao céu, aquele, banhado de um azul arroxeado que varria o celeste. O sol já se despedia, e a última luz alaranjada se agarrava teimosamente aos picos dos morros ao longe. As brasas lançavam um calor reconfortante, afastando o frio dos flocos de neve que caíam sobre os jovens, suas vestes gastas mal protegendo-os, enquanto o rubro tingia as bochechas e a ponta de seus narizes.

Potes e vasilhas jaziam vazios; colheres sujas repousavam ao lado deles, sinal de barrigas satisfeitas. Ouviam-se gargalhadas, todos assentados próximos do fogo fulgente. Perto da janela, Raygan os observava, com a chama das velas refletidas em seu rosto sério. O livro que ele segurava, com suas páginas amareladas pelo tempo, permanecia apoiado em seus dedos finos.

Novamente, mais risadas. Um dos garotos agarrou o pescoço de um mais velho. Quando o príncipe percebeu, alguém comeu por dois. A algazarra aumentou quando um dos soldados, irritado, repreendeu os jovens que corriam em círculo pela fogueira. Sua voz autoritária os silenciou momentaneamente, contudo, os rebeldes logo soltaram risos abafados, indiferentes à ordem do superior.

Raygan, alheio à confusão, voltou seus pensamentos às palavras no papel manchado. Ele ponderava sobre os meninos, acreditando que a solução mais simples era costurar suas bocas. Ou cortar suas línguas. Essa ideia não parecia tão má; afinal, era o que Etyllia costumava fazer com seus inimigos de guerra. Pelo menos, foi o que Etyll contou.

Etyll. O nome vagou pela mente dele. Ele era explorador. Etyllia, a ilha perdida, lar de seres mágicos. Seres de orelhas pontudas, ocultos nas sombras das florestas. Criaturas, metade humanas, metade aves. Também havia os de pele verde, baixos e ranzinzas, que se alimentavam da lava de vulcões adormecidos. Tais criaturas estavam registradas em livros que desafiavam os ensinamentos da igreja. Era um milagre que Henryk tivesse guardado tal relíquia; em mãos erradas, teria sido queimado sem hesitação.

No beliche acima, Daemis despertou de seu cochilo, coçando os olhos antes de lançar um olhar cansado na direção de Raygan. Observou-o em silêncio, intrigado com a intensidade com que o outro garoto lia. O que poderia ser tão fascinante naquele livro mofado?

― Sei que está acordado ― disse Raygan, a voz baixa, sem desviar os olhos das páginas.

Daemis sentou-se no acolchoado confortável que o desafiava a levantar, seus dedos encontrando a armação da cama.

― Como você faz isso?

― O quê?

― Sabe… ― bocejou. ― Perceber os outros. Como você sabia que estava acordado?

Raygan esboçou um sorriso quase imperceptível. ― Eu ouço até o menor dos ruídos.

― Então, você é um rato? ― Ele flexionou os braços para trás da cabeça, testando a disposição de seus músculos.

Raygan arqueou uma sobrancelha, seu olhar tornando-se desconfiado. ― Rato?

― Em Jighal, chamamos ratos aqueles que espreitam os becos. São rápidos, espertos, e conhecem cada canto da cidade. As crianças, livres como os pardais, correm pelas ruas.

Raygan fechou o livro com um movimento lento, dois dedos deslizando pela capa gasta. Ele fitou a janela, onde uma fina camada de gelo começava a se formar. ― Um rato… ― falou, pensativo. ― Gosto de estar acima de todos os animais. Hm, como um leão.

Daemis travou o olhar na figura franzina e desajeitada do garoto à sua frente. Um leão? Ele tinha dificuldade em ver “Aygnar”, com seus ombros pequenos e cabelos despenteados, como o predador majestoso que ele alegava ser.

― Um leão… você diz. ― Daemis esboçou um largo sorriso, sua expressão genuína. ― Eu diria… um gatinho — brincou.

Os lábios de Raygan contorceram-se em desgosto. Ele considerou brevemente atirar a obra literária na cabeça de Daemis, mas descartou a ideia. A distância era grande demais para um impacto satisfatório, e, além disso, o livro era valioso demais para tocar alguém tão tolo.

Então, ignorando o comentário, expressou:

― Arrume-se! Todos os garotos já chegaram. ― Ele deixou o livro na estante próxima, erguendo-se da cama. 

E assim foi feito. Daemis, descendo do beliche, tocou nas vestes dobradas na cama. Uma camisa esfarrapada, um manto e luvas. Manto e luvas de lã ― vermelho e marrom, respectivamente. Uma combinação perfeita para se esquentar do frio. E, enquanto Raygan aguardava, ele, sem querer, reparou na costa nua de Daemis. Ele conferiu as linhas que dividiam os músculos do dorso, levando um leve choque de realidade.

Com os olhos bem abertos, Raygan reparou os pequenos arranhões que cobriam os ombros de Daemis. Havia algo de impressionante neles, uma força bruta que ele mesmo jamais possuiria, e seus braços diziam muito sobre o tipo de trabalho que fazia.

— Você… disse que é um recruta — comentou Raygan, numa falha tentativa de conter a curiosidade.

— Hm? — Daemis virou-se, metade da camisa ainda presa sobre sua cabeça, os cachos saltando desordenadamente. — Ah, sim. Bem, digamos que não oficialmente. O senhor Halcan esperou que eu desse o primeiro passo para começar a receber um tratamento de recruta. ― Ajustou a gola e as mangas do tecido. ― Por quê?

E o que os recrutas faziam para ter um corpo desse? ― perguntou Raygan, em seus pensamentos.

— Já vi idiotas da sua idade antes, e…, você não se parece com eles — Raygan fitou seu próprio corpo, magro, baixo, com mãos finas que se assemelhavam mais a luvas de seda do que ferramentas de trabalho. Dois anos de diferença eram uma mudança tão brusca? Ele riu da sua própria situação. A visão de Daemis só o fazia sentir-se mais inadequado. — O que você fez? Treinou, bebeu sangue de urso em Lorist? Algo nesse sentido.

Algum tipo de ritual?!

—  Sim, treinei, mas não a parte do sangue. Isso é nojento! ― Que louco faria algo assim? ― Uma voz zombou na cabeça dele.  ― Carreguei muitos jarros de água para as sacerdotisas que cuidavam dos feridos. Além disso, também espadas para os soldados quando me mandavam. Puxava os baldes do rio, guiava os cavalos dos estábulos e ajudava a cortar lenha.

Raygan soltou um riso seco, de surpresa e desdém.

— Então você era uma espécie de… capacho? Isso explica por que você não sabe manejar uma espada direito.

Daemis poderia encarar tal afirmação como uma provocação, no entanto, apenas sorriu.

— Eu gosto de imitar os soldados nos treinos.

Que tipo de treino? — pensou Raygan. Seus “treinos” consistem em estudar mapas, a política de Olpheia e as terras além do império, preparando-se para ser um rei, mas sem nunca participar de uma batalha real.

De que adiantaria um rei incapaz de liderar seus próprios exércitos?

Quando Raygan considerou questioná-lo, a porta do quarto foi aberta bruscamente, como um baque.

— Acordem para cuspir! — gritou o cocheiro, sua voz ecoando pelas frestas das paredes.

— AH! — O corpo de Raygan saltou, seu coração martelando no peito. Daemis, no entanto, congelou;  imóvel e olhos arregalados — certamente, uma estátua.

— O que estão fazendo? Halcan está esperando! — Ele bateu a porta ao sair, sem dar chance de resposta.

— Merda! Ainda vou matá-lo! — resmungou Raygan, massageando as têmporas.

— Você gosta de xingar, hein? — analisou Daemis, num sorriso brincalhão. Ele puxou a túnica, guardando as luvas no bolso das calças. — Se Halcan ouvisse isso…

— Vai dizer que você é religioso? — ironizou, ainda irritado.

— Não diria que sou devoto, mas respeito todos igualmente. Sou um garoto bem-educado. ― O sorriso tornou-se travesso. ― As sacerdotisas gostavam disso, da imagem de um bom menino. — Ele parecia bem feliz ao lembrar-se delas.

Belas sacerdotisas ―  imaginou Raygan, revirando os olhos. De qualquer maneira, os dois caminharam para fora do chalé, seguindo o fluxo de jovens que se reuniam à fogueira.

Daemis estava atento às diferentes fisionomias à sua volta. Alguns garotos eram menores, outros mais robustos e experientes. Todos estavam ali esperando a aparição do velho general que, em passos lentos e pesados, descia as escadas de uma cabana.

— São tantos… — Seus olhos percorriam a multidão.

— O que esperava? São idiotas de todas as partes do reino — Raygan cruzou os braços, assumindo uma postura indiferente, mas analisando tudo; feições, posturas e qualquer mísero detalhe.

Paredes de pedras envolvidas em uma pequena vegetação e vinhas de galhos ressecados. Eram de tamanho inferior ao do palácio, porém guardadas por oficiais do império. Havia mais de dez chalés à vista, semelhante a um acampamento preparado exclusivamente para recebê-los; os garotos que mudariam o destino da guerra iminente.

Daemis, ao contrário de Raygan, que buscava estudá-los como cobaias de experimentos nada convencionais, procurava por rostos familiares de Lorist, quando, de repente, viu um grupo que se destacou com facilidade. Eles eram simpáticos, como líderes que formavam seu pequeno exército sorrateiramente. E, entre eles, um jovem chamou sua atenção.

A face era de um rapaz alto, de pele alva e cabelos castanhos, que estava sentado com seus amigos. Daemis não pôde evitar olhá-lo mais de uma vez, falhando em disfarçar.

— Thomaz…? — falou, sem perceber que sua voz era alta o suficiente para Raygan ouvir.

Sob o céu, pontos luminosos começaram a surgir. Era um azul profundo, escuro e estrelado. O príncipe conferiu a feição de Daemis de relance.  As covinhas visíveis durante as risadas, piadas, e o sorriso que parecia prometer uma amizade sincera, desapareceu, como se nunca houvesse existido.

Que seja…

Ele não se importava.

Agora, seu interesse estava totalmente voltado ao velho à sua frente. O general parou diante dos rapazes com um sorriso que mal se mostrava, um leve curvar de lábios que expressava satisfação.

— Bem-vindos. Para os que não me conhecem, sou o general imperial de Olpheia. Senhor Halcan — começou, o tom áspero, espelhando a brisa que agitava as chamas da fogueira. — Ao longo dos noventa dias, haverá tempo para responder todas as dúvidas que surgirem durante o treinamento. — Sua voz alcançava os últimos garotos do enorme círculo.

Um dos rapazes, mais jovem e de olhos inquietos, ergueu a mão.

— Sim? — Fez um aceno de cabeça.

— Nós seremos obrigados a lutar? Eu… eu não me voluntariei para estar aqui — expôs, seus olhos buscando apoio entre os demais.

Halcan notou o temor e a incerteza. Era inevitável — a decisão já havia sido tomada. O império precisava deles, mais do que qualquer um ali pudesse entender. Mas… — ele refletiu, quantos tinham uma noção do abismo em que estavam prestes a mergulhar?

— Imaginei que muitos aqui foram enviados por suas famílias. Mas pensem como uma oportunidade. Os dias que passarão aqui os ensinarão a se defender. Talvez estejam com medo, ansiosos para saber se serão convocados para a guerra. — Seus olhos percorreram cada rosto. — Contudo, antes de qualquer decisão, serão testados. Todos vocês possuem um talento, uma habilidade única, e é nosso trabalho descobri-las e aperfeiçoá-las.

Porém, uma voz distante interveio:

— Isso é alguma brincadeira? — desafiou um rapaz, emergindo dentre os garotos. Daemis reconheceu; era Thomaz, tomando a liderança entre tanta dúvida e desesperança. — Todos nós sabemos que leva anos para aperfeiçoar essas “habilidades”. Em vez de fortalecer o exército, está enviando crianças para lutar no seu lugar?

No mesmo instante, um sussurro de inquietação rondou o lugar. Jovens de diferentes idades foram enviados para treinar, quando muitos deles não sabiam por qual razão lutariam. Contudo, o falatório foi logo interrompido por uma voz grave. Daemis reconheceu o tom indiferente, antes mesmo de ver o homem que se adiantava ao lado de Halcan.

— Bobagem! — disse um homem, o segundo no comando. Era um soldado de mais de trinta anos, de estatura intimidante e expressão severa, que se adiantou. — Imagine que você não soubesse nadar e caísse em um rio profundo. O que você faria?

Thomaz, assim como os demais, encarou os fios loiros e o rosto ausente de barba. Então, firme em sua fala, respondeu:

— Eu chamaria ajuda ou tentaria me agarrar em algo.

— E se estivesse sozinho? Sem galhos, sem ajuda! — Oracis inclinou-se levemente, a mão pousando no pescoço. — Anos atrás, você teve a chance de aprender a nadar, mas está se afogando. A vida nos oferece oportunidades, resta a você aceitá-las ou não.

Um silêncio gélido se instaurou, quebrado apenas pelo estalar da madeira na fogueira.

— Quem é você? — perguntou o jovem, a voz mais baixa, quase receosa.

— Oracis, segundo comandante do exército imperial e braço direito de Halcan — respondeu, apoiando a mão sobre o punho da espada. — Estarei ao lado dele para discipliná-los. Entre os jovens aqui presentes, apenas doze serão escolhidos para falar diretamente com o imperador. Aqueles que se destacarem, trarão glória às suas famílias. A recompensa é generosa, então sugiro que se esforce.

— Que recompensa? — Um perguntou.

— Ouro, posição… — Ele deu de ombros. — Será conhecido pela alta sociedade como um dos doze garotos corajosos mais bem-treinados à capital. A nobreza aprecia o poder que tem sobre os outros, então, vocês seriam o centro das atenções por um bom tempo.

Uma avalanche de cochichos irrompeu no grupo.

— Doze? Por que apenas doze? — As perguntas fervilhavam, mal contidas em meio ao crescente tumulto.

— E aqueles que não forem escolhidos? — questionou outro rapaz.

Oracis permaneceu impassível.

— Vocês terão outra oportunidade para se destacarem. O imperador concordou em continuar financiando os treinamentos até que a guerra contra Balmont se resolva.

— E como ele pretende pagar por isso? — retorquiu Thomaz, desdenhoso, a testa franzida. — O imperador esqueceu que guerras são financiadas com o dinheiro que saem dos bolsos de nossos pais? Por que estamos aqui, senhores? — inquiriu, os olhos mais afiados para eles.

A pergunta era óbvia: por que as crianças irão lutar?

Oracis relanceou brevemente para Halcan, que permanecia calmo. Garotos como ele sempre representavam um problema, e ambos sabiam disso. Eram uma ameaça para jovens impressionáveis que, num piscar de olhos, se veriam à mercê de qualquer ordem, prontos a desafiar seus superiores sem hesitação.

— Para proteger suas famílias — declarou Halcan, ressoando sobre o campo. Seus olhos estavam frios, como o vento que soprava distante. — Há dez anos, Ariuch foi invadida por bárbaros que derramaram sangue inocente. Homens foram mortos como gado; mulheres, violadas na presença de seus filhos; e crianças, como vocês, foram arrancadas dos braços de seus pais. — Parou, fixo no olhar temeroso dos garotos. — Considerem este treinamento um teste para revelar suas maiores virtudes e expor suas fraquezas. Lembrem-se das palavras de Oracis e se esforcem para provar que são o orgulho de suas casas. E, quando outro ataque vier — e ele virá —, estejam prontos.

Um silêncio pesado caiu sobre o grupo, mas foi Oracis quem quebrou a quietude, avançando alguns passos.

— A propósito, nosso imperador está forjando uma aliança — acrescentou. — Se tudo correr como planejado, Olpheia terá os recursos necessários para treiná-los, e quando enfrentarmos Balmont novamente, seremos vitoriosos. Mas para que isso aconteça, só é preciso fazer uma coisa: obedecer.

O falatório se espalhou como fogo em palha seca, vozes sussurrando e questionando entre si.

— Que tipo de aliança? — perguntou um jovem.

Halcan lançou um olhar penetrante para Raygan, cuja postura rígida era impossível de ignorar.

— A princesa irá se casar? — alguém inquiriu, provocando um alvoroço.

— A princesa?! — exclamou outro, com descrença.

As conversas explodiram, refletindo uma avalanche desencadeada. Thayrin, a joia do império, tornou-se o centro das atenções. Sua beleza e reputação como o mais precioso tesouro de Olpheia, era o tema das bocas que fofocavam entre si.

Daemis, que estava ao lado de Raygan, percebeu a mudança em seu semblante. O rosto dele, antes indescritível, agora estava tenso, o maxilar travado e os punhos cerrados.

— Aygnar, você está bem?

Todavia, Raygan não respondeu. Seus olhos estavam paralisados no solo branco, o frio penetrando sua pele, mas a ardência no peito o consumia. O nome de sua irmã fluía entre as línguas sujas, palavras mesquinhas e imundas, sem qualquer reverência. Comentários sobre sua aparência angelical enchiam o ambiente, no entanto, havia os que destilavam ódio pela casa imperial. Ele já ouvira muito disso durante seu tempo no convento. Ser desprezado, insultado, cuspido pelos inimigos da coroa era algo que ele aprendeu a suportar. Contudo, um sussurro atravessou o ar gélido, tão vil quanto as criaturas que o proferiram.

— Puta mimada.

A palavra queimou em seus ouvidos.

Seus batimentos aceleraram, e um calor descontrolado subiu de seu peito até o rosto, como fogo engolindo a lenha. Seus punhos tremiam, o sangue fervendo em suas veias. Ele sentia o corpo preste a perder o controle, a raiva transbordando.


Capítulo novo toda semana! 

Daemis, ou Dae, como prefere ser chamado, pensativo após despertar de um bom cochilo.

Ilustração: Rhainah



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