Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 29: Reis são apenas reis

ARIUCH, CAPITAL DE OLPHEIA


Acompanhado por Mardô que o aguardava na saída da sala, Elard caminhou, o som ecoando pelo piso de madeira polida que brilhava sob seus pés. As paredes do corredor estavam adornadas com retratos de seus antepassados, emoldurados em ouro, e lamparinas apagadas pendiam das colunas, aguardando o cair da noite para iluminar o espaço. Apesar de toda a grandiosidade ao redor e da riqueza, que até os mais nobres do império não possuíam, a mente de Elard estava perdida em pensamentos.

Um, dois e três passos levavam-no mais fundo nas memórias de campo vasto, sem fim à vista, onde as árvores se estendiam até o horizonte, circundando o palácio como um escudo natural. O sorriso de Leion, radiante e inocente, brilhou em sua mente. O jovem príncipe, de cabelos esvoaçantes, corria livremente pelo gramado verdejante, a alegria em seu rosto tão leve quanto o vento que o envolvia. Era um espírito livre, sem correntes da dor ou tristeza que o atormentavam.

Por um minuto, Elard permitiu-se reviver aquela lembrança. Viu os cavalos galopando, suas crinas à brisa suave, enquanto as risadas de Leion pareciam alcançar o céu, vivas e cristalinas em sua cabeça, como uma música esquecida, mas nunca realmente perdida. O próprio tempo parecia ter parado, aquecendo-o o coração.

— Pai! — A voz de Leion chegou aos seus ouvidos. — Veja, Pairon está correndo! Haha! Ele está correndo!

O corcel jovem, esguio e vibrante, corria com toda a força de sua juventude, os cascos tocando o chão com leveza, liberto de arreios ou sela. Leion, com seu sorriso que se estendia de orelha a orelha, correu ao redor do cavalo, as botas marcando o verde vivo da grama, enquanto ambos dançavam em uma coreografia de pura liberdade. Elard se deixou imergir mais fundo na lembrança, esquecendo por alguns segundos o peso de sua coroa e do reino.

Então, de surpresa, outra memória o invadiu. Ele estava novamente naquele mesmo corredor, mas desta vez acompanhado de um garoto. Leion, mais jovem, carregava livros em seus braços finos, que por pouco, escapavam de suas mãos.

— O que fará com tantos livros? —  Sua curiosidade estava presa nos objetos de capa dura.

— Minha irmã — iniciou Leion, com um sorriso travesso —, ela não se saiu bem na aula de etiqueta da madame Charlotte. Ela acredita que é um desastre ao equilibrar livros na cabeça. — Com uma graça inesperada, Leion colocou uma das obras literárias sobre sua própria cabeça, em uma tentativa de replicar a dificuldade da irmã. — Não é tão difícil se você segurar enquanto anda.

E sem perceber, um sorriso suavizou-se no rosto de Elard.

— Vou mostrar que ela consegue. — Leion sorriu novamente, mais largo desta vez. — Se ela acreditar que é capaz, fará coisas das quais o senhor terá orgulho, não é, Henryk? — Olhou para o amigo que o seguia logo atrás. Ele concordou em um aceno de cabeça, segurando um buquê de flores. Rosas-vermelhas, de aroma agradável às narinas do menino de bochechas pintadas pelas pequenas sardas.

Uma dor aguda rasgou o peito de Elard, tão profunda que parecia devorar sua alma de dentro para fora. Era apenas uma lembrança, ele sabia, mas isso não a tornava menos real. O peso da saudade, misturado ao sentimento de impotência, ameaçava afogá-lo.

Alucinações… Estão voltando. — Elard piscou. Respirar tornou-se uma tarefa árdua, e o ar ao redor parecia espesso e opressivo. Ainda assim, ele forçou-se a voltar ao presente, antes que a lembrança o consumisse por completo.

Ao passar pelas criadas, que varriam e limpavam as paredes com diligência, todas se inclinaram em reverência à sua presença. Não havia outro som senão as solas de seus sapatos.

— Mardô — disse, em um timbre que soou grave, autoritário.

— Sim, Majestade? — respondeu o velho, atento.

— Halcan já chegou a Kanaris?

— A viagem deveria durar dois dias. Creio que ele já esteja próximo do destino.

— Bom trabalho — disse, sua voz voltando ao tom distante, enquanto seus pés o levavam até a imponente bifurcação da escadaria principal.

No momento em que descia, sua mente ainda estava dividida entre o presente e o passado, entre responsabilidades de um monarca e lembranças de um pai. O mordomo observou as costas de seu soberano, percebendo os ombros cansados e os poucos fios grisalhos começavam a se destacar, quase imperceptíveis, entre os cachos que moldavam seu pescoço. Mardô conhecia seu lugar, sempre a três passos de distância e à disposição, mas talvez fosse hora de mostrar que, apesar de sua idade avançada, ainda possuía a sabedoria e a força que o cargo exigia.

— Majestade — falou com uma reverência sutil. — Quando foi a última vez que o senhor teve uma boa noite de sono?

Elard não respondeu de imediato. Mardô o entendia melhor do que a maioria e, por isso, não se apressou.

— Estou bem. — A resposta imitava uma falsa confiança para convencê-lo de que não precisava se preocupar. — Só preciso ler uma dúzia de relatórios e resolver as negociações com Leswen.

— O senhor Ahoneu já está tratando de Leswen — disse Mardô, mantendo a distância habitual, mas sem recuar diante da teimosia de Elard. — O senhor precisa descansar.

— Estou bem, Mardô — insistiu Elard, arfando de leve enquanto sentia uma dor latejante nas costas. — Ugh… — Ele sentiu uma fisgada no músculo. — Eu deveria voltar a treinar. — Tocou no próprio ombro, seu braço percorriendo um movimento circular.

— Devo retomar a sessão de treinos ao seu horário pessoal?

— Uma hora de esgrima?

— Precisamente.

— Faça isso.

— Também devo adicionar uma rotina alimentar que não inclua vinho?

Elard parou bruscamente, seu olhar voltando-se de relance para o velho, arqueando uma sobrancelha.

— Está brincando com seu rei?

Mardô, inicialmente, deu de ombros, contudo, não conseguiu esconder o sorriso.

— É uma sugestão.

— Não toque no meu vinho — ordenou, seguindo o trajeto. — E você seria um péssimo conselheiro.

Mantendo um sorrisinho astuto, Mardô sabia, no fundo, que tal afirmação não passava de uma farsa. No entanto, ele jamais teve a intenção de ameaçar a posição de Ahoneu.

— Como desejar, Majestade.

Ele percebeu que o menino que costumava percorrer aqueles mesmos corredores agora havia, de fato, crescido.

Então, a passos constantes, sempre ao mesmo ritmo, Elard andou em direção à área externa do palácio. O ar fresco o envolvia, mas o aroma das rosas parecia se dissipar em torno de uma lembrança quase inalcançável. Seus olhos transitaram pelo jardim, procurando alguém que, naquela ocasião, negligenciava as aulas de etiqueta.

Pelo chão de pedras, ele avistou a ponte erguida sobre o pequeno lago que rodeava o coreto. Lá estava ela, sua filha. Desta vez, seus cabelos da cor de um rubi profundo estavam presos em um penteado simples, mas elegante, que mantinham os longos fios caindo em ondas até a cintura. O vestido que trajava era de um turquesa vibrante, destacando o azul brilhante de seus olhos, algo que despertou a curiosidade do monarca — não era o habitual rosa que ela tanto preferia.

— Thayrin — a voz rompeu o silêncio do jardim, ressoando entre as árvores e as sombras imóveis à beira do lago.

Ela girou rapidamente ao ouvir o chamado, surpreendida, deixando cair a caneta de pena que descansava nos dedos finos. Seus olhos se estreitaram ligeiramente ao ver a figura imponente que se aproximava.

— Pai?!

O olhar de Elard recaiu sobre a pequena mesa ao lado dela, onde um tinteiro descansava com uma folha de papel amarelado. Uma carta, para um pretendente? — Ele franziu as sobrancelhas.

— Para quem está escrevendo?

— Para meu irmão — respondeu Thayrin, rápida e distante. O ressentimento que pairava sobre ela ainda não havia desaparecido. — Prometi que escreveria, mas talvez ele não goste de receber tantas cartas em tão pouco tempo. — Ela lançou um olhar intrigado para ele. — O que faz aqui?

— Acabei de sair de uma reunião. — Elard deu um passo à frente, seus dedos tocando gentilmente na trança nos cabelos de Thayrin, como se quisesse romper a barreira invisível entre eles. — Sua mãe sabe que está evitando as aulas com a madame Louise?

— Aquela velha está mais preocupada em educar as meninas mais novas. Para ser honesta, prefiro assim. — Thayrin afastou-se de seu toque, o corpo enrijecido.

— Imagino que sim — disse ele, percebendo o humor sombrio da filha. Não valia a pena pressioná-la. — Termine a carta e vá para a sala de piano.

Thayrin entendeu como uma ordem. Observando-o em silêncio, ela notou o semblante cansado e, de algum modo, marcado por uma sombra de tristeza.

Quando foi a última vez que ele pensou em nós, irmão?  — ponderou Thayrin. Ele já não era o homem que antes ria com os filhos à beira do lago. Agora, era o soberano, preso ao trono. E fitando a água que perdera seu brilho, cujo sol escondeu-se entre as nuvens, ela apertou a carta. — Alguma vez, ele realmente se importou conosco?

Elard, portanto, de volta pelas trilhas sinuosas do jardim, conferiu a segurança do lugar cercado por guardas atentos. Ele desviou o olhar do coreto e de Thayrin, fixando-se na estufa de vidro mais adiante, onde as flores que sua filha cuidava com tanto carinho floresciam. Porém, além das plantas, ele ouviu risadas. Um grupo de mulheres da nobreza estava reunido, como faziam semanalmente. Elas, ao contrário de Rosalina, raramente se ocupavam com as questões do reino, deixando tais fardos a seus maridos. Em vez disso, deliciaram-se com chá, servidas por servos que ofereciam bandejas de aperitivos e protegidas pelo calor de seus xales de lã de mais puro requinte.

Entre todas as sete mulheres presentes, uma em especial, capturou sua atenção. Quando seus olhares se encontraram, o mundo ao redor se dissolveu. As tonalidades intensas dos trajes caros das outras damas desvaneceram diante da simplicidade arrebatadora dela. Não importava quantos anos houvessem passado, ou como o tempo havia deixado marcas em seu rosto; para Elard, a rainha continuava sendo a mulher de sua juventude que, em segredo, longe dos olhares tacirturnos da corte, carregava Leion nos braços como fosse seu próprio filho. Ela, que tinha o peso da corte em seus ombros finos e delicados, sorria para ele, mesmo que apenas em seus sonhos.

Ele ansiava caminhar até ela, mostrar a todas as víboras que a cercavam, que ela era a única mulher diante de quem ele se ajoelharia; a única capaz de roubar-lhe o fôlego, desafiar suas vontades e levá-lo à beira da loucura se ousasse deixá-lo por mais um dia. Mas, imóvel, ele refletia. Aquele dia parecia digno de preencher as páginas amareladas de um antigo livro que contasse a ascensão da dinastia Ehnov e como, em um instante, tudo havia ruído.

— Diga-me — principiou, sentindo a presença de Mardô logo atrás. —, se meu pai não tivesse buscado prazer em outras camas… teria tudo isso realmente acontecido?

Mardô permaneceu em silêncio, a resposta pendendo no ar como uma espada suspensa. O velho servo, de cabelos escuros que o tempo poupara, observou o imperador. Ele havia visto o menino tímido transformar-se em homem, tornar-se pai e, enfim, rei. Mas para o mordomo, aquele menino ainda existia, escondido debaixo de tantas dúvidas.

— Não, Majestade — respondeu, aproximando-se com cuidado, agora ao lado do soberano. — O senhor era muito jovem para compreender.

Elard cerrou os punhos. — Todos os bastardos foram caçados naquele dia… E, ainda assim, foi seu próprio filho, sangue do meu sangue, que lhe causou mais desgosto.

Mardô, apesar de entender a razão de tanto ressentimento, conservou a expressão impassível, dizendo:

— Rayron o amava. Ele sacrificou muito para garantir que você herdasse o trono. O fato de você ter lutado pela legitimidade de Leion não diminuiu o que ele sentia por você.

Elard estreitou os olhos, a dor misturada à ira brotando em seu semblante. — E você acha que eu me orgulho disso? Eu não permitirei que destruam minha família. Essa guerra…, irei acabar com tudo. — Ele pausou, os olhos faiscando. — Mas preciso saber que, se algo acontecer comigo, eles estarão seguros.

Mardô endireitou-se, sua voz tranquila. — O senhor tem minha palavra.

Guerras nunca poupam inocentes; nem mulheres, nem crianças. Os fantasmas do passado assombravam sua mente — lembranças de traições e assassinatos que destruíram famílias inteiras.

— Meu pai falhou com todos nós — sussurrou Elard, mais para si do que para Mardô. — E eu falhei com eles. — Ele desviou o olhar para a vastidão do jardim, e em passos lentos, retornou a caminhada.

O velho mordomo lembrou-se vividamente do pesadelo que era aquele ataque. O homem à sua frente era o mesmo que havia se trancado em seu quarto por meses, afundado na tristeza e no medo de falhar como rei, sozinho, afundando na escuridão do quarto.

Por um segundo, Mardô temeu a lâmina que pendia na cintura de Elard.

Ele franziu a testa, fechando os olhos por um breve instante, enquanto seus punhos se apertavam firmemente atrás das costas. Tudo estava onde deveria estar, no passado. Mardô respirou fundo, para acalmar a tremulação sutil que tomava suas mãos, buscando manter a compostura.

Reis, ao longo da história, haviam derramado o sangue de herdeiros para garantir terras, enquanto espiões espreitavam em cada esquina e beco da capital. No entanto, para Mardô, Elard não era um monarca em busca de poder, mas um pai, um marido… um homem disposto a sacrificar tudo por sua família.


Capítulo novo toda semana!



Comentários