Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 27: Um Idiota Esperto

KANARIS


O galope dos cavalos ecoava pela trilha coberta por uma fina camada de neve, ao som cadenciado das rodas da carruagem. A estrada era uma linha reta entre árvores congeladas, cujos galhos menos resistentes estavam despidos, estendendo-se como braços esqueléticos em direção ao céu pálido.
A carruagem avançava, cada vez mais próxima do campo de treinamento, onde jovens, na mesma idade de Raygan e Daemis, se preparavam para se tornarem grandes guerreiros. Halcan, sentado ao lado do gentil recruta, lançava olhares de canto para os dois, esperando que ao menos um deles se mostrasse digno dessa expectativa.

— Daemis, — chamou o general, sua voz que mesclava seriedade e curiosidade. — Não exigirei que me expliques como você acabou em Giorgya, mas diga-me, houve algum tumulto na cidade?

O jovem, hesitante, dirigiu um olhar rápido para Raygan. Este, indiferente como sempre, mantinha-se alheio ao diálogo, sem demonstrar interesse. Com um breve receio, respondeu:

— Um homem de pele escura matou um nobre. Foi o suficiente para desencadear uma grande confusão. Enquanto os escravos fugiam, eu estava com alguns amigos, mas… na correria, eu… acabei me perdendo deles — vacilou. — Foi meu erro, senhor. Tentei encontrá-los, mas…

— Procuraste por eles? — interrompeu Halcan, firme, mas sem pressa.

— Não… — Desviou o olhar. — Fiquei com medo de que me associassem ao que aconteceu; por isso, eu me escondi. Fui um covarde.

Raygan, que até então se mantinha calado, irrompeu, com uma ponta de sarcasmo afiada:

— Se o que você diz é verdade, como explica isso? — Ele indicou o pequeno hematoma, apontando para seu próprio rosto com um sorriso irônico num gesto de reprovação.

Daemis tocou o ferimento, pensativo.

— Eu… eu não sei. Tenho certeza de que me escondi. Estava em um beco, mas de repente alguém me puxou… e eu não me lembro de mais nada, só de estar na cabana do senhor Maycon.

Raygan bufou, sem disfarçar o desdém.

— É possível que alguém seja tão inútil a ponto de não se lembrar de algo assim?

Aygnar — disse Halcan, repreensivo.

— Não, ele está certo. — Daemis inclinou a cabeça, conformado. — Deveria lembrar, porém, eu simplesmente não consigo. Só me recordo de uma voz, de um homem. Ele parecia furioso. E a dor na parte de trás da minha cabeça… continua aqui, mas não é insuportável.

Halcan franziu o cenho, afastando com cuidado os cachos de Daemis para inspecionar a área.

— Um golpe na cabeça, sem dúvida. — Havia um pequeno machucado rubro, contudo, não era sangue, sendo impossível discernir o que causou o ferimento. — Perder a memória em uma situação assim é comum.

Descontente com a situação, Raygan desviou o olhar para a janela, impaciente.

— Então, sua presença deve ter afastado os clientes da estalagem — falou, apático.

Halcan observou Raygan por um momento, ponderando suas palavras. Ele sabia que, apesar da apatia habitual, não era costume do jovem príncipe falar sem que houvesse algum fundo de verdade por trás de suas observações.

Então, Raygan continuou, sem olhar para eles:

— Se um escravo de pele escura matou um nobre, era natural que o dono da estalagem desconfiasse de você. Ele provavelmente achou que você era um fugitivo como os outros, mas mudou de ideia ao perceber que estava errado.

Daemis arregalou os olhos, como se uma nova memória tivesse acabado de emergir das sombras.

— A marca! — exclamou, quase eufórico. — Todos os escravos têm a marca de seus senhorios gravadas na pele, independentemente da cor.

— Está aí a resposta. — Raygan assentiu lentamente. — Talvez o velho da cabana tenha ido à cidade confirmar suas suspeitas.

— Por que achas que Maycon faria isso? — Halcan inclinou-se para frente, intrigado com a dedução de Raygan. Apesar de ter sido criado em um convento, o jovem príncipe parecia enxergar além das evidências óbvias. O general tinha certeza de que as freiras não foram treinadas para ensinar as meninas a ter tal perspicácia.

Mas Raygan deu de ombros, o rosto inexpressivo.

— É apenas uma teoria. Seja como for, não é meu problema.

Halcan permaneceu em silêncio por um momento, observando os dois jovens. Raygan, sempre tão afiado e difícil de ler, e Daemis, agora quase recuperado. Ele se sentia, de alguma forma, aliviado.

— Bem, está resolvido. — Halcan pousou a mão sobre a cabeça de Daemis, bagunçando levemente seus cachos. — Não precisas carregar essa culpa. Fizeste o que era necessário para te proteger. — Um pequeno sorriso se desenhou em seu rosto, entre os fios cinza de sua barba rala.

Por outro lado, o príncipe, com a coluna ereta e a paciência claramente esgotada, ajustou-se no assento com uma expressão de desagrado.

— Quanto tempo mais até chegarmos a esse maldito lugar? Parece que estamos nesta viagem há séculos.

Halcan manteve o sorriso, compreendendo a impaciência do rapaz.

― O que está dizendo? Olhe para fora!

Com uma pitada de hesitação, Raygan esticou o pescoço além da abertura da carruagem. O ar gelado atingiu-lhe o rosto, o cheiro de folhagem molhada e pinho misturando-se ao frio congelante. À medida que observava, as árvores escuras, boa parte delas retorcidas como garras, espreitavam dos dois lados da estrada. A neve, outrora suave, tornava-se espessa quanto mais se aproximava de um campo vasto, delimitado por um muro de pedras dispostas com precisão militar. Ali, jovens suavam sob o peso das pás, o ar condensado saindo de suas bocas enquanto limpavam o caminho para o campo de treinamento de Kanaris — um local onde apenas os fortes sobrevivem.

Os portões de madeira, sombrios como os pinheiros circundantes, erguiam-se à frente. Ao adentrarem o espaço, os olhos de Raygan brilharam, porém, ele batalhou para manter a expressão séria, ao tempo que os rapazes, maltrapilhos, mas decididos, carregavam sacos pesados, vigiados por guardas de olhares duros, as espadas descansando em suas cinturas. Ao redor, uma pequena comunidade se movia com pressa nas tarefas. Além de guerreiros, residiam camponeses, criados responsáveis por cuidar do lugar. Havia pequenas construções, chalés rústicos cercados por árvores nuas. Uma fogueira crepitante com a carcaça de um porco girava lentamente sobre o fogo. O som de cavalos agitados se misturava ao riso estridente de meninos brincando.

Quando a carruagem finalmente parou diante de uma cabana maior, Halcan foi o primeiro a sair. Ele abriu a porta, ajudando Daemis, mas antes que Raygan pudesse descer em seguida, o velho guerreiro sussurrou-lhe, em alerta:

― Cubra suas roupas com o manto. Lupin irá escoltá-lo até um dos chalés.

― Que diferença faz? ― murmurou Raygan, a voz tingida de tédio. ― Eles nem sabem quem eu sou.

― Jovens de diversas cidades estão reunidos aqui. Alguns são filhos de nobres. Para sua segurança, é melhor não se arriscar. Seu pai é conhecido, e não quero que suspeitem de sua semelhança com ele. Quando a noite cair e todos estiverem dormindo, venha à cabana perto do poço. Seja discreto.

Raygan balançou a cabeça, impaciente, mas seguiu as ordens, cobrindo-se com o manto. Assim, descendo da carruagem, ele e Daemis acompanharam Lupin através do caminho até as humildes casas de campo, que pareciam sufocadas pela vegetação em volta. Vinhas, arbustos e árvores torcidas pressionavam-se contra as paredes de pedra, como se estivessem prestes a engoli-las.

― Cuidado aí! ― Lupin ralhou quando um grupo de garotos quase trombou com eles, rindo enquanto corriam. ― Essas crianças… ― Suspirou, sentindo o peso da responsabilidade de contê-los cair sobre seus ombros.

Daemis olhou ao derredor, percebendo que, ao contrário do que imaginava, ele não era o único menino de cor ali. Uma leve onda de alívio o atingiu, mas logo foi interrompida pela voz cortante de Raygan.

― Vai ficar parado aí o dia todo? Está no caminho.

― Ah… desculpe. ― Daemis ajustou sua bolsa, tentando esconder o nervosismo. ― Você está ansioso para começar a treinar?

― Quem ficaria ansioso para apanhar? ― respondeu, desdenhoso.

Daemis riu suavemente, surpreso com a resposta.

― Bem, todos estão aqui para treinar. Não sou muito bom com espadas, mas… se quiser, posso o ensinar algumas técnicas de defesa pessoal.

Apesar da oferta gentil, Raygan lançou-lhe um olhar de desprezo.

― Um recruta que esteve ao lado do general imperial por anos e não sabe manejar uma espada? Patético!

Daemis vacilou, mas manteve a compostura.

― O senhor Halcan nunca me treinou diretamente. Ele apenas monitorava à distância. ― Ele fez uma viagem pelas memórias de quando era criança e não conseguia lidar com os cortes superficiais que recebia nos treinos. ― Sempre me tratou como um estranho em todas as ocasiões em que nos encontrávamos em público, o que tornava natural vê-lo sempre ao meu lado.

Raygan parou, refletindo sobre a confissão, antes de soltar um suspiro irritado.

― Seria problemático se alguém descobrisse que ele trata um estrangeiro do território inimigo como um filho.

As palavras de Raygan, ainda que ditas com desinteresse, atingiram o coração de Daemis. Era assim que o velho o enxergava, como um de seu sangue?

Eu sou digno de ser chamado de filho? ― pensou Daemis, observando o manto extenso sobre os ombros pequenos do garoto mais novo, de corpo magro e aparentemente indefeso.

― Você deveria agradecer por ainda estar vivo ― continuou, sem olhar para trás. ― Olpheia jamais perdoará Jighal pela traição, e qualquer um que mostrar solidariedade será punido.

― Que tipo de punição? ― perguntou, uma sensação incômoda agitando seu estômago.

Raygan não respondeu de imediato. Não era um assunto que ele dominava, como também, pouco lhe importava. Todos deveriam obedecer, essa era a lei.

― Mesmo se eu soubesse, não diria a você.

― Por quê? ― insistiu Daemis, confuso.

― Você faz muitas perguntas! Isso é irritantemente familiar ― bufou, subindo os três degraus de madeira do chalé. ― Chega de conversa!

― Desculpe  ― sussurrou, seus olhos vagando brevemente para o campo antes de retornarem a Aygnar.

Daemis se questionava sobre as ações de Raygan, a maneira como pensava e até o fato de ele conhecer suas origens, um segredo que até então havia sido guardado apenas por Halcan. Apesar de tudo, sua empolgação para ser amigo de Raygan era maior do que nunca, enquanto seu sorriso e covinhas surgiam naturalmente.

O chalé era simples, mas aconchegante. O chão de madeira rangia sob suas botas, e a lareira já crepitava, enchendo o ambiente com um calor agradável. Lupin mostrou-lhes o quarto, onde dois beliches estavam dispostos ao lado de uma estante modesta.

― Escolham suas camas ― disse Lupin, um sorriso cansado no rosto, repousando a mala de Raygan sobre um dos colchões. ― Se precisarem de mim, estarei a guiar um grupo de rapazes para o chalé ao lado. Farei o possível para não colocar garotos irritantes para dormirem com vocês. E mais uma coisa, lembrem-se que depois do jantar, o senhor Halcan vai querer falar com todos.

Raygan revirou os olhos.

― E por que ele não faz isso agora?

― Ainda há mais jovens para chegar ― respondeu Lupin. ― Ele quer que todos se sintam à vontade antes de começar o treinamento.

Raygan lançou um olhar cínico por todo o quarto, o dedo varrendo a poeira acumulada na estante.

― Então é assim que o exército imperial prepara seus guerreiros: com conforto ― ironizou.

— Disso eu não sei, mas imagino que seja melhor aproveitarem o dia de folga para descansar — disse Lupin, olhando de soslaio para Daemis, cuja expressão estava envolta em um desconforto palpável.

— Quanto aos treinos… — Daemis estreitou os olhos ao pousar sobre o cocheiro. — Você acha que iremos nos machucar muito?

— Está com medo? — provocou Raygan, o canto de seus lábios se erguendo em um sorriso malicioso.

Daemis recuou.

— Eu… não gosto do cheiro de sangue.

Raygan bufou, o desprezo evidente. — Um recruta com medo de sangue, que piada!

— Ah, não será assim tão extremo. Senhor Halcan esclarecerá tudo quando chegar a hora. Enquanto isso, aproveitem a hospedagem — falou Lupin, antes de fechar a porta, deixando o quarto em um silêncio sufocante.

Daemis analisou os quatro cantos do cômodo. O quarto, pequeno e apertado, exalava uma estranha sensação de segurança. Ele deslizou a mão pelo travesseiro antes de subir a escada lateral que levava à cama de cima. Deitou-se, enquanto observava Raygan vasculhar sua mala, como se procurasse um tesouro perdido entre os trapos.

— É confortável — expôs Daemis, os olhos se fixando no colega de quarto. — Aygnar.

Ao som do nome, Raygan enrijeceu. Ele franziu o cenho, irritado. O nome soava como o latido áspero de um cão sarnento, ao qual Lupin se referiu.

— O quê? — grunhiu, os olhos fixos nas roupas. 

— Por que cortou o cabelo? — A pergunta fluiu leve, mas com curiosidade.

— Não é da sua conta.

O jovem permaneceu imperturbável. A grosseria de Aygnar não conseguia afetá-lo, por alguma razão que ele ainda estava buscando entender. Ainda assim, ele o encarou, os olhos de esmeralda brilhando.

— Você não é de falar muito, não é?

O silêncio foi sua única resposta.

— Hm… — Daemis suspirou, os braços se dobrando atrás da cabeça enquanto encarava o teto de madeira repleto de teias e sujeira. — Meu nome é Daemis Langest. Tenho quatorze anos, mas todo mundo acha que sou mais velho. Eu não sei minha altura, mas o senhor Halcan disse que serei mais alto que ele quando adulto.

Raygan parou, o movimento breve. Ele largou as roupas e segurou um livro, o couro envelhecido e a lombada gasta após tantos anos de manuseio.

— E o que você quer que eu faça com essa informação? — disse Raygan, a voz desinteressada e sem se virar.

— Nada — respondeu Daemis, um sorriso suave iluminando seu rosto. — Achei que, se eu falasse sobre mim, você se sentiria mais à vontade para conversar. Sou um dos poucos recrutas que vieram diretamente do acampamento de Lorist.

Raygan não respondeu, mas sua mente vagou por Daemis. Ele estava acostumado com batalhas, com o cheiro de sangue e, embora isso fosse o bastante para traumatizar qualquer garoto, ele, de alguma forma desagradável, conseguia sorrir.

— E você, é de Olpheia mesmo? — insistiu Daemis.

Raygan tocou a capa dura do livro, seus dedos traçando as marcas que o tempo havia deixado. Dizer que cresceu em um convento não parecia uma verdade apropriada.

— Sim. Nasci em Ariuch. 

— Ariuch? — A excitação brotou nos olhos dele. — Você é da capital?

Raygan se virou lentamente, seus olhos escuros e sombrios encontrando os de Daemis.

— Eu não sou quem você pensa. — Soava como um aviso.

E o recruta, percebendo a linha delicada que pisava, aquietou-se. Seus olhos, no entanto, encontraram os detalhes em dourado no título do livro que Raygan segurava.

— Você gosta de ler!

— Não, gosto de devorar livros. Não está vendo? — O sarcasmo pingou em suas palavras.

Daemis inclinou a cabeça com um sorriso atrevido.

— Deve ter um gosto horrível.

Está brincando comigo? — pensou Raygan, a irritação surgindo. — pensou Raygan, a irritação surgindo.

Aquela conversa parecia inútil, mas de repente, a imagem de Thayrin inundou sua mente — seu rosto gentil, suas respostas afetuosas que, por vezes, beiravam a tolice.

— Gosto de livros de fantasia mitológica — disse Raygan, virando-se de costas para esconder sua expressão. — Esse livro foi um presente.

— Sério? De quem? — perguntou, agora sentado na cama.

Raygan hesitou, os dedos deslizando pelo couro rachado.

— Era do meu irmão.

Por alguns segundos, Daemis tentou imaginar as possíveis reações — se era uma memória feliz, triste ou nostálgica. De todo o modo,  nenhuma delas parecia ser a verdadeira.

— É muito bom ter algo a que se apegar. — Um sorriso melancólico brotou em seus lábios. — Meu pai fez esse apito para mim, para que eu não me sentisse sozinho enquanto ele trabalhava na lavoura.

Raygan ponderou, seus pensamentos mais obscuros vindo à tona. 

— Você sabe ler? — questionou, a voz cautelosa.

Daemis desviou o olhar, e naquele gesto Raygan encontrou a resposta. O silêncio, mais ensurdecedor que qualquer palavra, ecoou pelo quarto, até que Daemis saltou da cama, as solas de seus sapatos reverberando no chão.

— Posso fazer outra pergunta? — indagou, sem esperar permissão.

— Você já fez — bufou, exasperado pela persistência.

— De onde você conhece o senhor Halcan.

— Ele é um conhecido da minha família. Conheceu meu avô, meus pais, então conhece também.

Daemis sorriu, como se tivesse encontrado a chave para um enigma.

— Então você é de uma família importante.

O rosto de Raygan congelou.

— Você… é um nobre?

Maldição! — gritou Raygan em sua mente, sentindo o pânico apertar-lhe o peito. Havia falado demais, o que deixou que as pistas escapassem de sua língua descuidada. A palavra “idiota”, à qual o príncipe já se habituara se referir a ele, ecoava em sua cabeça, semelhante a uma presa imprudente fugindo de um predador, apenas para tropeçar direto em uma armadilha invisível.


Capítulo novo toda semana!



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