Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 26: Meninas Também Lutam

 

FORDWEL


Na sala de visitas, entre quatro paredes, Vivy, sentada no sofá, amarrava os cabelos da menina focada em escrever no papel em cima da pequena mesa. Tal como ela, Joellis estava apropriadamente vestido, e sua mãe, acomodada na cadeira, tricotava um pequeno par de luvas, conforme a sua rotina, o xale cobrindo seus ombros quando Harl, depositando um beijo em sua cabeça, alocou-se no sofá frente ao filho.

Circaz estava em pé ao lado dele, suas mãos para trás, pronto para as ordens.

― Gostaria de conversar com você sobre um assunto muito importante ― iniciou o pai. ― Halcan conversou com sua mãe, e como bem sabe, Olpheia está recebendo rapazes entre dez e dezesseis anos para treinar em Kanaris.

― Recrutamento? ― perguntou Joellis.

― Isso mesmo. Durante três meses, esses jovens passarão por diferentes testes. Resistência, força e outras habilidades serão avaliadas e, dentre eles, aqueles que melhor se destacarem, serão recompensados.

― Com o quê?

― Dinheiro, posição… ― comentou Circaz. ― Poder de escolha e reconhecimento.

― No fim, os filhos da alta sociedade retornarão para casa, podendo escolher se querem continuar na área militar ― acrescentou Harl.

― Então eu poderia escolher lutar ou não? ― Joellis olhou para Circaz, voltando seu olhar para Harl. — E quanto aos outros? Eles serão obrigados a lutar?

Em meio a um silencioso duelo de olhares entre o marquês e o cavaleiro, cuja conversa parecia ser compreendida apenas por eles, Harl comentou:

― Garotos da sua idade irão lutar, enquanto você poderá escolher se deseja retornar para casa, ou tornar-se um grande guerreiro.

― E o que meu avô veio fazer aqui?

Harl, discretamente, lançou rapidamente o olhar para Laemi, esta que já olhava para ele, com certa reluta, porém, no aceno da cabeça, concedeu a palavra a ele.

― Halcan quer saber o que eu e sua mãe achamos disso. Ou melhor, se você quer se juntar aos recrutas.

Os olhos de Joellis se arregalaram, cintilando.

― Para treinar, assim como eu e Circaz?!

― Mas ― o cavaleiro interferiu aquela súbita animação. ―, lembre-se, jovem mestre, o treinamento será muito mais rigoroso do que o que fazemos juntos. Você enfrentará jovens que não hesitarão em usar toda a força para derrubá-lo; garotos dispostos a feri-lo e humilhá-lo se isso os ajudar a desestabilizá-lo.

― Eu não ligo para eles! Eu… ― Sua voz tremeu com a excitação. ― Eu poderei lutar de verdade! Pai, eu quero treinar em Kanaris! ― disse, levantando-se do sofá com determinação.

E Harl, soltando o ar pelo nariz, submisso ao entusiasmo do filho, declarou:

― Está bem. Você partirá amanhã ao nascer do sol. Circaz irá acompanhá-lo na carruagem. A viagem será longa, mas chegará ao destino antes do fim do dia.

Circaz inclinou a cabeça em reverência, a cicatriz na lateral do rosto, que impedia o crescimento dos fios da barba, seguindo o movimento de suas bochechas num sorriso discreto.

― Obrigado, pai! ― Joellis curvou-se e então dirigiu um olhar caloroso à sua mãe. ― Obrigado! ― Ele correu pelo corredor, chamando: ― Vivy, ajude-me com a mala!

― E eu? ― indagou Ayanna, seus olhos brilhando com esperança. ― Eu posso ir também?

― Não, querida. Apenas os garotos foram convocados. ― Harl tocou a mão dela gentilmente, seus cabelos cuidadosamente arrumados em um penteado impecável. ― Você não disse que ia se dedicar aos estudos para ser aceita no convento de Bassalis?

― Mas eu quero ir!

Harl, porém, com uma leve seriedade, pronunciou:

― Kanaris não é lugar para você.

― Papai! Por favor!

― Annalise… ― Harl lançou um último olhar para ela, calando-a em uma ordem silenciosa.

Contudo, ao ver o semblante entristecido da menina, o incrível cavaleiro interveio:

― Vossa Graça, lembro-me do velho Halcan dizer que, se a senhorita fosse uma boa menina, poderia acompanhar o jovem mestre.

Harl arqueou as sobrancelhas, surpreso, e lançou um olhar para Laemi, que também parecia um pouco desconcertada.

― Ele disse isso? 

Laemi observou o pequeno bico se formando nos lábios da filha, percebendo a súplica em suas feições. E, talvez, após conceder esse ato de favor, ela se tornasse devota às suas ordens, como uma menina astuta, disposta a sacrificar anos de teimosia para conseguir o que deseja.

― Apenas se for uma menina comportada. ― Ela voltou a sua atenção para o crochê. ― Não devemos aborrecer o senhor Halcan. Então, se ela prometer ser uma boa menina, e, claro, se meu esposo concordar, não vejo problema. Mas ela deverá voltar no dia seguinte e obedecer à Louise nos estudos de etiqueta. E também, deve prometer que se dedicará às aulas de canto que a irmã Ruth preparou.

― Eu vou obedecer! Eu vou! 

Harl lançou um olhar desconfiado para Circaz, que permanecia inerte, recebendo um abraço inesperado de uma coelinha saltitante, junto de um grande sorriso no rosto. Era como se os dois tivessem planejado tal ato de rebeldia em poucos segundos.

― Vou confiar em você ― disse Harl ao cavaleiro. ― Cuidará dela e de Joellis como se fossem sua própria vida.

Ayanna correu aos braços do pai e, em seguida, aproximou-se delicadamente da marquesa.

― Obrigada, irmãozinho! ― Ela beijou a barriga da mãe antes de correr pelo corredor, gritando: ― Joe, me espera, eu vou com você!

― O QUÊ?! Não, não e não! ― A voz distante de Joellis reverberou pela casa. ― Mãe!

Harl, ouvindo a confusão, virou-se para Circaz e, num sorriso dissimulado, comentou:

― É melhor você estar preparado.

Na clareira, onde a cabana fora construída, o canto dos pássaros se fundia ao farfalhar dos galhos e ninhos das árvores de um dia cinzento, sem os flocos gelados do inverno. Lupin caminhava com passos pesados, as pegadas se desvanecendo na terra úmida, enquanto verificava as guias dos cavalos, a mão deslizando pela pelagem lustrosa de um deles. Ao levantar o olhar, notou Raygan, encostado na porta da carruagem, um livro aberto em suas mãos, como se estivesse à espera de ser notado.

― Ah… ― Lupin observou a postura relaxada de Raygan, as costas apoiadas na madeira entalhada, os dedos ágeis virando uma folha amarelada. ― Posso ajudá-lo?

Aygnar não parece ser um bom nome, não é? ― perguntou, os olhos ainda presos às palavras do livro.

― Serve bem para um cachorro ― respondeu Lupin, enquanto examinava as rodas do veículo. ― Quem teve essa brilhante ideia? E por que tanto medo de que os outros saibam quem você realmente é?

Raygan bufou, um riso irônico curvando-lhe os lábios. ― Você sabe o porquê ― disse, fechando o livro com um estalo e atirando-o sobre o sofá da carruagem.

― O quê? ― Lupin o encarou, aproximando-se, a familiaridade com aquela reação estampada em cada movimento. ― Raygan, eu o conheço mais do que imagina.

O garoto revirou os olhos, mas não interrompeu o discurso do cocheiro.

― Quem esteve ao seu lado quando sua mãe não pôde? ― continuou, calmamente.

― Odeio perguntas retóricas. ― Franziu o cenho.

― Apenas escute ― insistiu Lupin, embora o esforço para manter a paciência fosse evidente. ― Você odeia que os outros o vejam como um menino indefeso, mas nesta viagem, ao menos tente interagir com os outros rapazes. Dae é um bom garoto, e ele está animado para nos acompanhar.

― Ele é um idiota! ― articulou Raygan, rispidamente. ― Isso só pode ser uma piada.

Lupin respirou fundo, as palavras pesando em sua língua.

― Sua mãe me pediu para ajudá-lo, sempre que precisasse.

― Uma perda de tempo. Você nunca tentou me proteger. Sempre odiou que eu ouvisse as conversas dos soldados, mesmo sabendo que era minha distração favorita ― afirmou, fitando a terra úmida mesclada com o pouco de neve que restara.

― Eu não podia permitir que você ouvisse tais atrocidades! ― retrucou, a indignação surgindo. ― Não eram assuntos para uma criança, muito menos o linguajar.

― Que se foda ― ele sussurrou, como se sua língua tivesse sido atingida por um gosto amargo.

Enquanto isso, no alto caminho até a cabana, Daemis os observava pela janela, intrigado pelo murmúrio da conversa e pela distância impenetrável que parecia envolver Aygnar, mais nítida do que nunca.

O príncipe evitou olhar para Lupin, como se o simples ato de encará-lo pudesse reavivar ainda mais as brasas de sua raiva e repulsa. Malditas noviças, amaldiçoava em seu âmago. O silêncio que se seguiu foi denso, pesado; até mesmo os pássaros recuaram diante da tensão que pairava no ar.

― Você mudou bastante desde aquela noite. Eu não sabia o que fazer ― admitiu Lupin. ― Você nunca me contou o que aconteceu. ― Seu olhar cedeu à preocupação. ― Se eu soubesse, não permitiria que ele o tivesse machucado.

Raygan, todavia, contorceu os lábios.

― Há! ― exclamou, frustrado. ― E o que você queria que eu fizesse? Você teria acreditado?!

― O quê?! Claro que eu…

― Esqueça! ― cortou, coçando a cabeça. ― Esse assunto está me deixando louco! Nunca mais mencione isso! Se alguém deve se sentir culpado, esse alguém sou eu. ― Apontou para as olheiras. ― Eu fiz minhas escolhas! Agora, me deixe em paz!

E o homem, vendo-o partir, permaneceu paciente, lembrando-se que conversar com o jovem príncipe nunca foi fácil. Por outro lado, Daemis, com o olhar fixo no garoto, que chutava a neve durante o trajeto, sentiu a presença de Halcan se aproximando.

― Estou curioso ― disse Daemis, sem desviar o olhar.

― Sobre o quê? ― indagou o velho, as sobrancelhas arqueadas.

― Eu o vi saindo com o livro em mãos, então ele parou para olhar Lupin enquanto ele conduzia os cavalos ― refletiu por um breve instante. ― O senhor mencionou que ele é difícil de lidar, mas por que ele parecia querer conversar, só para depois evitá-lo com tanta raiva?

― Onde queres chegar? ― Halcan cruzou as mãos nas costas, estudando-o.

― Vi muitos garotos em Lorist e até pensei em fugir com alguns que planejavam ir para Jighal, acreditando que encontraria meus pais. ― Ele apertou os lábios, deixando transparecer as covinhas. ― Mas desisti quando vi os soldados do exército de Balmont. Eram corajosos, destemidos, e com certeza nos matariam ― riu, com um toque de amargura.

― Está elogiando seus inimigos? ― questionou, intrigado.

― Não é isso. ― Encarou o velho. ― Só não tenho certeza se ele está preparado para lidar com os jovens em Kanaris.

Halcan absteve-se de qualquer comentário. Ele analisou a expressão sincera de Daemis, principalmente a leveza em suas palavras ao referir-se ao jovem príncipe.

― Quero acreditar que ele só está passando por um momento difícil ― continuou, vendo uma rajada de vento bagunçar os cabelos de Aygnar. ― Bom, acho que é por isso que eu estou aqui; ele só precisa de um amigo ― concluiu, sorrindo.

Halcan, sentindo uma estranha sensação de paz no coração, retribuiu o gesto.

― És um bom garoto, mas lembre-se: sua gentileza nem sempre o beneficiará. “Seja persistente e acredite, acima de tudo, que pode enfrentar o que pensas ser maior que você.”

Era um ditado entre os soldados mais jovens de Lorist. Impossível de esquecer.

― Acreditarei nisso quando eu conseguir desviar de um golpe de espada dos ataques ferozes de Oracis ― brincou.

― Ele não pega leve. ― Uma curta gargalhada escapou de seus lábios. E movendo-se em direção à porta, falou: ― Certifique-se de que não está esquecendo nada importante. Ainda teremos muito a conversar.

― E quanto ao senhor Maycon? Partiremos sem nos despedir?

― Que tal perguntar diretamente a ele? ― respondeu, apontando para a sala.

Daemis olhou confuso na direção indicada, e lá, próximo à lareira que já se apagava, estava Maycon, virando-se para encará-lo.

― Senhor Maycon? ― pronunciou, um tanto surpreso. ― Como eu não o vi?

― Porta dos fundos. Tive um assunto a resolver. Mas não quero tomar mais do seu tempo ― explicou. ― Lupin está esperando, e acredito que as malas já estão prontas.

Halcan lançou um olhar rápido para Daemis. ― Avise a Lupin que partiremos agora.

O jovem assentiu e saiu da cabana. E o general, voltando sua atenção para Maycon, exigiu:

― Diga a verdade. ―  Seu tom era sério; familiar. Algo estava errado, tinha certeza.

― Nada que te diga respeito ― respondeu Maycon, cruzando os braços.

― Maycon…, por favor. ― Ele acreditava ter o poder de convencê-lo a abrir-se.

― Preciso de um favor ― interrompeu, o olhar distante.

― Ah… Sim? ― A curiosidade estava quase escapando da língua.

― Quando o treinamento acabar e você escoltar o pirralho de volta ao palácio, diga à rainha que Giorgya está em uma situação pior do que ela imagina. Ela acredita ter poder para mudar as coisas, mas temo que seja uma luta em vão. ― Ele fez uma pausa, pensativo. ― Sabe…, anos atrás, ela me pediu ajuda para buscar respostas.

― Respostas? ― Aos poucos, o assunto tornou-se mais instigante do que antes.

― Havia alguns boatos de que um garoto de cabelos loiros platinados e olhos negros estava perdido aqui durante aquele ataque. A idade dele…, o jeito como falava e até mesmo como caminhava. Eram coincidências demais para ignorar.

Halcan arregalou os olhos, descrente, as palavras de Maycon penetrando fundo em sua mente.

― O quê… ― expressou, quase sem voz.

― Sim, parece loucura ― admitiu num suspiro. ― Mas ela implorou para que eu verificasse. Claro, a resposta não foi o que ela e o imperador esperavam.

― Como é possível? ― Sua voz falhou. ― Eu… eu vi o corpo de Leion ser levado após o ataque.

Maycon balançou a cabeça lentamente. ― As suspeitas não eram sobre Leion estar vivo. O que ela queria era… bem, confirmar se…

― Outro bastardo ― completou Halcan, a mente rodopiando com a ideia, seus olhos fixos no chão, mas sem enxergar nada.

De qualquer forma, o velho caçador respirou fundo.

― Não sei por que isso a incomoda tanto. Bastaria uma palavra do imperador, e todas as suspeitas se calariam. Raygan é o herdeiro, e a Igreja reconhece que ele é legítimo. Eu enviei uma carta, mas nunca soube se ela foi lida ou jogada ao fogo. Mesmo assim, pensei que você, de todas as pessoas, pudesse esclarecer isso. Afinal, já se passaram cinco anos.

Halcan levantou os olhos, o rosto envelhecido refletindo o que acabara de ouvir.

― Saône não é mulher de abandonar uma criança, mesmo que não seja de seu ventre. Ela amava Leion como se fosse seu.

― Isso não muda nada! ― exclamou Maycon, com um fervor repentino. ― Leion era um bastardo! Você e eu sabemos que ele nunca deveria ter nascido. Essa guerra com Balmont e Jighal… tudo isso começou porque Elard reconheceu um bastardo como herdeiro!

― Foram as escolhas do antigo imperador, não dele! ― rebateu Halcan, sua voz firme e convicta. ― Ele, sim, foi um covarde.

― Há! ― bufou Maycon, junto de um sorriso incrédulo. ― Você realmente…

Antes que a conversa pudesse prosseguir, uma voz irrompeu da entrada da cabana.

― O que meu avô tem a ver com a guerra?

Ambos se viraram em direção à porta. Raygan estava parado, a sombra ocultando parcialmente suas feições. No entanto, Maycon cerrou os olhos e questionou, desconfiado:

― Quanto tempo está aí?

― Tempo suficiente para ouvir vocês debaterem minha legitimidade ― manifestou, com um toque de sarcasmo. Seu rosto, apesar de calmo, transmitia uma clara indiferença. ― Não se preocupem, o outro idiota está com Lupin na carruagem. Podem parar de fingir que eu não sou o futuro rei de Olpheia.

Halcan trocou um olhar breve com Maycon antes de recuar, a mão indo para o ombro de Raygan. ― Já estamos de saída. Temos um longo caminho até Kanaris.

Raygan mirou os olhos para o velho caçador, um sorriso discreto e malicioso curvando-se à sua boca. ― Que bom. Prometo ser um bom menino ao voltar para os braços de minha mãe.

Maycon soltou o ar com um meio sorriso. Ele havia ouvido, afinal.

― Vamos, já demoramos demais ― disse Halcan, enquanto guiava Raygan em direção à saída, lançando um último olhar para Maycon e perguntando:

― Veremos você em Kanaris?

Maycon hesitou, os olhos dele desviaram por um breve instante.

― Talvez. Vou ver se apareço.

Halcan assentiu, sabendo que aquela resposta vaga era o máximo que conseguiria.

― Até logo.

Maycon observou os dois descerem até a carruagem, onde Daemis e Lupin já esperavam, acenando. Ele retribuiu o gesto, seu olhar seguindo o veículo ao som dos cascos dos cavalos, deixando para trás rastros sutis na neve recém-caída, enquanto este desaparecia pelas folhas e árvores da trilha estreita. Apesar de estar concentrado em seus pensamentos, o velho, agora sozinho, estranhou o silêncio que, até então, pensava ser habitual.


Capítulo novo toda semana!



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