Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 24: As cores da Chama

GIORGYA

 

As árvores pareciam sussurrar entre si. Pela estrada, os galhos rangiam e batiam uns contra os outros, como uma sinfonia melancólica que preenchia a floresta, enquanto as pegadas do viajante desapareciam gradualmente sob os flocos de neve, apagando os rastros de sua passagem. A capa que trajava erguia-se e caía ao ritmo do vento, enquanto o capuz envolvia seu rosto, protegendo-o do frio implacável.

Não havia luz, exceto a pálida prata da lua e o brilho tênue das estrelas, lanternas da própria natureza, que iluminavam seu caminho. Maycon avançava, mesmo que a neve dificultasse cada passo. Ele tinha um destino em mente, uma razão que justificava o esforço de enfrentar o rigor do inverno.

Na entrada da cabana, a espada de Halcan pendia em sua cintura. Ele observava a nevasca se intensificar. Seus olhos, sempre atentos, varriam a escuridão da vegetação à frente. A porta rangia, ameaçando abrir com a força do vento, mas o som das dobradiças revelou algo inesperado.

— Senhor, ele não vai voltar tão cedo — disse Lupin, segurando uma caneca entre as mãos. — Conheço meu tio. Quando ele tem algo a resolver, não volta até que esteja feito.

Halcan manteve o olhar fixo na neve, os flocos se agarrando à sua barba e aos fios curtos de cabelo, enquanto o vento uivava ao seu redor. As rugas em seu rosto eram marcadas pela preocupação.

— Já se passaram trinta minutos, Lupin — falou ele, sua voz pesada. — Por que ele sairia em uma noite como esta, sem dizer para onde ia?

O general, que havia desafiado horrores inimagináveis no campo de batalha, encontrava-se à mercê de emoções que escapavam ao seu controle. O incidente com Daemis, como uma ferida ainda aberta, perturbava sua paz interior, que antes parecia ser um controle absoluto para si, agora se dissipava como fumaça ao vento.

Maycon apertou a capa ao redor de seu corpo, resistindo ao vento que tentava arrancá-la de seus ombros. Erguendo os olhos, ele avistou as casas próximas, onde os moradores já dormiam. Ele estava perto do seu objetivo, atento a cada passo e consciente dos riscos que estava disposto a correr.

— Ele sempre foi assim — continuou Lupin, soprando suavemente sobre a caneca de leite quente. — Quando eu era criança, me perguntava por que ele vivia isolado, longe da cidade. Meu tio nunca aceitou o que faziam com os escravos… ou talvez fosse apenas sua personalidade, que nunca foi das mais fáceis. — Ele sorriu, uma lembrança distante suavizando suas palavras.

O velho ergueu os olhos para o céu, a neve flutuando no ar. Ele sabia a resposta. Encontrá-lo havia despertado memórias que por muito tempo manteve seladas, como um segredo sombrio que não desejava recordar.

— Espero que ele saiba o que está fazendo — suspirou Halcan.

Pela rua, onde as botas de Maycon deixavam rastros na neve, seus olhos perscrutavam as casas, buscando uma em particular. Guiado pela luz da lua, ele encontrou os muros familiares de um lugar que conhecia bem. Finalmente, ele viu a estalagem, um brilho interno sugeria que a pessoa que procurava poderia estar acordada.

Maycon parou em frente à porta e bateu com força. Esperou alguns segundos até ouvir uma voz áspera do outro lado:

— Não há vagas!

A porta permaneceu fechada, mas a paciência de Maycon não tolerava ser mantida do lado de fora.

— Abra a porta! — gritou ele, batendo com força na madeira. — Sou eu, Maycon!

Após um momento de hesitação, as dobradiças cederam, e a porta se abriu lentamente. O homem do outro lado o encarou com uma mistura de dúvida e desdém.

— O que você quer? — perguntou ele, irritado.

— Entrar! Deixe-me entrar, Zorak!

— Claro que não! Você é a última pessoa que eu deixaria entrar aqui!

Com um movimento rápido, Maycon recuou três passos e, com um impulso feroz, chutou a porta entreaberta. Zorak cambaleou com o impacto, caindo ao chão.

— Argh! Mas que…?!

Maycon avançou sobre ele, agarrando-o pela gola da camisa.

— Eu sei o que você fez — rugiu, seus olhos cintilando uma fúria que parecia consumir sua alma. — Sei muito bem o que você fez. — Ele empurrou Zorak com força, recuando alguns passos enquanto tentava controlar a respiração que se tornava pesada.

— Do que você está falando?!

— Como pôde? — Maycon cuspiu as palavras como veneno. — Ainda que ele não saiba o que o atacou, sei que foi você, seu bastardo!

— Ha! — zombou Zorak, levantando-se do chão com um sorriso. — Então é isso. Não compreendo o que te levou a enfrentar esse clima terrível apenas para proteger tal criatura.

— Criatura?! — O sangue de Maycon ferveu, o calor subindo à sua cabeça.

— Ele não é muito diferente de você — continuou o homem, seus lábios se curvando em um sorriso maligno. — Posso estar enganado, mas acredito que ele te agradou. Seus gostos não mudaram, mas agora prefere rapazes mais jovens? Maycon, Maycon… o quão fundo você pode ir para satisfazer-se?

A fúria de Maycon explodiu como um trovão em meio à tempestade. Com um movimento ágil e certeiro, Maycon socou o rosto de Zorak, derrubando-o novamente.

— A verdadeira aberração é você! — vociferou Maycon, seus olhos queimando com uma raiva incontrolável. — Eu deveria matá-lo! Como você…?! — Ele franziu as sobrancelhas, enojado. — Ele é apenas um garoto!

Maycon podia ver com nitidez a face de Daemis em sua mente. Os olhos suaves, repletos de uma bondade que parecia eterna, e os lábios que se curvavam em um sorriso tímido, grato por cada gesto, por menor que fosse, que Halcan lhe oferecera ao longo de tantos anos.

Zorak soltou uma risada amarga, limpando o sangue que escorria de seus lábios.

— Hahah, você é um hipócrita! — gargalhou ele, sua voz reverberando pelas paredes da estalagem. — Você é uma aberração como ele, e é por isso que seu lugar é longe de todos!

Mesmo caído aos pés de Maycon, Zorak manteve sua arrogância intacta. Como muitos em Giorgya, ele desprezava o que não compreendia, alimentado pelas crenças envenenadas dos conquistadores.

— Você mancha o nome da nossa rainha. Ela está lutando para fazer desta terra amaldiçoada um lugar melhor.

— Ninguém aqui pediu para ela carregar nossas dores. Ela nunca foi digna do trono, assim como a antiga soberana. Vocês, inclusive aquele moleque, nunca serão dignos de viver como nós, filhos legítimos de Redron. — Levantou do chão, sentindo uma pontada na lombar.

— Que se foda você e Redron. — Maycon virou-se, caminhando em direção à saída e o vento gélido batendo em seu rosto como um golpe.

— Já vai embora? Hahaha! É uma pena  que as vadias não aceitam um velho para trabalhar ao lado delas! — Ele assistiu Maycon desaparecer na escuridão da rua. — Filho da puta! — bradou, cuspindo sangue misturado à saliva no chão.

Maycon prosseguiu pela estrada coberta de neve, mas algo dentro dele estava diferente. Um desconforto crescente apertava seu peito, desacelerando seus passos.

A figura de Daemis surgiu em sua mente novamente. Ele era apenas uma criança, um estrangeiro sem lar, assim como Maycon havia sido um dia. Mas, por um milagre, alguém o resgatou. Halcan salvou Daemis, assim como havia salvado Maycon.

Era o passado repetindo-se diante de seus olhos. Daemis parecia estar ali para lembrá-lo de algo que ele desejava desesperadamente esquecer: a cruel verdade de ser uma vítima do próprio nascimento.

E o vento soprou, reverberando novamente em seu entorno.

Enquanto a noite envolvia a cabana, Halcan permanecia de pé, diante da lareira, seus olhos perdidos nas chamas durante o crepitar da lenha. O brilho alaranjado iluminava seu semblante envelhecido. As paredes de madeira ringiam sob o peso do vento impiedoso lá fora, no entanto, ao tocar a madeira, Halcan sentiu a resistência sob seus dedos, percebendo que, apesar da fragilidade aparente, a cabana era mais forte do que aparentava.

Um estalar de tábuas interrompeu seus pensamentos. Ele se virou, os sentidos aguçados. A figura que se aproximava emergiu das sombras, mas Halcan não precisou de mais do que um instante para reconhecer o jovem príncipe Raygan.

— Deveria estar dormindo, Alteza.

Raygan parou ao seu lado, os olhos se voltando para a porta fechada do quarto onde o ferido repousava.

— Ouvi dizer que ele acordou.

— Sim. Ele está se recuperando — assentiu.

Raygan enfiou as mãos nos bolsos, numa tentativa de se proteger do frio. Estava inerte, próximo do quarto, e para o velho, algo o incomodava.

— Queres falar com ele? — perguntou Halcan, sem rodeios.

Raygan se aproximou mais da lareira.

— Onde está Lupin? — indagou, os olhos fixos no fogo, as sombras acentuando o semblante cansado de mais uma noite sem sono.

— Ele está com Daemis. A companhia de Lupin tem sido um alívio para ele.

Raygan desviou o olhar da lareira, uma ponta de curiosidade surgindo em sua voz ao comentar:

— Ouvi você mencionar que ele é de Jighal. Estou curioso.

— Por qual motivo?

— Nunca conheci ninguém de Jighal, nem os invasores que tentaram me matar quando eu era um recém-nascido.

A calma na voz de Raygan não passou despercebida por Halcan.

— Aliás, estive pensando sobre algo — sucedeu Raygan, tocando distraidamente nas pontas dos cabelos. — Em algumas culturas, como a de Etyllia, o corte de cabelo é um símbolo de renovação, de liberdade e transformação. Mas, para mim, são apenas fios.

— Foram suas ordens, Alteza. — comentou Halcan, um leve sorriso curvando seus lábios, enquanto as sombras brincavam no fundo.

— Eu sei — respondeu Raygan, com um suspiro. — Acha que ainda me pareço com ele?

A incerteza na voz do menino reverberou no coração de Halcan. Ele viu nos olhos escuros de Raygan a incerteza que o assombrava; um temor persistente de ser comparado ao pai.

— Por que isso o perturba tanto? Sua aparência… Ninguém lhe disse que seus olhos se assemelham aos de sua mãe?

Raygan franziu a testa, incrédulo.

— Meus olhos? Sabe muito bem que meus olhos…

— Não me refiro à cor, Alteza — Halcan o interrompeu, sua voz mais suave agora. — É a gentileza em seu olhar que reflete a alma de sua mãe.

— Ha! — riu, em tom zombeteiro. — Não preciso de bajulações, velhote. Deixe isso para minha irmã.

— Das poucas vezes que estive no palácio, vi como a corte se animava em sua presença — expôs Halcan, as mãos entrelaçadas atrás das costas, enquanto as chamas lançavam sombras tremeluzentes nas paredes. — Sua presença sempre trouxe vida a todos ao seu redor.

Raygan desviou o olhar para o fogo, mergulhando nas memórias do seu passado no convento.

— Sou um príncipe. Conheço meus direitos e o poder que exerço sobre os outros. Posso fazer muitas coisas, mas… eu não pude fazer nada enquanto estava confinado naquele inferno.

Halcan detectou a raiva e a frustração nas palavras de Raygan, mas também percebeu o medo, escondido sob uma máscara de indiferença.

— Lupin era seu único amigo no convento?

Raygan lançou-lhe um olhar sarcástico.

— Ele te disse isso? Bem, ele foi útil. Quando precisei de um servo, ele fez seu trabalho.

A resposta parecia mais uma defesa do que uma afirmação, mas Halcan sorriu, achando a situação curiosamente reveladora.

— Falar do convento o deixa desconfortável? — perguntou o velho, sua soando voz tranquila.

Raygan observou as chamas, suas cores se alinhando em um espetáculo harmonioso. O pequeno tom de vermelho recordava-lhe dos cabelos de Thayrin; o laranja, de algo mais distante, uma lembrança vaga; mas o amarelo junto ao branco… essa cor era a mais distante de todas, como se pertencesse a um lugar ou tempo que ele não conseguia alcançar.

— Eu não estava dormindo na carruagem — afirmou Raygan, desviando o olhar para o velho. A mudança de tom em sua voz era sutil, uma camada de reservada indiferença que mal disfarçava a dor subjacente.

Halcan percebeu a alteração na maneira como Raygan se referia ao assunto, como se a simples menção dele fosse um peso que ele tentava desviar.

— Sinto muito. Nenhuma criança deveria passar por isso, especialmente vinda de outras crianças.

— Eles me odeiam — murmurou Raygan, a languidez em sua voz revelando uma tristeza quase desinteressada. — Me odeiam porque sou parecido com ele.

"Todos eles", sem excessão. Padres, freiras, noviças... Seja quem fosse, ele estava convencido disso.

Halcan notou o esforço de Raygan para evitar chamar o imperador de pai. De certa forma, o lembrava de uma barreira invisível que ele não queria atravessar.

— E Vossa Alteza sabe o motivo? — indagou, seus olhos fixos no príncipe.

— Claro que sei. Você acha que eles me deixaram esquecer? — A voz de Raygan cortou o ar. — Dia e noite eu ouvia os cochichos sobre mim. Um menino no convento? Era um escândalo — ele bufou, uma expressão de desgosto cruzando seu rosto. — Lembro dos olhares dele, me rejeitando apenas por estar na mesma sala. E sabe o que mais? Não me importo com o que aquele idiota pensa sobre mim!

— E ainda assim, ele é seu pai.

Halcan era paciente. Ele tentava compreender a raiz de tanta repulsa.

— Pai? — Raygan soltou um risinho de deboche, a palavra saindo de seus lábios como uma negação amarga.

O príncipe lançou um olhar perspicaz em Halcan, avaliando a seriedade de sua afirmação.

— Um pai faria uma mãe implorar para ver seu filho? Ela e minha irmã eram as únicas que vinham me visitar. Elas desobedeceram ordens para estar comigo, e eu não posso simplesmente ignorar isso.

— Então, por que está longe delas?

Provocá-lo poderia surtir um efeito diferente.

Raygan olhou para as chamas da lareira, o fogo refletindo em seus olhos.

— Não ficarei forte para protegê-las lendo livros antigos. Eu precisava de um motivo muito válido para estar aqui. O debute de Thayrin era entediante, mas quando ouvi que o império estava recrutando jovens para treinamento… No início, ignorei, mas talvez fosse a oportunidade que eu precisava. Só não esperava perder o controle.

Halcan observou a expressão de Raygan, calma e passiva, como se a expulsão temporária do palácio fosse apenas um detalhe menor.

E ele continuou, dizendo:

— Fui pego de surpresa também, mas no fim, tudo deu certo. Se eu não convencesse o imperador de que precisava de uma lição, minha mãe jamais me permitiria estar aqui.

Halcan refletiu sobre as palavras. Havia uma razão por trás da decisão de Elard, a qual ele ainda desconhecia.

— O que exatamente Vossa Alteza fez?

Raygan hesitou, e seus olhos alcançaram Halcan mais uma vez.

Se eu dissesse, ainda confiaria em mim? Você… acredita em mim, velhote? — ponderou Raygan, tentando decifrar a expressão que buscava desvendá-lo.

“Fiz o que precisava ser feito”, pareciam dizer, mas Raygan acreditou que uma explicação verbal era mais apropriada.

— Nada de mais. As pessoas adoram fofocar sobre minha família — respondeu Raygan, dando alguns passos em direção à porta do quarto de Maycon. — Mudando de assunto, tive uma ideia sobre o que fazer com um certo intruso. — Um sorriso traiçoeiro apareceu em sua face.


Capítulo novo toda semana!



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