Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 23: Laços que se entrelaçam

GIORGYA

 

Horas mais tarde, durante a fria madrugada, o canto de uma ave ecoou pelo ar rarefeito da floresta, rompendo a quietude com uma melodia solitária. O som da água batendo nas rochas do riacho era um murmúrio constante, acompanhado pelo farfalhar suave dos galhos caídos sob o peso da neve. As folhas estavam enterradas sob o tapete branco, assim como os troncos das antigas árvores. Mais uma vez, a canção reverberou próximo à cabana, como um aviso sutil.

Na residência, Halcan estava sentado em uma poltrona ao lado da lareira, cujas chamas projetavam sombras tremeluzentes nas paredes de madeira. A espada, sua eterna companheira, descansava embainhada sobre a mesa. Um manto grosso envolvia seus ombros, protegendo-o do frio enquanto ele tirava uma breve pausa para o descanso.

Maycon andava pela sala com passos cuidadosos, conferindo as janelas, ao tempo que ouvia o chamado da criatura, que rondava acima da casa. Seus olhos ergueram-se para o teto, onde o som tornava-se mais próximo até que, finalmente, cessou. Ele olhou para Halcan, que cochilava despreocupado, e depois notou um brilho peculiar que emanava por baixo da porta do quarto onde Raygan repousava.

Intrigado, Maycon caminhou pelo corredor estreito, parando diante da porta. Ele inclinou a cabeça, tentando discernir o que estava ouvindo. Era apenas o vento sibilando através das frestas, mas aquele brilho insistente continuava a chamá-lo. Com hesitação, estendeu a mão para a maçaneta, mas foi interrompido por uma voz baixa e ansiosa no corredor:

— Ele está acordando! — disse Lupin em um sussurro animado, apressando-se de volta para o quarto.

No quarto, Daemis sentiu um arrepio percorrer a sua espinha. Seu corpo se moveu involuntariamente, fazendo-o despertar de súbito, confuso em relação ao seu entorno. Ele examinou as paredes de madeira e a chama da vela prestes a apagar, tentando lembrar-se de onde estava.

― Você acordou! ― exclamou Lupin, ainda parado à porta, com um sorriso aliviado. ― Como se sente? Está com frio?

Daemis levou a mão ao peito, ainda tentando organizar seus pensamentos, encarando Lupin.

― O quê? Ah, desculpe! Você deve estar procurando por isso. ― Lupin estendeu a mão, oferecendo-lhe um pequeno instrumento enrolado em um cordão. ― É um apito bonito. Foi você quem fez?

― Sim… Quem é você? — perguntou Daemis, com sua voz desconfiada.

― Lupin. Sou o cocheiro da carruagem do general Halcan. Nós o encontramos desmaiado perto de uma estalagem. Tem certeza de que está bem?

As lembranças de Daemis eram como um sonho desvanecido. Ele se lembrou de correr desesperadamente pela multidão, tentando escapar, mas ao piscar, a memória de ter sido arrastado para um beco escuro invadiu sua mente. Tudo parecia tão distante, como se estivesse envolto em uma neblina.

― Eu assustei aquele garoto… ― murmurou, mas logo a sua preocupação real o alcançou. ― Espere! O senhor Halcan está aqui?! ― Sua voz se elevou em surpresa, e um pouco de pânico. ― Eu já deveria estar em Kanaris! ― Ele se levantou rapidamente, mas suas pernas vacilaram e ele perdeu o equilíbrio, batendo o cotovelo na estante ao lado da cama.

― Ai!

― Ei! Cuidado! Você acabou de acordar, não pode levantar-se assim! ― repreendeu Lupin, apressando-se em ajudá-lo a se sentar novamente. ― Não se preocupe, Halcan vai entender!

― Está tudo bem, garoto. — A voz grave chamou a atenção dos dois.

Daemis congelou, seus olhos arregalaram-se ao virar-se na direção da porta. Seu coração disparou, mas não era quem ele esperava. Em vez disso, um velho de expressão gentil, semelhante a seu mestre, estava parado ali, com um olhar que transmitia calma e segurança.

— Acalme-se primeiro. — O homem estendeu a mão, tocando a testa de Daemis com um gesto de cuidado. — A febre passou. — Ele então voltou-se para Lupin. — Chame-o.

Chamar? Quem? Ele?! — Daemis sentiu o coração acelerar, seus dedos apertando o edredom com força, como se pudesse esconder-se naqueles tecidos. O que ele diria, ou o que faria se Halcan o encontrasse ali, tão vulnerável?

— Não, por favor! Eu preciso ir! Ele não pode saber que estou aqui! — ele suplicou, sua voz desesperada, enquanto agarrava a barra da camisa de Maycon.

O velho franziu o cenho, observando o jovem à sua frente. Para um filho adotado, aquela reação não era o que ele esperava. Havia algo a mais, um medo quase palpável que o incomodava.

— Lupin, venha aqui — ordenou Maycon, caminhando até a porta e fechando-a. — Diga-me o que você sabe.

— O que… eu sei? — gaguejou, a surpresa evidente em seus olhos.

Maycon lançou um olhar para Halcan, que continuava imóvel na poltrona, mas ele não podia arriscar que seu amigo acordasse. Com um gesto discreto, indicou a Lupin para que o seguisse até a porta dos fundos, onde estavam guardadas estantes e equipamentos de caça, longe dos quartos.

— Sei que o garoto mais novo é filho do imperador. — Maycon descansou os braços sobre o peito, com sua voz carregada de suspeita. — Mas por que Halcan ficou responsável por ele?

— Foram ordens de Sua Majestade.

— E por qual motivo o garoto não voltou para o convento? — Maycon insistiu, sua desconfiança aumentando.

— Eu não sei. Também estou surpreso por ele estar acompanhando Halcan nessa viagem. Pelo que parecia, o imperador e a rainha estavam em bons termos. Todos no palácio foram pegos de surpresa.

— Isso é estranho. — Ele levou a mão ao queixo.

— Tudo o que sei é sobre o acampamento. O senhor Halcan sugeriu um treinamento especial para os garotos e...

— Espera aí, Halcan fez o quê? — interrompeu, desacreditado.

— Ah… foi o senhor Halcan que pensou no treinamento especial. Não é uma má ideia, mas treinar todos aqueles garotos, não será fácil!

Maycon permaneceu em silêncio, refletindo. Ele conhecia Halcan há anos, e sabia que seu amigo jamais colocaria os meninos em risco. Algo não se encaixava.

Após um tempo, ele voltou à sala, onde Halcan ainda dormia. Maycon observou o rosto do companheiro de longa data. Uma estranha sensação de inquietação tomou conta de seu peito. Um leve sorriso se formou em seus lábios, mas ele precisava confirmar suas suspeitas. Então, com um toque firme, sacudiu o ombro de Halcan.

— Acorda! — chamou, com urgência.

No reflexo, Halcan agarrou o pulso dele com força, os olhos arregalados e em alerta.

— Ah! — Halcan respirou fundo, soltando o pulso de Maycon. — Seu idiota! Quantas vezes terei que lhe dizer que não se acorda um soldado dessa forma?

— Estou acostumado. Você não é qualquer um. — Sorriu, mas o seu olhar estava sério.

Halcan soltou um suspiro, esfregando os olhos.

— O que houve?

— O garoto acordou.

— Daemis? — Halcan se endireitou, sua expressão tingida de preocupação.

— Calma aí! O moleque está um pouco assustado. — Maycon forçou-o a sentar novamente.

— Assustado? — Halcan arqueou as sobrancelhas, intrigado. — Por que ele…?

— Gostaria de pedir sua permissão, para conversar com ele em particular.

— Não vejo problema, mas por qual razão?

— Eu sei muito bem do que os homens desta cidade são capazes, Halcan. Vivo isolado por um motivo. Só peço alguns minutos para entender a situação. E, considerando que ele deveria estar em Kanaris a essa hora, acredito que você seja a última pessoa que ele gostaria de ver agora.

Halcan estudou a expressão de Maycon, reconhecendo a verdade em suas palavras. Ele sabia que seu amigo estava certo e não podia negar isso. Mesmo preocupado com o bem-estar de Daemis, ele precisava entender o que havia acontecido.

— Eu também quero protegê-lo, então deixe-me ajudá-lo — disse Maycon, apertando gentilmente o ombro dele, buscando a confirmação nos olhos do amigo.

E sem pestanejar, Halcan assentiu.

— Obrigado — respondeu o general, tocando sob a mão de Maycon em um gesto de confiança entre velhos camaradas.

Confortável na cama, Daemis fitava o pequeno objeto em suas mãos com uma intensidade quase reverente. O artefato, desgastado pelo tempo, parecia carregar algum segredo. Entre histórias antigas e mitos, Lupin, observando de relance a reação do garoto, não conseguia compreender o significado daquela relíquia. E antes que pudesse perguntar, a porta se abriu abruptamente, e a figura imponente de Maycon surgindo na soleira.

— Fora! — Uma ordem inquestionável.

Lupin não ponderou; saiu imediatamente, deixando Daemis visivelmente assustado. A ordem de Maycon não permitia contestação, e o trinco da porta fechou-se com um som seco, ecoando pelo ambiente. O velho arrastou uma cadeira para junto da cama, seus olhos fixos no jovem à sua frente.

— Serei breve, eu prometo — falou, de imediato. — Diga-me seu nome, sua idade, de onde és e porquê foi encontrado desacordado. Perguntas fáceis. Responda!

As palavras pairaram no ar, cada uma com um peso que pressionava Daemis. Eram tantas perguntas, que ele mal sabia por onde começar.

— Ah… eu… eu…

— Sim, você é você — replicou com uma leve impaciência. — Vamos! Halcan falou tão bem de você. Não me faça pensar que ele está errado.

— Ele… falou bem de mim? — Os olhos dele brilharam como verdadeiras joias.

Maycon esboçou um sorriso de canto de boca, algo que raramente fazia.

— Sim. Eu deveria acreditar nele?

O coração de Daemis, antes disparado pelo medo, agora batia em um ritmo mais calmo, quase sereno. Alívio e felicidade tomaram conta de seus pensamentos, trazendo-lhe uma paz inesperada.

— Meu nome é Daemis Langest. Sou de Jighal, uma vila em Lorist. Tenho quatorze anos, pelo menos foi isso que o senhor Halcan me contou.

— Você não sabe quantos anos tens? — perguntou Maycon, intrigado.

— Estou ciente que o general me resgatou, mas nunca disse a ele que eu sei disso. Não lembro muito bem dos rostos dos meus pais ou do meu irmão e do que aconteceu naquele dia. Mas prometi que me tornaria um cavaleiro e que voltaria para eles. Eu devo a minha vida à minha família, e ao meu mestre.

Maycon, acostumado aos subterfúgios e mentiras dos homens, estudou o menino. Em Daemis, ele não viu falsidade ou segundas intenções. Ele era gentil, puro, talvez até bom demais para o mundo cruel que o cercava.

— Então, por que sinto que você teme seu mentor? Halcan não ficará contente se descobrir que você sabe que ele o salvou.

— Eu não tenho medo dele, eu o respeito! — respondeu com firmeza, seus olhos encontrando os de Maycon. — Não quero decepcioná-lo.

Halcan o havia salvado, protegido de um mundo hostil e oferecido um lar, mesmo que temporário. Embora o general acreditasse que Daemis desconhecia o passado, Maycon viu, naquele segredo partilhado, o elo que mantinha os dois unidos.

— Tenho certeza de que Halcan se orgulha disso. — Maycon observou o rosto gentil e iluminado de Daemis, um semblante que ainda preservava a inocência e o carinho que muitos naquela terra haviam esquecido. — Agora, Daemis, diga-me o que aconteceu com você na cidade. Pode confiar em mim. — Seus olhos pousaram no apito nas mãos dele. — Seu amigo deve estar preocupado com você. Se me disser, posso ajudá-lo.

— Amigo? — perguntou, confuso, sem entender a que Maycon se referia. — Para falar a verdade, não sei o que aconteceu comigo. Eu estava perdido. Eu corria pelas ruas e, de repente, acordei aqui.

Maycon inclinou a cabeça, seus olhos avaliando-o com uma intensidade predatória, como se enxergasse além das palavras.

— Você sabe quem eu sou? — indagou o velho, um sorriso malicioso surgindo em seu rosto. — Eu não sou um homem muito sociável. Como um bom caçador, meu lugar é na floresta, onde reconheço o canto de uma Nortunália de longe.

No instante seguinte, os olhos de Daemis se arregalaram em choque, sua face congelou em uma expressão de puro terror. A besta implacável; a ave das lendas, e a peça mais valiosa do comércio batia as asas atrás do seu companheiro.

Mais uma vez, a ave entoou a melodia.

— Maxi! — ele exclamou, sentindo-se diante de um predador natural, um ser que conhecia cada truque, todas as fraquezas humanas.

Daemis lançou o cobertor para longe e levou o apito aos lábios, mas antes que pudesse soprar, a mão de Maycon, áspera e cheia de calos, fechou-se sobre sua boca, abafando qualquer som. O velho aproximou o rosto, seus olhos afiados estavam com uma crueldade fria e cortante.

— Antes que eu faça da sua amiguinha um ensopado delicioso para nós dois, sugiro que me conte tudo — expôs, seu tom ameaçador em cada palavra —, desde sua chegada a Giorgya até ser encontrado com esses ferimentos.

A presença de Maycon era opressiva, quase sufocante. Ele parecia mais um demônio encarnado do que um simples homem, um ser destituído de qualquer compaixão.

O tempo passou, cada minuto marcado pelo som dos passos de Halcan sobre as tábuas, enquanto ele fitava a porta com uma frustrante paciência. Lupin, sentado na poltrona, observava atentamente as variadas cores e tamanhos das penas nas flechas de caça na bolsa do seu tio. Porém, o silêncio crescente no quarto era como uma corda sendo tensionada, prestes a romper.

Quando finalmente ouviu-se o ranger das dobradiças, Maycon apareceu. Halcan o encarou de imediato, os olhos cheios de perguntas e a ansiedade mal contida. A expressão de Maycon era estranhamente divertida; entretanto, para o velho general, também continha uma estranha sensação que não poderia ser ignorada.

— General, tem alguém que deseja vê-lo. — Maycon, ao mover a mão, abriu caminho para ele com um leve sorriso, concedendo-lhe a passagem.

Ao cruzar o limiar, Halcan encontrou Daemis, sentado na cama, o tecido apertado entre suas mãos; estava hesitante e cheio de medo. A intensidade do olhar de Halcan era inescapável, uma mistura de desapontamento e preocupação, que fez o garoto baixar os olhos, incapaz de sustentar aquele peso.

— Eu… sinto muito — sussurrou Daemis, sua voz quase inaudível. — Eu deveria esta em Kanaris, assim como todos os outros recrutas. Eu... falhei com o senhor.

No entanto, antes de se afundar ainda mais em seu arrependimento, sentiu algo pousar em sua cabeça. Os dedos de Halcan se entrelaçaram em seus cachos, o toque firme, mas gentil. A expressão séria do velho guerreiro suavizou-se, a dureza em seus traços desapareceu como a neve sob o sol.

— Você está bem, isso é o que importa. — Halcan sorriu, um alívio genuíno inundava seu rosto.

O alívio nas palavras de Halcan fez o coração de Daemis apertar, e ele sentiu os olhos se encherem de lágrimas contidas. Um sorriso caloroso, o primeiro em muito tempo, curvou seus lábios, fazendo suas pequenas covinhas aparecerem.

Enquanto isso, na sala, Lupin observou Maycon pegar uma capa escura e dirigir-se à porta principal.

— O que você está fazendo? — perguntou, sem esconder a surpresa.

— Eu voltarei logo.

Antes que Lupin pudesse protestar, a porta se fechou com um estrondo. As botas dele afundaram na neve fresca e a capa voou com o vento, dando à figura uma aparência ainda mais enigmática.

Pela janela, Raygan, com um livro em mãos junto ao brilho das velas que tremiam sem parar, ele observou o ser estranho fundir-se na névoa. Ele era menor que Halcan, e seu andar não se parecia em nada com o de Lupin. E como o único que poderia tentar fugir naquela hora estava adormecido…

— O velho da tesoura? — Raygan arqueou uma sobrancelha, observando Maycon desaparecer na neblina e nos flocos de neve que dançavam no ar.


Capítulo novo toda semana!



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