Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 22: Fios sobre a Tesoura

GIORGYA

 

A neve cobria a estrada como um manto espesso. Raygan não conseguia distinguir se caminhavam sobre terra ou pedras, pois o véu branco estendia-se quase infinito, escondendo a trilha desconhecida. No céu, a lua lançava sua luz prateada sobre as árvores, transformando a floresta em um mar de sombras e brilhos intermitentes. Os cascos pesados dos cavalos galopavam apressadamente, ecoando no silêncio da noite, enquanto a carruagem balançava ritmada. E, dentro dela, Halcan segurava Daemis, apoiando a cabeça do jovem em suas pernas.

— Daemis, acorde — chamou, tocando na testa fria dele.

Raygan observava os dois com um olhar distante. Para ele, não havia uma explicação lógica para tal afeto, ainda mais vindo de duas pessoas sem laços sanguíneos.

— Por que você se preocupa tanto? — questionou Raygan.

O olhar de Halcan endureceu-se para ele.

— Por qual razão eu não deveria me preocupar?

— Não é um pouco suspeito alguém, nesse estado, ser encontrado nesta situação? Bem, pelo visto, os esforços da minha mãe não deram muitos resultados em relação a esse possível problema.

"Possível problema". Halcan não conseguia acreditar que palavras tão cruéis saíram dos lábios de um garoto. 

Ele... está zombando? — ele pensou, o desgosto preso em sua garganta.

— O que queres dizer? — Ele franziu o cenho. — Conheço este garoto. Ele não causaria mal algum, nem mesmo a uma formiga!

— É o que ele quer que você pense. 

— Eu confio nele — disse, firme.

Raygan, com os olhos fixos em Halcan, engoliu em seco. Era como um pai preocupado com um filho. O menino sentiu o peito inflar de desgosto em um suspiro e, com um leve movimento da cabeça, negou, dizendo:

— É como pedir para alguém acreditar no invisível, esperando um sinal divino que não virá.

Halcan, por um segundo, repensou a frase dele. Ele arqueou a testa, um tanto curioso.

— Não acredita que haja um ser acima de nós?

E o príncipe, ao olhar pela última vez para o rapaz desacordado, falou:

— Se existe ou não, eu não me importo. Prefiro acreditar apenas em mim mesmo.

O general fitou Raygan por um tempo, o menino relaxado no assento, despreocupado, como se fosse um assunto que ele mostrasse conhecer bem, especialmente por seu passado no convento. No entanto, não era nada que o interessava. Pelo contrário, parecia despertar uma raiva reprimida.

De repente, a carruagem que atravessava a parte mais escura da floresta, encontrou uma cabana solitária, surgindo ao longe, erguida sobre uma colina e banhada pelo brilho do luar.

— Chegamos! — exclamou o cocheiro, parando o veículo.

Com cuidado, o homem carregou Daemis, subindo o caminho enquanto Raygan, observando a residência tomada pelos flocos da estação, sentiu o vento gelado esvoaçar seus cabelos e congelar suas bochechas por um instante. Seu nariz estava impregnado com o cheiro de pinho e gelo, ao som abafado dos passos afundando na neve.

Halcan, adiantando-se, bateu à porta, mas não houve resposta. Virando-se para o cocheiro, ele perguntou:

— Não há ninguém em casa?

— Ele demora a atender. — Ele ajustou o corpo de Daemis nos braços, o peso tornando-se incômodo. — Tio, sou eu, Lupin! Abra a porta, por favor! É uma emergência!

Após alguns segundos que pareceram uma eternidade, a porta se abriu, rangendo sobre os gonzos enferrujados. De trás dela, surgiu um homem, seu rosto marcado pelo tempo, com rugas que espelhavam as de Halcan. Seus olhos, profundos e cansados, encontraram os do seu sobrinho.

— Lupin? — O velho ergueu o olhar, suas sobrancelhas elevadas pela visita inusitada.

Ao vê-lo, Halcan teve a estranha sensação de já ter encontrado aquele rosto antes.

— Maycon? — perguntou, desacreditado.

Os cabelos lisos e castanhos, preenchidos pelos fios brancos espalhados na raiz de Maycon, quase alcançavam a altura dos ombros. Ele era alto e esguio, mantendo uma aparência vigorosa apesar dos muitos anos vividos.

— É você?! — ele duvidou, seus olhos arregalados, espelhando a mesma surpresa.

— Ajude-o, por favor! — Halcan apontou para Daemis, cujos lábios finos estavam tingidos de um azul preocupante.

— O que estão esperando? Entrem, entrem! Coloque-o na minha cama. O que ele tem? — indagou, virando-se para organizar o espaço.

— Seu corpo está muito frio — respondeu Lupin, suas mãos passeando pelo tórax do jovem deitado na cama, acaso encontrando um objeto amarrado a um cordão envolto de seu pescoço. — Ele… ficará bem? — perguntou ao tio, conferindo o item em particular.

— Veremos. — Atiçou a lenha da lareira. — Vou esquentar a água.

Enquanto Lupin certificava-se de que as roupas de Daemis estavam secas, Halcan notou Raygan ainda parado na pequena escada de entrada, seus olhos hipnotizados pela lua que se erguia no horizonte, onde a luz pálida refletia na alva neve.

— Qual o problema? — perguntou Halcan, tentando quebrar o silêncio.

— É a mesma lua, não importa o lugar — murmurou para si, porém, audível ao velho.

— É uma paisagem bonita, não é?

Mas, ao invés de respondê-lo, Raygan permaneceu em silêncio. Ele ignorou o veterano de guerra, perdido em algum pensamento, enquanto Halcan, ao vê-lo caminhando pela sala, deparou-se com Lupin, que parou diante dele, dizendo:

— Recolherei as malas e levarei os cavalos para a cocheira atrás da cabana. — Observou a expressão preocupada dele. — Ele está bem, só precisa descansar.

Com um pequeno sorriso, Halcan acenou com a cabeça.

Adentrando a residência, Halcan avaliou os móveis da cabana desgastada pelo tempo, porém, resistentes o suficiente para suportar as adversidades do clima intenso. As paredes de madeira eram firmes; móveis limpos, bem como os instrumentos de caça organizados na estante próxima.

— Eu adoraria se você parasse de julgar minha casa.

Ao virar-se, os olhos do general encontraram o rosto do velho conhecido. Ele tinha uma caneca em mãos.

— Leite quente. É bom para esquentar o corpo — ofereceu-lhe.

— Obrigado. E você… está vivo, afinal.

— Muitas coisas aconteceram. — Ele esfregou as mãos uma na outra. — Mas você não mudou. Continua forte e com a mesma expressão séria e idiota daquela época. — Sorriu. — E aí? Quais são as novidades?

— Assim como você, estou velho. Como representante do exército imperial, estou agora a caminho do campo de treinamento em Kanaris. — Halcan mirou os olhos para Daemis, deitado na cama, enquanto Lupin deslizava um pano sobre o rosto dele.

— Ele é seu filho? — Observou a atenção dele para o jovem.

— Não, eu o salvei durante o conflito em Jighal. Seus pais insistiram que eu o levasse comigo, então, de certa maneira, acabei por adotá-lo.

— Jighal… Quem diria que entre as doze vilas, ela seria escolhida — riu.

— A vila foi destruída, contudo, a fronteira do território possui uma ótima vista em comparação com as montanhas de Elfrid. Seria um erro negligênciá-la. Mesmo que eu tenha me posicionado contra o ataque, não pude impedir o ódio de um pai após a perda de um filho. Elard parecia relutante, mas… — Por um momento, Halcan recordou a face de Ahoneu, que, diferente do imperador, revelava uma fúria nunca presenciada por ele. — Não há nada que possa ser feito para reverter essa situação.

— E o pequeno garoto? — Maycon observou a porta de um quarto no fim do corredor. — Ele não aparenta ser filho de um mero plebeu.

— Ele é apenas um pirralho que ainda tem muito a aprender.

— Considerando que ele está numa viagem acompanhado por um dos homens mais renomados do império, diria que ele é filho de um nobre, mas não de um nobre qualquer. Ele deve ter entre dez e treze anos. A maneira como se porta sugere que ele teve uma educação adequada, herdeiro de uma família de títulos, imagino.

Um pequeno sorriso se revelou na face de Halcan ao ver que seu antigo companheiro tinha as melhores deduções e permanecia certeiro em suas análises.

— Suponho que um certo espião ainda trabalhe nesta área.

— Sou apenas um caçador. Este velho estaria errado em dizer que o garoto possui uma estranha semelhança com um certo rei? Se fosse outro bastardo, isso seria um problema em Kanaris.

— Desta vez, você errou. Ele é legítimo, mas não sei o que os garotos farão se descobrirem. Estou apenas seguindo ordens. — Olhou para o fundo da caneca. — Acredito que Elard esteja querendo dar alguma lição nele.

— Pelo menos não é outro bastardo.

Halcan, no mesmo instante, olhou com desdém para ele.

— O quê? É verdade! Nem mesmo os mais humildes habitantes de Giorgya apoiavam a ideia de um bastardo no trono.

— Mudando de assunto… — interferiu Halcan. — Gostaria de saber se você ainda é o barbeiro que conheci há mais de vinte anos.

— Está falando com ele. — Um sorriso desenhou-se nos lábios de Maycon. — Como posso ajudá-lo?

Minutos depois, em um cômodo onde a luz única vinha de uma janela, uma voz disse: 

— Está pronto?

Era Halcan, olhando para as costas do príncipe, sentado em uma cadeira de madeira. Raygan mantinha sua atenção para o astro brilhante no céu, mas, ao ouvir o chamado, levantou-se do assento. Eles andaram pelo estreito corredor e, ao pararem na sala, que continha somente duas cadeiras e uma mesa, Halcan falou:

— Sente-se, por favor.

À entrada da sala, Maycon surgiu, sua silhueta delineada pela luz das lamparinas e da chama da lareira. Em uma mão, segurava uma tesoura; na outra, um espelho para onde se voltavam os olhos do príncipe. 

O vento uivava, reverberando pelas paredes da cabana. Halcan, com os braços cruzados, observava os fios castanhos como mel caírem e se espalharem pelas tábuas do chão. Raygan sentia o pescoço mais leve, enquanto as mãos habilidosas de Maycon, que trabalhava com precisão, firmavam-se pelas madeixas.

— O que você aprontou para viajar ao lado desse velho rabugento? — perguntou Maycon, com a voz suave contrastando com o som da tesoura.

— Por que eu deveria lhe contar? Você é tão velho quanto ele.

Maycon lançou um olhar rápido para Halcan antes de responder:

— Para ser honesto, eu detesto a nobreza. Por mim, todos poderiam morrer. Você não acha isso também? — Ele continuava a aparar as pontas do cabelo.

O general franziu a testa, confuso, com o olhar rígido em Maycon.

— Que tal se concentrar no seu trabalho? — disse Raygan.

— Nossa, você fala como um adulto. Sabia que isso é estranho?

— Não mais do que você, tentando descobrir algo sobre mim.

Maycon, com suas madeixas escuras e olhos claros, percebeu, de alguma forma, que a situação era familiar, evocando uma sensação de nostalgia, como se estivesse conversando com alguém de seu passado.

— Aprendi a observar as pessoas com o tempo. — Ele entregou o espelho a Raygan. — A diferença entre nós é que eu não pude aperfeiçoar o que aprendi.

Raygan ponderou sobre aquelas palavras. “Observar as pessoas”, a frase soou em sua mente. Mas, antes que pudesse refletir sobre o comentário, ele ouviu um som.

O homem cantarolou uma melodia, surpreendentemente desafinada.

Raygan encarou Halcan, que também nada tinha a acrescentar pela ação inusitada. E, com o último fio alcançando a lâmina, Maycon se afastou, admirando seu trabalho. O general deu um passo à frente, colocando a mão no ombro de Raygan, que ao olhar seu reflexo, conferiu o novo corte. A franja estava mais curta; não iria mais atrapalhar a leitura. E as pontas que Thayrin costumava enrolar, desapareceram.

— Está do seu agrado? — perguntou Halcan.

Para Raygan, era apenas um corte. Ainda que ele imaginasse a expressão triste que Thayrin faria ao ver que as amadas madeixas se foram, era uma vantagem.

— Pelo menos, não estou tão parecido com aquele idiota — sussurrou, satisfeito.

— Perdão? — A audição de Halcan continuava sendo de um velho.

— Quando partiremos? — Raygan lançou o espelho sobre a mesa.

— Ao amanhecer.

— Ótimo.

Retirando-se, Raygan caminhou para o quarto enquanto os dois velhos trocavam olhares pela reação indiferente dele.

— É isso? Nem um obrigado? — indagou Maycon.

— Odeia a nobreza? Sério? — Encarou ele.

— Ei, relaxe! Eu só queria ver se ele realmente é filho do Ghaeli.

— E o que descobriu?

— E…, bem, é filho dele — admitiu. — Mas, nessa idade, ele era mais educado. Ele sempre age e fala assim? Que cansativo!


Capítulo novo toda semana!



Comentários