Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 21: Um Fantasma!

GIORGYA

 

Das janelas das casas, as velas apagavam-se ora pelo sopro dos moradores, ora pelo vento frio da noite de inverno. Pelas soturnas ruas, ouvia-se o som dos cascos dos cavalos que puxavam uma carruagem, a única a explorar as ruas desertas no centro da cidade. A neblina rastejava, envolvia os telhados e estendia-se pelas vielas assustadoramente desertas. Entre os comércios fechados, apenas um emitia uma luz. Um pequeno fragmento da chama de uma lamparina acesa chamou a atenção do cocheiro, que ao estacionar o veículo na entrada do local, abriu a porta para o velho cansado.

― Obrigado ― agradeceu Halcan. ― Alteza, chegamos.

Ao dar um passo para fora da carruagem, Raygan avaliou a fachada do que parecia ser uma estalagem. Ao redor, não havia uma alma viva. As ruas eram iluminadas apenas pelo brilho da lua e pelas pequenas chamas à luz de velas que oscilavam a cada brisa fria, balançando os fios de seus cabelos emaranhados.

― Este é o lugar? ― questionou Raygan ao general, elevando levemente o lábio superior com desgosto. ― Prefiro dormir na carruagem, é mais limpa que este chiqueiro.

― Pelo menos olhe ao redor enquanto eu verifico nossas reservas ― disse o velho, sorrindo. ― Garanto que a cama do quarto será bem mais confortável.

― Argh! ― Raygan rosnou, revirando os olhos.

Halcan acenou para o cocheiro, um aviso para manter seus olhos bem abertos para o jovem rebelde. Porém, quando o homem olhou para o lado, Raygan já havia desaparecido.

O cocheiro olhou para a direita, para a esquerda e até debaixo da carruagem, para ter certeza que não estava louco, contudo, ele não estava mais lá. ― Raygan? ― sussurrou. ― Jovem príncipe?

Enquanto isso, no beco próximo à estalagem, Raygan soltou o ar pela boca, vendo seu hálito formar uma pequena nuvem. Ele conferiu a palma de suas mãos, vermelhas pelo frio, e seus dedos finos, que pareciam congelar a cada segundo. Era a mesma sensação de quando estava no palácio. Não importava se estava em Ariuch ou em outra cidade, o clima era o mesmo: frio e indiferente. Como sempre, estava sozinho, confortável em sua própria solidão.

Ao examinar a entrada do beco escuro, Raygan apertou o jaleco e esfregou as mãos na roupa simples e esfarrapada, típica de um plebeu, algo que nem mesmo no convento ele foi obrigado a vestir.

― Hm ― bufou, um pequeno sorriso formando-se em seus lábios ao conferir a aspereza do tecido, ao tempo que frio penetrava na sua pele delicada.

De qualquer modo, quando Raygan pensou em retornar para a carruagem, ouviu o som metálico de algo caindo no chão. Aproximando-se cautelosamente da origem do barulho, ele viu um gato com olhos brilhantes, que fugiu de sua presença após derrubar uma barra de metal. Pela reação do animal, Raygan percebeu que estava diante de um inimigo comum a todos os seres: o medo instintivo dos humanos.

― É melhor você ter medo ― disse Raygan, confiante em sua postura intimidante.

Mas o felino não estava sozinho.

― Medo de quem? ― perguntou uma voz do escuro, uma figura surgindo como uma aparição.

― AHHH!!!!

O corpo de Raygan deu um sobressalto, seu pé direito escorregou em um jornal quando tentou correr. Por um único segundo, contra tudo o que mais questionava, ele acreditou em fantasmas.

― Merda! ― Raygan rastejou pelo chão, afastando-se do beco sombrio.

― D-Desculpa, eu não quis assustar você. ― O jovem, que se aproximava de Raygan, caiu de joelhos, seu corpo frágil tremendo com o frio da noite.

Raygan firmou as mãos na neve caída no chão, apanhando-a e lançando-a no rosto do garoto.

― Saia de perto, seu maluco! 

O príncipe levantou-se rapidamente, enraivecido, ao escorregar de maneira tão vergonhosa. Seus olhos ardiam de fúria e, num ato repentino, ele chutou um amontoado de neve.

― Porra!

Ele repousou a mão na testa, os fios de cabelo enroscando-se em seus dedos, como se tentassem consolar sua frustração.

A figura no beco revelou-se apenas um jovem, de corpo saudável, mas de aparência miserável. Seu rosto estava sujo, manchado de algo que parecia carvão, e abaixo de um dos olhos havia um pequeno corte, como se uma unha tivesse alcançado seu rosto de raspão. A luz da lua revelou traços cansados e um olhar desesperado. Raygan o observou com desdém, mas a curiosidade acabou por vencê-lo.

― O que está fazendo aqui? ― perguntou Raygan, a voz dura e cortante.

― Eu… ― O rapaz tentou responder, mas suas palavras tornaram-se quase inaudíveis. ― … não sinto minhas pernas ― murmurou, caindo de bruços na neve.

― Claro que não! Olhe para suas roupas! ― alfinetou. ― Se quer morrer, morra sozinho!

De repente, Raygan ouviu passos apressados afundando na neve.

― Alteza! ― falou o cocheiro, correndo para o local, ofegante. ― Ah! Graças a Deus! Você não sumiu! ― Ele apoiou as mãos nos joelhos. ― Halcan ia me matar se… ― O homem notou a presença de mais um garoto, este caído com o corpo inerte no chão. ― Ele está morto?

― Não, mas poderia.

Raygan limpou a neve da parte de trás de suas calças, com a humilhação ainda fresca em sua mente. ― Vamos, preciso de um banho quente.

― E quanto a ele? ― Apontou para o rapaz desmaiado.

― Ele não é problema meu ― disse, apático, arrumando a franja que balançava ao vento. ― Se quer ajudar, faça isso sozinho.

Próximo à carruagem estacionada, Halcan percebeu a movimentação à entrada do beco. Com os passos pesados, junto da postura intimidante, ele indagou:

― Que furdúncio é esse? Ouvi um grito, foi o seu, Alteza? ― Ele lançou um olhar mortal para o homem. ― O que eu lhe mandei fazer? ― inquiriu ao cocheiro.

― Desculpe, senhor. Mas veja, há mais um garoto. 

Halcan voltou seu olhar para baixo e, ao fitar o garoto atentamente, sua expressão séria esvaiu-se de seu semblante rígido. Os cabelos encaracolados, o tom de pele e o corpo eram características similares de um conhecido pelo qual ele detinha empatia. No mesmo instante, Halcan ajoelhou-se e virou o rapaz, deparando-se com o rosto gentil tingido pela sujeira e neve, seu corpo gelado, e a respiração lenta, com dificuldade.

― Daemis…? ― expôs, a voz rompendo-se em um sussurro rouco.

― Quem? ― questionou Raygan, a linha de sua testa ainda marcada pela raiva.

Halcan retirou seu manto rapidamente e apoiou Daemis em seus braços. Ele conferiu o rosto pálido. O corpo dele estava frio, prestes a congelar. Halcan moveu o cabelo de Daemis, tocando em sua testa, como se pudesse transferir algum calor.

― Por que está aqui?

Uma ruga de preocupação cruzou o rosto do velho, uma reação que não escapou do olhar gélido de Raygan. Ele observou a postura de Halcan, notando os ombros tensos e os olhos fixos em Daemis.

― Senhor… ele é um parente? ― perguntou o cocheiro.

― Não ― respondeu Halcan, firme. ― Venha, ajude-me a carregá-lo.

― Coloque-o em minhas costas.

Raygan, todavia, manteve seus olhos neles.

― Se ele não é nada para você, por que se importa?

O velho o fitou e, em seguida, respirou fundo, o ar saindo de sua respiração como vapor. Suas marcas de expressão permaneciam atentas no rosto do menino, que parecia encontrar certa satisfação em validar os outros conforme julgasse aceitável. Halcan, embora soubesse pouco sobre o passado de Raygan no convento, considerava tal atitude algo incomum para uma criança.

Por um instante, a voz serena do cocheiro, que havia soado horas antes de chegarem ao destino, ressoou em seus pensamentos. Raygan, adormecido no assento da carruagem, estava envolto em um sono tranquilo. E Halcan, sentado ao lado do homem no topo do veículo, o ouvia com atenção.

"O jovem príncipe sempre foi um menino reservado. Algumas vezes, eu o encontrava escondido debaixo da mesa, na biblioteca, vestido com aquela roupa e o véu que as noviças costumam usar. ― Ele apertou a guia dos animais. ― Eu… não consegui protegê-lo. Sei que falhei! Raygan odiava tudo aquilo. Ele odiava todas elas. Nas raras ocasiões em que a princesa o visitava, ele a rejeitava. Naquela época, Raygan evitava o contato com as meninas. ― Olhou para Halcan. ― Acredito que as curtas visitas da rainha ajudaram o príncipe a ser mais aberto à ideia dessa viagem."

Halcan observou o rosto de Raygan, do menino que desejava ser mais forte.

— Porque ele é apenas um garoto, assim como Vossa Alteza — respondeu o velho.

E antes que Raygan pudesse pensar em algo para retrucá-lo, Halcan falou, com a voz urgente ao cocheiro:

― Vamos entrar!

Na entrada do estabelecimento, Raygan descansou o corpo na lateral da porta, atento à conversa do velho general.

— Não há quartos? Você está brincando comigo? Alguns minutos atrás, confirmaste que estava tudo certo! — vociferou. — As reservas foram feitas há uma semana!

— Escute, senhor… Halcan, não é? — O atendente, um homem de fala rude, olhou com desdém para Daemis que estava desacordado sobre os ombros do cocheiro. — Vou repetir, não há quartos disponíveis. Houve uma grande comoção na cidade. Um nobre foi assassinado por escravos. As pessoas estão com medo de sair, preferindo partir assim que amanhecer.

— Que tipo de estabelecimento é este? Pagarei mais que o dobro, se for preciso, mas este garoto precisa de um quarto! — Halcan atirou uma bolsa de moedas de prata sobre o balcão.

— Tentador. — O homem lançou um olhar faminto para o dinheiro. — Agradeço a oferta, mas terão que encontrar outro lugar para cuidar do seu criado. Foi alguém como ele que tirou a vida de um inocente. Não consigo imaginar quais comentários surgirão se eu concordar com essa ideia.

Num ímpeto de fúria, Halcan agarrou rispidamente a gola da camisa do homem.

— Ele não é um criado! — afirmou, sua voz rouca e ameaçadora, reverberando no ambiente.

— Espere, espere! — O homem paralisou, sentindo seus ossos tremer. — Pense bem no que você vai fazer, forasteiro! — Ele firmou as mãos nos pulsos fortes do velho.

Raygan, com os braços cruzados sobre o peito, observava tudo em silêncio. Ele manteve os olhos sonolentos fixos no general, enquanto o cocheiro aguardava, nervoso. Os segundos passavam depressa e a respiração de Daemis, sentida no pescoço do homem, tornava-se mais pesada.

— S-Senhor, conheço alguém que pode nos ajudar — comentou o cocheiro. — Mas, é um pouco longe da cidade.

Após uma última encarada, Halcan soltou a camisa do homem. Ele recolheu a bolsa de moedas. — Apresse-se! — ordenou, contendo a raiva ao passar pela porta.


Capítulo novo toda semana!



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