Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 20: Livros Empoeirados

ARIUCH, OLPHEIA

 

Nadye observou Thayrin por alguns segundos. A expressão da princesa permanecia indiferente, pois não desejava mais discutir os eventos daquele dia.

— Seu cabelo está pronto, Alteza.

— Você não precisa fazer o trabalho das criadas — retrucou Thayrin. — Você é minha dama de companhia.

Nadye esboçou um sorriso suave, o carinho em seus olhos refletindo o afeto pela princesa.

— Eu não posso oferecer somente minha companhia. A princesa protegeu meu nome da língua ferina dos nobres da corte; isso é o mínimo que posso fazer.

— Não poderia permitir que você fosse alvo daquelas víboras, apenas por sua aparência.

Nadye riu baixinho, um som que encheu o quarto com um calor inesperado.

— Sardentos sempre são associados a transmissores de sarnas. Um pouco irônico, considerando que eles curvam suas cabeças perante lorde Baylam.

O nome fez Thayrin erguer o olhar para o espelho, onde seus olhos encontraram os de Nadye refletidos na superfície polida.

— Baylam? — ela perguntou, com um toque de curiosidade.

— Senhor Henryk Baylam, o próximo sucessor do ducado de Britham. A princesa dançou com ele.

Thayrin soltou um suspiro, o cansaço impregnando suas palavras.

— Sim, eu sei quem ele é. Ele é um homem notável. — Ela esfregou o creme nas mãos, espalhando-o pelos dedos até os cotovelos. — Uma pena que sua educação seja um tanto limitada.

— Ele fez algo? — Nadye virou-se para encarar diretamente os olhos da princesa.

— Ele não fez nada, Nadye. Mas, devo admitir que, em partes, fui um pouco… indelicada. — Ela se levantou da cadeira, caminhando até a beirada da cama. — Diga-me, o que você sabe sobre ele?

— Não sei muito da sua relação com o palácio, mas ele era amigo do príncipe falecido.

Thayrin a fitou, descrente. Em suas memórias, vagamente ela se recordava da expressão como um borrão de Leion. Ela se recordava do sorriso dele, presente mesmo sob os olhares desprezíveis das velhas. Sentadas em rodas nas salas abertas do palácio, elas abanavam seus leques sempre que os irmãos passeavam juntos.

— Mesmo se ele tivesse muitos amigos, como eu poderia esquecer alguém tão próximo do meu irmão? — Uma sensação de desconforto apertou o peito.

— Isso é tudo que sei — disse Nadye, imóvel diante dela enquanto carregava uma toalha que pendia em suas mãos. — Está tudo bem, Alteza?

— Sim, sim… Feche a janela e vá descansar.

Ao vê-la partir, Thayrin deitou-se na cama, abraçando o travesseiro. Com um único sopro, apagou as velas, mergulhando o quarto em escuridão. De repente, uma voz distante surgiu em seus pensamentos, suave como um sussurro: “Estarei ao seu lado, sempre, para protegê-la.” 

Ela apertou os olhos. De um lado para o outro se virava, e mesmo assim, dormir tornou-se uma tarefa difícil. A ausência de Raygan no palácio era incômoda, trazendo lembranças de sua infância, quando ele ainda morava no convento. Novamente, ela estava sozinha, fitando a janela.

Diferente das lembranças de Leion, a princesa se recordava de um menino de cabelos castanhos como mel. Sua figura mais nova observava o garoto sentado na entrada de duas portas, encarando seus adornos, esperando um sinal, um movimento.

Do cômodo, um homem dirigiu seu olhar para baixo; porém, ignorou o menino que se levantou rapidamente para segui-lo. Ele foi repreendido pelo homem de cabelos ruivos como chamas, que carregava um sorriso no rosto, apesar de seus olhos não mostrarem tanta empatia.

Incapaz de dormir, Thayrin erigiu da cama. Ela tocou na maçaneta da porta, abriu-a e constatou a ausência dos guardas. Era a oportunidade perfeita para caminhar pelo espaço, iluminado apenas por uma lamparina ao final do corredor.

No jardim, o vento uivava, reverberando pelas frestas das janelas. Thayrin seguiu até um cômodo que seu irmão costumava visitar com frequência. Estava desacompanhada; era um milagre que os guardas estivessem alocados em outro lugar. Então, ela adentrou a biblioteca. A princesa avaliou os livros das imponentes prateleiras, todos organizados da maneira que Raygan gostava.

Um pequeno sorriso formou-se no rosto, lembrando-se de sua infância, quando era uma menininha que corria para entregar um livro ao irmão de cabelos como linho puro.

Embora fosse uma memória que aquecia seu coração, o esforço para recordar da voz e rosto trouxe uma tristeza palpável ao delicado semblante de Thayrin. Suas bochechas enrubesceram pelo frio, que permeava o ar do palácio. Deslizando a mão por uma das mesas, ela observou o espaço onde Raygan costumava evitar os estudos. Sua mente estava presa entre as sombras do passado, das incertezas do presente e do medo de esquecê-lo.

Porém, sem qualquer aviso, uma voz distante soou, cortando o silêncio.

— Princesa…?

O corpo de Thayrin tremeu e ela rapidamente lançou um olhar por sobre o ombro, encontrando as íris douradas feito ouro do homem, cuja expressão espelhava sua própria surpresa; o herdeiro do Ducado de Britham, com quem ela havia dançado. Seus olhos estavam levemente arregalados; contudo, ela se abstinha de qualquer reação que pudesse revelar sua inquietação ao encontrá-lo de maneira tão inesperada.

— O que está fazendo aqui? — As palavras dela eram afiadas, carregadas de desconfiança.

— Eu é que deveria fazer essa pergunta — respondeu ele, desviando o olhar na direção do chão de madeira refinada, para evitar a visão quase etérea da camisola que ela vestia.

A peça era fina, quase transparente, delicada para dormir e não para ser exibida. Sentindo o rubor subir-lhe ao rosto, ele tentou manter a compostura. E Thayrin, ao perceber sua conduta, estendeu a mão sobre o peito, dizendo:

— Eu só estava de passagem! — Seus cabelos cheios e compridos moveram-se enquanto ela caminhava apressada para a entrada.

Mas antes que pudesse escapar, Henryk, movido pelo impulso de arrependimento, segurou-lhe o braço com gentileza.

— Espere! — Seus ouvidos, atentos, captaram um som familiar.

— Solte-me! — Ela o repeliu. — Quem você pensa que é para tocar em mim? — A raiva cintilava em sua voz.

— Estou tentando ajudar — sussurrou ele, aproximando-se da porta, erguendo o dedo indicador à frente da boca num ato singelo para que ela ficasse em silêncio enquanto o metal das armaduras ecoava atrás da porta.

— Por que você está aqui? — ela perguntou, com o tom baixo. — Por que não está no ducado?

— Sou membro do Conselho, Alteza. — Ele espiou pela fresta, o som metálico se afastava lentamente. — Estou no fim do meu expediente. E por que está aqui, vestida assim?

Thayrin moveu as longas madeixas para cobrir os ombros, na tentativa de esconder o busto do olhar perscrutador de Henryk.

— Isso não lhe diz respeito! Eu… só estava procurando algo para ler!

Henryk arqueou uma sobrancelha num curto suspiro. Ainda que ela não tivesse a intenção de envolvê-lo em um escândalo, o jovem cedeu a reação passiva dela. De qualquer maneira, ela estava refém de um encontro infeliz. Assim, ele dirigiu-se ao fundo da biblioteca, que estava imersa na escuridão.

— Há um livro que o Príncipe Leion costumava ler, sobre um reino mágico. — Caminhou até a estante, os dedos percorrendo as lombadas das obras até encontrar a adequada. — Uma ilha onde a magia existe, povoada por elfos, ogros, humanos e outras criaturas. Contei essa história ao Príncipe Raygan; talvez seja o momento de contá-la a você. — Ele retirou o livro e o estendeu para ela.

— Leion nunca me contou sobre essa história, então por que eu deveria dar ouvidos a você? — questionou Thayrin, lembrando-se das palavras de Nadye sobre a relação dele e seu irmão.

— Não estou pedindo que acredite em mim. Estou oferecendo uma boa leitura para aproveitar as horas insones da noite.

— Você serve ao palácio — declarou, sua voz cortante como uma lâmina. — Como posso saber que é confiável, e não é mais um dos nobres como estes da corte?

Henryk franziu o cenho.

— É apenas uma história! Você acredita que eu, com essa aparência, teria alguma relevância para os comentários superficiais que circulam pelos corredores do palácio? — Ele lançou um olhar rápido aos cachos rebeldes e cheios, que caíam sobre os pequenos ombros. — Não sou igual a eles e não preciso escutar o que falam sobre mim. E você não deveria estar aqui, Alteza — alertou, seriamente.

— Sua preocupação é o menor dos meus problemas — retrucou Thayrin, sua voz fria como o vento. — Eu não preciso do seu livro, assim como meu irmão não precisava de você. — Ela se moveu com a graça de um felino, que conhecia o seu território. — E quaisquer que sejam suas intenções ao dirigir-se a mim com esta intimidade, lembre-se de que, num estalar de dedos, posso transformar sua vida em um inferno.

Contudo, alheio à evidente ameaça, Henryk, sem desviar o olhar, perguntou:

— Posso saber por qual motivo Vossa Alteza me trata com tanto desprezo? Antes de ajudá-la com o colar, nunca me senti como se estivesse em um campo de batalha. — Ele cerrou os punhos. — Eu, por um grande infortúnio e descuido de minha parte, acabei por ofendê-la?

Thayrin permaneceu em silêncio por um momento, os olhos fixos em Henryk, avaliando-o. A raiva em seu peito vacilou, mas não se extinguiu.

— Suas palavras não têm importância para mim. Como princesa, posso escolher quem merece minha companhia e cortesia.

Henryk apertou os lábios. Ele se afastou, recuando um passo e inclinando a cabeça em um gesto de reverência ao perceber que, ao aproximar-se, seria como arriscar o pescoço perto das garras afiadas de uma gata selvagem.

— Como desejar, Alteza. — Ele estendeu o livro outra vez. — Mas, ao menos, considere isto um primeiro passo para fazer-me alguém digno de oferecer-lhe uma boa noite.

Thayrin encarou o livro, hesitando. Ela notou os pequenos sinais espalhados pelas bochechas dele, e os fios de cabelo perfeitamente alinhados, que brilhavam como uma pedra cornalina sob o luar. Finalmente, após alguns segundos ponderando os detalhes que realçavam a aparência admirável, as mãos finas e delicadas da princesa seguraram o volume pesado.

— Você também acredita que Olpheia está perdendo por culpa do meu pai?

Henryk, confuso com a pergunta repentina, defendeu-se: 

— Nunca proferi tais palavras.

Por um instante, Thayrin experimentou um profundo alívio, mesmo sem compreender a razão do seu corpo reagir a um comentário que qualquer pessoa poderia dizer para alcançar o que deseja.

— Eu não preciso enviar espiões para saber o que a corte, os nobres, ou plebeus pensam sobre minha família. — Thayrin ergueu os olhos para ele, decididos, mas tingidos por uma tristeza discreta que não escapou à percepção dele. — Meu nascimento, assim como de Leion, foi um erro. Se não fosse por Raygan… a linhagem Ehnov estaria arruinada.

Num lampejo, Henryk ouviu a voz gentil, perdida em memórias antigas. De um amigo que jamais consideraria esquecer.

— Você está enganada — disse gentilmente. — A princesa é uma jovem habilidosa e não é coincidência que Sua Majestade planejou sua estreia na alta sociedade. Existem diversas formas de honrar sua família, Alteza.

Um leve sorriso de canto surgiu nos lábios dela.

— Senhor Baylam é ótimo conselheiro, mas eu o aconselho a expressar suas opiniões somente quando solicitado.

— Às suas ordens, princesa. — Henryk curvou levemente a cabeça, seguido de um sorriso discreto.

Ao vê-la sair, carregando consigo o livro, Henryk apoiou as mãos na refinada madeira, soltando um suspiro pesado. A biblioteca mergulhou em um silêncio quase reverente, e inclinando a cabeça para trás, revelou o pomo de adão em seu pescoço relaxado. O jovem observou a escuridão além da janela do lugar, sentindo a calmaria da fria brisa da noite acariciar o seu rosto.


 

Capítulo novo toda semana!

Princesa Thayrin

Ilustração: Rhainah



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