Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 18: Forasteiros

GIORGYA

 

Um arrepio percorreu a espinha de Daemis. Ele não entendia a razão de receber tantas encaradas, e tão indiscretas. E ao mirar os olhos adiante, observou Thomaz, que conversava animadamente com os outros dois amigos, suas vozes com uma mescla de entusiasmo.

— Thomaz…, eu gostaria de voltar — falou Daemis, quase em um sussurro.

Thomaz arqueou uma sobrancelha, questionando-o:

— Por quê?

— Eu poderia ser mais útil ajudando o senhor da carroça com a roda… — sugeriu, buscando uma desculpa para se afastar.

O grupo virou uma esquina, seguindo o homem, quando este, com sua atenção voltada para Daemis, os interrompeu antes que pudessem avançar.

— Escute aqui, garoto. — Ele segurou o ombro de Daemis com firmeza. — Este lugar não é para vocês.

— Por que diz isso? — Thomaz interveio, colocando-se à frente de Daemis.

— Esta parte é o centro da cidade, onde os mais ricos vivem. — Ele voltou seu olhar para Daemis, com uma expressão que misturava desdém e advertência. — Alguns nobres desta cidade enxergam você como uma mercadoria, rapaz. Não se importariam em negociá-lo em troca de algumas moedas. Irei acompanhá-los como prometido, mas não poderei escoltá-los de volta — ele completou, sua postura intimidante, porém preocupada.

— Não é estranho você se mostrar preocupado, mas não agir para nos proteger após esse discurso pouco intimidante? — ironizou Thomaz, em alerta para as intenções dele.

Num suspiro insatisfeito, o homem levantou a manga da camisa e exibiu uma marca, tipicamente encontrada em cavalos, mas esta estava cravada em sua própria pele clara, na sua carne. A marca se assemelhava a um brasão, um símbolo desconhecido, mas mantinha sua função, designando para qual mestre ele servia.

— Minha vida já não me pertence mais. — Ele lançou outro olhar para Daemis. — Nem sempre as regras funcionam como deveriam, e a vida não é justa para gente como nós, especialmente para você, garoto.

Daemis, mesmo que estivesse alheio sobre o comentário, reconhecia que era uma verdade incontestável. Pessoas como ele eram valiosas demais para vagarem livremente. E apesar de ser uma prática abolida, algumas regiões, estas mais reclusas da alta sociedade, não se importavam.

— Nem mesmo o casamento da segunda imperatriz foi suficiente para eliminar a divisão entre as pessoas de cor — o homem completou, retomando a caminhada. — É melhor se apressarem.

Daemis sentiu a tensão apertar seu coração como um punho fechado. Os olhos dos transeuntes pareciam perfurá-lo. Ele sabia que era um intruso, um estrangeiro cujo valor poderia ser medido em ouro. A ideia de ser mercadoria, de ser negociado como um simples bem, enchia-o de um temor silencioso.

Ao se aproximarem do centro, as ruas, as fachadas e as vestes ricas dos habitantes indicavam um território reservado para a elite, onde nem suas botas eram merecedoras de pisarem no chão de tijolos mais limpos.

— Sabe, Dae, eles podem se esbanjar de dinheiro e poder— iniciou Thomaz, sem olhar para trás. —, mas nunca terão o que nós temos.

— E o que temos? — perguntou Daemis, seu corpo retraído, evitando qualquer movimento que chamasse atenção.

— Coragem — respondeu Thomaz. — Fomos escolhidos para lutar pelo império. Não podemos deixar que eles nos façam esquecer isso.

— Você não tem medo do que a coragem pode lhe levar a fazer? — Fitou o rosto dele.

— Que pergunta idiota. — Thomaz soltou uma curta risada. — Se eu tivesse medo, não estaria aqui — disse, afastando-se de Daemis e caminhando ao lado da dupla brincalhona à frente.

Daemis observava os meninos unidos; melhores amigos, enquanto ele, à parte, sabia que não fazia parte daquela amizade. E após bons minutos de caminhada, o grupo chegou a um mercado movimentado, onde os cheiros de frutas frescas e pães recém-assados misturavam-se no ar. O homem parou, virando-se para eles com um olhar severo.

— Comprem o que precisam e sejam rápidos!

Durante os segundos que Thomaz e os amigos se moviam entre as barracas, Daemis permaneceu próximo, inerte ao sentir o peso de cada olhar que recaía sobre ele. Ao cumprir com sua promessa, o homem acenou para o quarteto, seus olhos focados no rapaz que, sem muito esforço, chamava atenção.

Ele avaliou os cachos que adornavam sua cabeça, o olhar ingênuo, brilhante como esmeraldas, e, além de todos os aspectos que realçavam sua aparência, apreciou seu coração gentil. Mesmo sendo apenas um instrumento nas mãos dos infelizes de seu lar, Daemis ainda sorriu, acenando para ele ao se despedir.

Assim, a caminhada prosseguiu. Enquanto atravessavam o aglomerado de pessoas, Thomaz pegou uma sacola de pães e entregou duas moedas de prata para uma velha que, ao notar o brasão esculpido, cuspiu no chão.

Daemis observou a reação da velha de face mal-humorada, bem como o homem havia alertado. Giorgya não era um lugar acolhedor para simples estrangeiros. No entanto, o jovem foi atraído pelo ambiente ao seu redor. O aroma de temperos e uma sopa fervendo ao ar livre foram suficientes para provocar sua barriga, indeciso sobre qual direção seguir.

De um lado e do outro, pessoas formavam filas para comprar a comida quente, perfeita para o clima frio, como se soubessem exatamente o que escolher para aquela estação. E ao passarem perto da fonte ― construída ao centro da praça ―, os dois recrutas avistaram um grupo de homens carregando tijolos para a construção de uma pequena capela, parte de uma congregação local.

Daemis notou que não eram apenas trabalhadores comuns. Entre os homens, um deles, com a pele semelhante à dele, foi encarado pelo chefe de vestes refinadas, descontente com a aparente falta de esforço, e que carregava, na mão direita, um chicote.

— Não olhe muito — murmurou Thomaz. — Essas pessoas adoram nos intimidar. Acham que são superiores só porque usam roupas de veludo.

Daemis ficou pensativo, então perguntou:

— Você nasceu em Olpheia?

— Sim, mas acredito que você não — Thomaz respondeu, sorrindo.

— Eu disse algo errado?

— Não é bem isso. Quem nasce em Olpheia tem o hábito de dizer a letra e como a mais forte. Já os estrangeiros tendem a pronunciar como se houvesse um i no lugar do e.

— Mas o general sempre fala dessa maneira.

— Isso não é importante. Essa era a sua dúvida? — Thomaz indagou.

— Aquele homem mencionou algo sobre a segunda imperatriz. Quem foi ela?

Thomaz conferiu os olhos de curiosidade de Daemis. Ele parecia muito interessado, algo que Thomaz, de certo modo, admirou.

— Hm... Não sei ao certo. Dizem que ela era louca. Ela tinha a pele como a cor do bronze. As pessoas não comentam sobre ela. Todas as histórias que, pelo menos meu pai contava, dizem que ela foi responsável pela morte do primeiro príncipe, irmão do atual imperador. Depois disso, foi confinada em uma torre. Alguns dias depois, ela se enforcou — Thomaz explicou, ambos caminhando lado a lado.

Absorto em seus pensamentos, Daemis fitou o chão. Contudo, inesperadamente, os outros dois garotos se aproximaram. Um deles, ofegante, correu até eles, dizendo:

— Vocês estão perdendo a maior briga que eu já vi! — gritou, com os olhos arregalados de excitação, apontando para o tumulto que se formava no centro da cidade.

— Uma briga? — Thomaz ergueu a sobrancelha, a curiosidade surgindo em seu rosto. — Ei! Seu idiota, precisamos voltar!

Mas o garoto não deu ouvidos. Ele segurou firme o braço de Daemis.

— Vamos, vamos! — insistiu, sem diminuir o passo.

Thomaz, vendo Daemis ser arrastado contra a sua vontade, soltou um suspiro paciente.

— Me esperem! — exclamou, apressando-se para alcançá-los, enquanto a agitação na praça aumentava a cada segundo

Thomaz segurou firme a sacola enquanto seguia os amigos até o centro. Lá, de surpresa, presenciou um homem com a pele mais escura que a de Daemis, tomado por uma ira descontrolada, pegar uma pedra e lançá-la diversas vezes contra o rosto do homem que tinha poder sobre ele.

O centro estava em comoção. Daemis viu o homem, tomado por uma raiva descomunal, agir como uma fera incontrolável sobre o corpo sem vida no chão. Ele gritava, partindo a pedra contra o rosto ensanguentado, a poça vermelha os envolvendo a cada golpe. A pele desfigurada  do cadáver era o menor dos problemas para os soldados que tentavam contê-lo.

Daemis percebeu, pelas expressões dos garotos e de Thomaz, pareciam animados para o que estava por vir.

O homem, servo daquele que perecera em um ato de fúria, estava agora estirado no chão, sendo espancado por chutes e socos. Eles prenderam seus braços como um porco, e suas mãos foram cortadas, lentamente. Ele agonizou, seus gritos audíveis como os nervos sendo rasgados para além das paredes dos casarões, onde os mais ricos, com sorrisos estampados nos rostos, admiravam de camarote.

Daemis sentiu o estômago revirar; seus olhos lacrimejando assim que um dos guardas traspassou a espada no corpo do homem diante de seus companheiros, que somente puderem desviar o olhar e lamentar.

― A festa acabou! ― disse o guarda, cuspindo no cadáver.

Daemis estava pálido, o suor escorrendo pela testa. Apesar disso, um dos garotos, com a face calma, comentou:

― É por isso que pessoas como você não podem ser livres. Vocês são imprevisíveis, fortes e perigosos ― falou, fitando Daemis com desdém. ― Pelo que disseram, aquele senhor brincou que tomaria a mulher e a filha desse bastardo. E veja o que aconteceu.

― Você acredita que ele deveria ter ficado parado e ouvir que um velho molestaria a família dele? ― indagou Daemis, sua voz falhando ao sentir um frio na barriga.

No entanto, pelas expressões indiferentes de seus companheiros, seu comentário fora inadequado. Ele olhou para Thomaz, mas este não parecia inclinado a concordar.

― E você não considerou que ambos tinham famílias? Independente de quem estava certo ou errado, os dois perderam ― expôs, seriamente.

― E-eu não sei.

De repente, um dos homens, também escravo como seu companheiro morto, correu pelas pilhas de pedras. Ele pegou uma, entre as de diversos tamanhos disponíveis, lançando-a na cabeça de um soldado que estava de costas. Assim, uma confusão se instalou entre os moradores. Aqueles que eram escravizados, tratados como animais à mercê de seus senhores, atacaram os homens, impossibilitando-os de reagir, e impedindo-os de fugir.


Capítulo novo toda semana!



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