Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 16: Deveres de uma Rainha

ARIUCH

CAPITAL DE OLPHEIA

 

Não havia uma alma viva pelas ruas de Ariuch, absorvidas em uma quietude intensa e gélida. A neve alva cobria as calçadas, os telhados dos comércios e os casarões da capital se escondiam sob mantos brancos, como se um extenso cobertor de lã pura houvesse sido lançado sobre a cidade. As luzes das residências cintilavam na noite fria, refletindo o calor das chamas das lareiras, aquecendo tanto os lares nobres quanto as humildes moradias, onde o frio era afugentado pelas mãos de uma menina.

Uma criada.

Seus cabelos volumosos espalhavam-se pelo travesseiro, enquanto o cobertor cobria metade de seu rosto, deixando à mostra seus olhos distintos: um castanho profundo como o carvalho e o outro brilhando como uma safira lapidada. Seu olhar fixava-se na chama que dançava, lançando sombras suaves pelo quarto escassamente iluminado.

Do lado de fora, no jardim do palácio, a friagem do inverno mantinha os pássaros recolhidos em seus ninhos, suas penas salpicadas de flocos de neve. No interior do palácio, Elard observava o céu noturno por meio de uma janela embaçada pelo gelo, um copo repousando em seus dedos adornados com anéis. Era vinho ― uma bebida à qual seu organismo já estava habituado. Inerte, observava a neve cair lentamente. A mesma vista solitária que Saône, sentada à beira da cama, admirava antes que uma criada, prostrada diante dela, interrompesse seus pensamentos:

― Sua majestade está à espera.

Seus cabelos caíam frente do ombro, dirigindo-se ao encontro do seu esposo. Assim, ela caminhou pelo corredor, acompanhada por duas criadas que a deixaram à porta do aposento real. Os guardas aguardavam, um deles inclinando a cabeça em prontidão à sua soberana, enquanto o outro permanecia indiferente, estático como uma estátua.

Saône, porém, sorriu para o guarda que, com uma reverência discreta, permitiu sua passagem.

― Obrigada, Syfer ― ela falou com um pequeno sorriso.

O som da porta fez Elard se virar, interrompendo seus pensamentos. Ali, emoldurada pela luz bruxuleante do corredor, estava sua esposa, imóvel na entrada que lentamente se fechava atrás dela. Ela trajava uma longa camisola que lhe caía até os pés, seus cabelos soltos descendo como ondas agitadas pelo peito. Sua postura era impecável, a de uma verdadeira rainha, como fora ensinada desde a juventude.

― Majestade. ― Ela curvou a cabeça, reverenciando-o com uma graciosidade que parecia ensaiada.

― Sente-se ― disse Elard, esvaziando o restante do vinho no copo com um movimento fluido.

Como ordenado, Saône moveu-se. Seus passos ressoaram delicados pelo chão polido até alcançar a poltrona acolchoada. Sentada, ela aguardava novas instruções, mas seus olhos, inevitavelmente, se voltaram para o esposo. Elard vestia uma camisa branca. As mangas estavam levantadas pouco abaixo dos cotovelos, e a calça ajustada, a qual ele tocou ― de semblante distraído ―, nos botões do quadril, fazendo-a desviar o olhar ao constatar que ele notou seu interesse inoportuno.

― Não está com frio? ― ele perguntou, colocando o copo vazio na mesa próximo da garrafa de vinho pela metade.

― Não ― respondeu Saône, sua voz soando tranquila. ― O quarto está em uma temperatura agradável. ― Suas mãos deslizaram pelo tecido do móvel, sentindo a textura macia sob seus dedos.

A lareira era a única fonte de luz e calor, as sombras inquietas oscilando sobre seus corpos. O cômodo, embora desprovido de ornamentos grandiosos, exalava uma aura de serenidade, e o crepitar do fogo preenchia o silêncio. Imponentes prateleiras repletas de livros estendiam-se até o teto, onde anjos com trombetas pintados em afrescos pareciam observá-los.

― Já faz um tempo ― comentou Elard, seus olhos buscando os dela.

― O quê? ― ela questionou, sua atenção fixa nos detalhes do chão.

Elard, com passos lentos e deliberados, aproximou-se dela. Seus movimentos eram determinados, quase etéreos, enquanto se inclinava ligeiramente perante a sua rainha.

― Você e Thayrin… ― ele murmurou, deslizando dois dedos pelo ombro dela, afastando delicadamente os cabelos que ali repousavam. ― Já faz um tempo que não almoçamos em família.

― E alguma vez já foi do seu desejo que isso se tornasse rotina? ― Sua língua se assemelhava a uma navalha, cortante e precisa. Contudo, Elard sorriu, mas o sorriso foi breve, quase fugaz, dissipando-se tão rápido quanto surgira.

― Você me recente pelo que fiz ao nosso filho?

― Ele está bem, e isso acalma meu coração. ― Suspirou resignada, ao tempo que um pequeno sorriso se desenhou em seus lábios harmoniosos. ― Tenho certeza de que ele terá um ótimo desempenho.

De pé diante dela, com os braços cruzados sobre o peito, Elard estudava a expressão da esposa. A indiferença em seus olhos era uma muralha que ele não conseguia transpor. No entanto, em seu íntimo, a curiosidade fervilhava.

― O que a faz ter tanta confiança nele? ― Elard ansiava ver aqueles olhos, que tantas vezes lhe tiraram o fôlego, voltados para si. ― Já se esqueceu dos eventos que seu filho causou há poucos dias?

― Não pude repreendê-lo apropriadamente, mas acredito que agora ele não terá ninguém para constrangê-lo. E mesmo que seu estado se altere, confio nele. Afinal, ele é meu filho.

Elard sentiu uma pequena pontada em seu âmago, um golpe em seu orgulho.

― Vejo que deposita muita fé nele. ― Elard apoiou uma mão na costa da poltrona, seus olhos estudando o rosto que o evitava. ― Por que sinto que tal apreço não se estende a mim? ― Seus lábios roçaram na ponta da orelha dela.

― Suas ordens para esta visita se restringem ao mau comportamento de Raygan, ou há outra razão para perder seu tempo com tal questionamento? ― Ela o repeliu com suas palavras, e seu corpo permaneceu indiferente as investidas dele.

― Minha esposa é sábia. ― Ele sorriu, um sorriso que não chegava aos olhos. ― No entanto, desconfio que seus ouvidos não se atentam aos sussurros do palácio. ― Endireitou-se perante ela, a figura imponente à luz vacilante da lareira.

― Perdão?

― Sua reputação está de mal a pior. ― Elard caminhou até a pequena mesa e serviu-se de mais um gole de vinho, a bebida escarlate deslizando por sua garganta enquanto ele a fitava, buscando alguma resposta nos olhos velados da esposa.

― Não se atreverá a perguntar sobre os murmúrios? ― A pergunta pairou pela quietude do local.

Um silêncio duradouro.

A lenha crepitou mais uma vez, as sombras inquietas alcançando Saône, como uma tempestade interna oculta sob um véu de calmaria.

― Os murmúrios dos corredores são como vento. ― Ela finalmente respondeu, sua voz tão suave quanto firme. ― Podem soprar forte, mas não são sólidos. O importante é o que fazemos e não o que dizemos.

Elard estudou-a por um momento mais longo, seu olhar intensificando-se.

― Sua confiança é inabalável. Mas lembre-se, mesmo o vento pode derrubar árvores grandes e poderosas.

Ela não desviou o olhar, enfrentando-o com a complacência de uma rainha que conhecia o peso de sua coroa.

― Que venha o vento. Faremos como for do desejo deles.

― E você sabe o que eles querem?

Saône ergueu os olhos para enfrentar os dele. Sob a máscara de seu rosto gentil que ela trajava para a corte, ele vislumbrou um sorriso desdenhoso que ocultava seu desgosto.

― Intrigas, é disso que se alimentam. Dinheiro, festas e prazer. Mas suponho que, em tempos conturbados, o Segundo Conselho está preocupado com a terceira mãe do império, por sua incapacidade de cumprir com seu dever em gerar herdeiros para unir suas casas.

― Não agirei contra sua vontade ― afirmou Elard, sua voz ecoando no espaço entre eles.

― Então, permitirá que eu saia deste quarto, mesmo que seus esforços tenham sido em vão?

Elard engoliu em seco, o vinho perdendo o sabor encantador em seus lábios.

― Não imaginei que meu desejo de possuí-la lhe despertaria este desconforto. Poderia me dizer em que ocasião perdi minha esposa? ― indagou, urgente, franzindo o cenho ao encará-la. ― Responda-me, e permitirei que saia.

Saône ponderou, avaliando-o com cautela. Ele já não parecia tão seguro quanto antes, nem convencido de que triunfaria naquela noite.

― Pergunto-me quando seu coração se fechou para nós, sua família. Ou dirá que se esqueceu que além de Leion, você teve mais dois filhos?

― E por que não pergunta a si mesma a razão disso? ― contrapôs, incomodado.

O semblante de Saône endureceu rapidamente.

― Você me culpa por tudo que aconteceu? ― ela questionou, desacreditada pela acusação perceptível na frustração dele.

Elard, no entanto, comprimiu os lábios, suspirando antes de responder:

― Agora temos algo em comum. ― Olhou para ela, seus olhos impedindo qualquer brecha para um comentário atrevido. ― Deite-se e descanse ― ordenou.

Ele largou o copo e agarrou a garrafa, recostando-se na cama. ― Ao menos faça com que os outros acreditem que um novo herdeiro está a caminho.

Saône manteve-se inerte por um momento, o estalar da madeira na lareira era o único  som preenchendo o silêncio pesado entre eles. Ela então se levantou, movendo-se com a graça e dignidade que lhe eram naturais, mesmo que o incômodo em seu coração ferido ainda causasse um grande desconforto. 

― Me esforçarei para ser uma rainha digna de estar ao seu lado ― disse ela, sua cabeça repousando no travesseiro com a voz firme. ―, mas não espere minha ajuda para enganá-los com sentimentos que não existem mais.

Um amor que se perdeu no tempo, e em seu luto.

E num suspiro profundo, Elard refutou:

― Não era minha intenção incomodá-la com tamanho fardo. ― Ele levou a garrafa de vinho à boca.

Era um consolo momentâneo, à medida que o vento do lado de fora uivava, como se o próprio destino estivesse sussurrando seus segredos, semelhante à pintura no teto, julgando seus pecados e os seus desejos.


Capítulo novo toda semana!



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