Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 2

Capítulo 52: Atarefado

Vendo números tão expressivos na tela, Miguel constatou o óbvio: a sociedade estava mesmo decadente.

A alienação tá tão grande que um lugar como esse vira um oásis no deserto… um dos únicos onde alguém ainda pode ser tratado como ser humano — mesmo que a um preço.

Desde a reformulação do Lar dos Casados, a clientela aumentara quase cento e oitenta por cento nos últimos três meses. Desses, mais de setenta por cento tinham se tornado clientes fixos, retornando semanalmente — alguns até duas ou três vezes por semana.

Como Andressa comentara mais cedo, crescia o número de pessoas que iam só para conversar, desabafar ou pedir conselhos. Miguel riu sozinho quando viu a nova modalidade: “Fale que eu te escuto”. Sem qualquer envolvimento sexual — exceto por um opcional pago à parte. Barato, direto, quase terapêutico.

Claro, havia um limite de uma hora: era menos desgastante para as meninas, mas também rendia menos — e, no fim das contas, aquilo ainda era um puteiro. A diferença era que agora elas não precisavam se ver só como vítimas da sociedade.

O que deixou Miguel realmente aliviado foi notar que quase todos que escolhiam esse programa deixavam gorjetas generosas.

O sexo ainda era o carro-chefe, e continuaria sendo até que todas tivessem liberdade para largar aquela vida se quisessem. Mas, com as mudanças que ele e Mia implementaram, as garotas não se submetiam mais a qualquer um. Algumas até começavam a escolher clientes — e a cobrar extra para furar fila.

Miguel precisaria aconselhá-las sobre isso depois; usada de forma errada, a ousadia podia se voltar contra elas.

Um “toc toc” na porta o tirou dos pensamentos. Andressa entrou empurrando a porta com a bunda, equilibrando duas sacolas nas mãos. O aroma de comida caseira invadiu o escritório, fazendo o estômago dele roncar. Já passava das treze horas; não comia nada desde cedo.

— Chegueiii — cantarolou, abrindo as sacolas sobre a mesa e empurrando o almoço dele. — Tá vendo nosso progresso, chefe?

Chefe…

Miguel soltou uma risadinha ao ouvir o apelido.

— Vocês estão indo muito bem. Melhor do que eu previ. Quando a Mia ver isso, vai ficar contente.

O sorriso de Andressa ilumina­ria qualquer sala. Ela pegou o refrigerante de melão — o favorito atual dele —, serviu num copo e entregou a Miguel com a delicadeza de quem entrega um presente.

— Chefe, como você sabia que isso ia dar tão certo?

Miguel enfiou a primeira colherada na boca. Só depois de mastigar respondeu:

— Seu chefe aqui entende bem de psicologia humana. — Disse apenas para se exibir, mas Andressa acreditou de imediato. O sorriso torto dele deixou claro que estava brincando, mas a afirmação nem era totalmente mentira; ele realmente entendia daquilo. — Andressa, me diz… quando você foi comprar nossa comida, o que viu na rua?

— O que eu vi? — Ela falava de boca cheia, mas Miguel não se incomodou. Andressa inclinou a cabeça, engoliu, pensou um pouco. — Ahm… o mesmo de sempre? Um monte de puta quase pelada desfilando, outras dançando nas cabines, letreiros de promoção pra tudo quanto é lado… acho que isso. Tinha algo diferente pra notar?

— Exatamente isso. — Miguel apontou com a colher. — Você tá tão acostumada com aquele nível de explicitude que ele virou ruído de fundo. Igual quem trabalha todo dia na principal avenida da cidade e para de notar a barulheira do trânsito. Quando tudo é exagerado, tudo acaba banalizado.

Os olhos dela se arregalaram devagar, como se finalmente entendesse o que ele estava vendo — e o que ninguém mais notara.

— Agora pensa… — Miguel continuou. — Se você anda por um lugar que vive exibindo as mesmas coisas, do mesmo jeito, sempre berrando por atenção, sempre pornográfico demais… O que você acha que realmente chama atenção em meio a isso?

— Porra… saquei. — Ela bateu na sacola vazia na mesinha. — Mas e quanto às bonecas de luxo? Mesmo a gente trabalhando diferente, elas são perfeitas. Não seria mais natural alguém pagar pra comer uma boneca que faz tudo perfeito?

Miguel mastigou outra colherada antes de responder:

— As conexões humanas mais fortes nascem das nossas falhas. É através delas que a gente se reconhece no outro. Uma boneca criada pra provocar o orgasmo mais perfeito do mundo nunca vai chegar aos pés de uma mulher que sabe exatamente como foi irritante o chefe enchendo o saco o dia inteiro. — Ele deu de ombros. — Quando só gozar não resolve mais… pra onde você acha que essas pessoas vão?

Andressa encarou o chão por um instante, como se a resposta tivesse sido empurrada pra dentro dela.

— Algum lugar onde podem ser ouvidos… — murmurou Andressa.

Depois disso, sorriu de um jeito que Miguel nunca tinha visto nela — um sorriso menor, quase tímido, mas cheio de algo sincero.

— Me fez lembrar de um cliente de ontem — disse ela, mexendo no lacre vazio da sacola. — Ele pagou pelo programa mais caro, aquele com direito a anal e tudo… mas só ficou conversando. Chegou aqui todo feliz, dizendo que tinha conseguido transar com a esposa depois de dois anos, tudo graças aos meus conselhos. Poxa, ele tava realmente feliz, sabe? Bem diferente de quando veio pela primeira vez. Hihihi… e ele nem me comeu, só veio agradecer e dizer que a casa dele tava melhorando. É tão esquisito… tão… sei lá… tragicômico?

Miguel gargalhou, pegando o refrigerante para não se engasgar de novo. Tomou um gole e limpou a boca com o dorso da mão.

— Apesar de parecer um paradoxo, isso é profundamente humano — disse ele. — Essa é exatamente a camada mais irônica, triste e brilhante desse tipo de dinâmica. Mesmo que o cara esteja pagando por atenção, o impacto emocional é real. Ser ouvido, acolhido e orientado aciona circuitos de regulação emocional, diminui ansiedade, cria pertencimento, melhora autoestima… reorganiza o “eu”. Ele sai daqui mais calmo, menos reativo. E só isso já melhora a vida doméstica.

Ele completou o copo, mexendo o líquido com um giro lento de mão.

— E não porque ele virou virtuoso… mas porque está emocionalmente regulado. Em psicologia tem um fenômeno básico: quando alguém recebe apoio emocional de uma figura que considera segura, essa estabilidade transborda para os outros relacionamentos.

Andressa ouviu tudo com os olhos semicerrados, como se fosse uma aluna fascinada com o conteúdo que seu professor ensinava. Miguel só conseguia falar tanto porque Andressa parecia genuinamente interessada nisso.

— Então meio que isso faz ele se viciar nisso?

— Pois é — Miguel assentiu, pousando o copo. — Quando ele percebe que os conselhos funcionam, que a esposa reage melhor, que o clima em casa melhora… ele faz a associação. “Quando eu vou lá, minha vida melhora.” A mente cria o reforço positivo. Aí ele volta, não pelo sexo, mas pela validação, pelo cuidado, pelo consolo… pela sensação de que alguém tá guiando-o.

O sorriso dela murchou um pouco. Ficou mais sincero, mas com aquele amarelo típico quando ela pensava demais. Enrolou alguns cachos no indicador e disse:

— Chefe, isso… como posso dizer… faz de você alguém bem assustador.

Miguel estalou a língua, deu um peteleco no nariz dela e sorriu de canto.

— Humpf. Não é como se eu estivesse manipulando tudo como um capitalista frio. Apesar de pagarem, o que recebem é real. Vocês são reais. Vocês tão aprendendo, melhorando… e ainda oferecem algo que não existe lá fora. Todo mundo ganha de forma saudável: vocês ganham dinheiro e experiência que podem usar em outras áreas, e eles ganham carinho, atenção e um ombro que não encontram em nenhum outro lugar.

— Eu sei, chefe, eu sei! Hihihi.

Andressa passou os minutos seguintes fofocando enquanto os dois almoçavam. Ela gesticulava com o garfo, dava risadinhas entre uma mordida e outra, e soltava nomes, histórias e pequenas tragédias humorísticas do Lar dos Casados como quem folheia um álbum caótico de memórias recentes.

Depois de ter bancado o professor minutos antes, Miguel apenas se recostou e deixou ela falar. Mastigava devagar, ouvindo o barulho distante da rua filtrado pela janela, e deixava as palavras dela preencherem o ambiente como um rádio antigo tocando em volume confortável.

Por mais cara-de-pau que fosse e bem articulado, Miguel era essencialmente uma pessoa introvertida que mais preferia ouvir e observar enquanto Andressa era o completo oposto: extrovertida. Adorava tagarelar e principalmente fofocar.

E no fundo, isso tornava a combinação deles estranhamente boa — ela falava demais, ele falava de menos — e o equilíbrio entre os dois deixava o almoço muito tranquilo.

Luna realmente tinha fugido dele. Miguel sentiu uma pontada amarga no peito ao perceber que não a viu mais desde o beijo, mas sabia que não podia resolver nada agora. Depois de terminar de comer com Andressa, se despediu da garota deixando apenas um aviso: queria conversar pessoalmente com cada garota da casa nos próximos dias para saber como estavam se sentindo com as mudanças e se tinham sugestões.

Também não viu Leo, mas sabia que o amigo estava confraternizando com alguns da Gangue do Machado, que cuidavam da segurança do Lar dos Casados.

Parecia um daqueles dias em que tudo o empurrava para seguir em frente.

♦♦♦

Miguel cruzou metade de Neo Alvorada pilotando em silêncio até chegar ao destino mais importante do dia.

Os portões de ferro da mansão de Cezar se abriram com um rangido imponente. Miguel passou com a moto e a estacionou perto da entrada, deixando o capacete pendurado no guidom. Um dos mordomos o guiou para dentro dos terrenos, mas mal deram dez passos quando dois demônios dispararam na direção dele — ou melhor, dois rottweilers enormes, seguidos de um terceiro mais atrás.

Miguel só ergueu a sobrancelha ao ver o terceiro sendo cavalgado por uma garotinha em um vestido rosa e descalça, segurando um pedaço de pau como se comandasse um exército. Talvez estivesse brincando de cavaleira… ou de bárbara conquistadora.

Os cães rosnavam, mostrando os dentes, prontos para dilacerar qualquer estranho. O mordomo deu dois passos para trás, apavorado. Miguel, porém, apenas ficou parado, desviando o peso para uma perna enquanto liberava uma emissão psiôntica fraca — só o suficiente para que os animais percebessem.

— Sentem. — Ordenou.

E eles sentaram, instantaneamente, como se Miguel fosse o dono deles desde o nascimento.

O mordomo ficou petrificado. Alice, por outro lado, soltou um gritinho animado e pulou no colo dele sem aviso. Miguel a segurou no ar com facilidade, girando com ela.

— Miguel! Haha! Como você fez isso?! O Tesla e o Einstein geralmente mastigam primeiro!

Miguel riu, meio incrédulo. Então, se ele fosse só mais um, estaria sendo comido vivo agora? O pensamento mórbido o divertiu — ainda mais por ter sido conduzido àquilo por uma garotinha de sete anos.

— Foi você que deu esses nomes a eles? — perguntou, a colocando no chão.

— Não, foi meu papai. Olha ele ali!

Cezar vinha na direção deles. Já tinha visto toda a cena de longe. Miguel tinha percebido sua presença atrás de Alice, e a expressão do chefão misturava surpresa e um respeito silencioso.

— Miguel, como vai? Você parece melhor que da última vez. A viagem que fez foi bem revigorante, hein?

Aquilo chamou a atenção dele. Claro que Cezar sabia da viagem — alguém como ele sempre sabia. Mas dizer que Miguel “parecia melhor” era um detalhe inesperado.

— Sim, estou bem. E posso supor que o senhor e Alice também estão bem.

— Miguel, eu tenho trinta amigos agora!

— Oh! Tudo isso? E você lembra o nome de todos?

Embora tivesse vindo ali para tratar de assuntos sérios com Cezar, Miguel jamais ignoraria Alice. Ela era como um ponto fixo de luz na vida caótica dele.

A garotinha inflou o peito e começou a recitar nomes. Muitos nomes. Todos. Sem parar.

Só depois de um bom tempo brincando e entretendo Alice, o “papai” finalmente o libertou.

Cezar o conduziu até a garagem — um templo metálico onde três carros clássicos brilhavam como relíquias. Os outros, explicou ele, estavam guardados em um galpão na Zona Oeste.

— Então, o que acha? — perguntou o grisalho.

Miguel já estava com os olhos brilhando.

— Um Opala SS 78?! — aproximou-se do modelo alaranjado com listras negras, claramente o destaque do trio.

— Você o conhece? — Cezar pareceu genuinamente animado.

— Claro! Um dos carros mais desejados do Brasil. Como conseguiu um? Esse aqui tá perfeito.

Cezar riu, passando a mão pela lataria.

— É mais réplica do que original. Já se passaram quase duzentos anos desde o lançamento. Conseguir um autêntico seria impossível. Mas é incrível de qualquer forma. E bem caro.

— O senhor tem um ótimo gosto. — Miguel deslizou o olhar para os outros dois. — Um Chevette e um Maverick… o senhor precisa me mostrar a coleção completa.

— Haha… você é bem estranho. Nem vinte anos e sabe dessas velharias. Não tem muita informação por aí sobre elas.

Miguel percebeu a esperteza dessa raposa velha.

Victor o havia avisado: Cezar tinha pedido uma investigação minuciosa aos Black Quill sobre cada membro da Crimson Wolf. Como não encontraram nada sobre ele, o interesse só aumentou. Era um jogo perigoso para qualquer um — menos para Miguel, que improvisava bem.

— Meu avô gostava desses modelos antigos. Vivia falando deles. Ganhou revistas do pai que tinha ganhado do pai… virou meio que uma herança.

— É mesmo? Gostaria de conhecer esse seu avô. Acho que nos daríamos bem.

Miguel sorriu por dentro. O velho estava tentando puxar a linha para ver se vinha o resto do novelo.

— Infelizmente não sei onde anda esse vagabundo. Um dia me abandonou na rua dizendo que eu já sabia me virar… e foi embora com uma gostosa.

Cezar estremeceu os ombros, rindo — talvez acreditando, talvez não.

— E aí, quer dar uma volta?

— Achei que eu teria que implorar!

Com sua habitual cara-de-pau, Miguel já ia para o banco do passageiro quando Cezar hesitou… e sugeriu:

— Que tal uma corrida?

Miguel arregalou os olhos, mas o sorriso abriu instantâneo. A proposta era íntima, rápida demais — mas a chance de dirigir um daqueles carros matou qualquer hesitação.

— Eu não vou pegar leve só porque é mais velho!

— Ora, seu moleque de merda.

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